Entrevista | Sob uma forja amorosa

Entrevista | Sob uma forja amorosa
O ator e diretor Roderick Himeros (Foto: Jennifer Glass)

 

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Na quarta-feira, dia 19 de julho, Roderick Himeros concedeu à Cult a entrevista abaixo enquanto caminhava à tarde do Paraíso, onde mora, até o bairro do Bexiga, onde está localizado o Teatro Oficina. O percurso, feito há treze anos, o ajuda a se concentrar em seu trabalho como ator e diretor (“Vou repassando as peças, raciocinando… É o momento em que vem muita inspiração também. Há um movimento de contracenar com as pessoas e ir sacando como é que está a cidade”). Ao passar pela rua onde morava José Celso Martinez Corrêa, morto havia menos de quinze dias, Roderick deixa-se contaminar pela emoção e fica com a voz embargada: “Ainda é muito triste pra mim olhar diretamente para o quarto dele e vê-lo todo incendiado. Dói, dói muito”.

Em que estágio estava a adaptação de A queda do céu no momento em que ocorreu o trágico acidente com Zé Celso?
Fiquei sabendo pelo Ricardo [Bittencourt] que o Zé tinha acabado de terminar a correção da primeira versão que a gente fez quando transcriou A queda do céu como teatro. A primeira transcriação foi feita por uma equipe maior. No final, restaram cinco pessoas: Zé, Fernando de Carvalho, Felipe Botelho, Pedro Felizes e eu. A gente fez essa primeira transcriação, que na verdade consiste em transcrever para o teatro, na língua do teatro e no tempo presente do aqui-agora do teatro, as falas do David Kopenawa através do Bruce Albert.

Na leitura de duas cenas que conduziu ao seu lado no Sesc Pompeia no dia 28 de junho, Zé Celso afirmou aos presentes que achava que o texto ainda estava muito narrativo e que era preciso transformá-lo em “teatro”. Houve alguma mudança nessa direção depois disso?
O texto do Kopenawa está em primeira pessoa, e o tom é narrativo. Isso não combina muito com a ação teatral. Grande parte do trabalho foi fazer essa transposição, a presentificação do texto, perceber quais eram as entidades, as personagens, enfim, presentificar na cena, em uma mise-en-scène futura. Quando a gente terminou a primeira versão – na qual o Zé estava trabalhando desde o dia 2 de fevereiro, sistematicamente de segunda a sábado, das 20h30 até à 1h30 da manhã –, o Zé disse que queria continuar fazendo com o Fernando a correção dessa primeira transcriação e já ir imaginando como transformá-la em uma peça, criando, como ele mesmo disse, um arco dramático para ela. Ele trabalhou até o último dia. Deve ter parado por volta da 1h30, como sempre fazia. Depois, jantou com o Ricardo e foi se deitar. Aí aconteceu a fatalidade. O Ricardo me contou que ele estava muito feliz porque tinha conseguido terminar a segunda etapa, que era a correção da primeira versão.

Como estava se dando sua parceria com o Zé na direção do projeto? Como era o método de trabalho de vocês?
Quando se entregava a um trabalho novo, o Zé canalizava todos os desejos, as paixões, os anseios, as ambições, enfim, tudo, nessa criação. Com muito ardor, com muito fervor. Ele realmente se voltava para isso e nada era mais importante do que a continuidade daquele trabalho. E do que ele representaria para o Teatro Oficina e para o teatro brasileiro e internacional. Ele tinha uma percepção muito clara da importância dos trabalhos dele e, mais do que nunca, em A queda do céu, acho eu, ele estava muito agradecido por poder aprender tanto. Ele estava muito apaixonado pela cultura indígena, pela cultura yanomami… Ele até queria que a gente cheirasse juntos yãkoana (risos). Ele pegava um trecho sobre o qual tinha trabalhado com o Fernando [de Carvalho] e pedia pra eu ler a fim de sentir como soava para ele. Era muito gostoso. A gente estava se preparando para colocar tudo em cena.

Como a montagem de A queda do céu pretende lidar com outros eixos de compreensão do mundo para além das lógicas eurocentradas?
O Zé faz parte dessa herdade, dessa linha contínua de artistas e pensadores como Villa-Lobos, Oswald de Andrade, Lina Bo Bardi, Glauber Rocha e Darcy Ribeiro, que descolonizaram a cultura brasileira, que trouxeram esse retorno ao arcaico, que na verdade é o cultivo da própria terra, são as culturas que têm identificação com a terra, com a terra-floresta, urihi, como chamam os Yanomami. Ele passou por um processo total de descolonização durante sua trajetória como artista e com certeza percebeu que a fonte disso tudo são os povos originários. Ele percebeu e quis se aprofundar para aprender mais. Colocava-se muito na escuta. E ficava horas e horas vendo vídeos no YouTube para a aprender mais, sacar mais… Ele estava se descolonizando também. Acho que todos esses movimentos de descolonização têm os povos originários como a própria fonte, é óbvio. O Zé estava retornando ao lugar na verdade de onde ele tinha partido também. Desde que ele começou a Tropicália, a descoberta do Oswald de Andrade. O Oswald mostrando que a pergunta era tupy or not tupy? e não to be or not to be? Ele conseguiu ter essa perspicácia desde o começo.

Quando conheceu o livro mais de perto (ele já tinha entrado em contato com a obra em francês), com a tradução para o português, em 2015, imediatamente ele se identificou com isso e percebeu o potencial cênico, teatral da obra, que não é tão óbvio assim exatamente por se tratar de um texto narrativo. Mas o Zé já tinha essa visão, sabe? Eu acho que esses artistas foram percebendo cada vez mais a importância de voltarem a se conectar com os povos originários. Ele começava, de fato, a incorporar a obra na vida dele. O Zé era um xamã e incorporava as coisas. Porque o xamã chama, invoca, evoca… Ele ficava muito mexido com os acontecimentos. Quando viu a aprovação no Congresso do marco temporal, ele ficou doido, completamente desesperado. Ele urrava, gritava de tristeza, ficou muito nervoso e, no dia seguinte, sofreu uma crise de diverticulite [que o obrigou a se locomover em uma cadeira de rodas].

Que aprendizado você adquiriu com a convivência com o Zé?
Eu não saberia enumerar, porque o Zé é a minha vida. Eu tenho um grande amor por ele. Eu o sinto como parte integrante de mim, porque ele me forjou. Ele me colocou com amor para ser trabalhado na forja. Me deu muita força para assumir a vida de artista, de poeta, para eu viver a vida com arte. Além disso, ela era uma pessoa muito carinhosa. Uma das pessoas mais amorosas que eu já conheci. Ele era sensacional. Eu só tenho que agradecer a ele. E vou estar com ele sempre até o resto da minha vida. Ele me trabalhou desde o verdor até eu começar a protagonizar as peças no Oficina. Nós tínhamos muita sintonia. Passamos por muitas fases e por muitas mudanças no mundo, e estávamos sempre juntos. Sempre muito ligados afetivamente. Ele confiava cada vez mais no meu potencial. E me deixava mais confiante também. Eu sentia que o meu trabalho estava inspirando o dele.


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