O cuidado-cura

O cuidado-cura

 

 

 

Em 1971, nas primeiras linhas da palestra para um encontro em Roma deixada inacabada, já muito doente, pouco dias antes de morrer, Winnicott dirigiu seu último pedido à comunidade psicanalítica: “Estou pleiteando uma espécie de revolução no nosso trabalho. Vamos reexaminar o que estamos fazendo”.

Winnicott explica as razões para conclamar os colegas psicanalistas a se envolverem na pesquisa revolucionária. Ele admite que não faltam excelentes análises, isto é, excelentes interpretações do inconsciente reprimido realizadas no enquadre profissional de acordo com os procedimentos preconizados pela psicanálise tradicional (com o “Diga tudo sem censura” da associação livre). Contudo, muitas delas falhariam num ponto decisivo: não conseguem chegar às “dissociações”, isto é, formações esquizofrênicas escondidas no material relacionado à repressão numa personalidade só aparentemente inteira. A neurose de transferência não revela, antes encobre, a psicose. A obra de Winnicott fornece uma série de resultados da sua própria pesquisa revolucionária que permitem entender o que isso significa.

Repressão é uma defesa contra um conflito interno que surge, em determinadas condições, em crianças estabelecidas como pessoas inteiras, que já passaram satisfatoriamente pelo período de concernimento e que são capazes de experienciar ambivalência entre o amor e ódio de base instintual oral, diz Winnicott retomando e modificando a tradição; no caso do menino, o conflito entre o desejo de preservar o pai amado, provedor de segurança e companheiro de muitas atividades, e o desejo de destruir esse mesmo pai, por ele ser o obstáculo para um desejo de fundo sexual dirigido para a mãe. Essa ambivalência que não é constitucional (Klein), mas um traço da estrutura adquirida de personalidade, gera angústia. A criança acha certos aspectos dessa angústia intoleráveis e começa a erigir defesas comumente chamadas de neuróticas: principalmente a repressão, que dá origem a um tipo especial de inconsciente – o inconsciente reprimido, fragmentos da vida mental consciente expulsos da consciência, mantidos sobre pressão e cifrados. Um aspecto especial da repressão é a inibição do impulso, uma perda de algo do componente instintual no relacionamento com objetos. Isto equivale a um sério empobrecimento da experiência de vida da criança.

Por sua vez, dissociação é o nome genérico usado por Winnicott na palestra e outras vezes para se referir a defesas contra perturbações que não decorrem de conflitos internos, mas são geradas pelos fatores externos que incidem de forma intrusiva sobre o processo de amadurecimento nos primórdios da vida humana, quebrando as defesas já erguidas que protegem o contato inicial com o ambiente humano. Dessa forma, ameaçam o relacionamento do bebê com a mãe e outras pessoas, antes mesmo da constituição da personalidade inteira e da capacidade de amar e odiar e de experienciar ambivalência e, portanto, muito antes de poder surgir a angústia neurótica que gera repressão e uma variedade de defesas neuróticas. Em especial, as intrusões atingem a continuidade de ser e potencialmente impedem a realização de todas as outras aquisições fundamentais (constituição de um si-mesmo unitário, integração no tempo e espaço, alojamento no corpo, relacionamento objetal, sentimento de ser real, processos intelectuais abstratos etc.) que o bebê precisaria poder alcançar, acarretando a ameaça de aniquilação do indivíduo e sua queda na amorfia sem abertura para relacionamentos objetais. Esse efeito não pode ser experienciado como tal. O mais próximo que se chega a ele são as angústias winnicottianas, experiências de agonia, de luta para permanecer em contato, para continuar a existir e deixar de viver na suspensão aflitiva entre vida e morte, fora do alcance da representação, caindo para sempre, em pedaços, perdendo alojamento no corpo, o contato com outras pessoas etc. Essas angústias são catalogáveis, sim (Winnicott estabelece várias listas como a lembrada aqui), mas, estritamente falando, elas são impensáveis, pois dizem respeito à loucura que pertence ao estágio anterior à organização no eu de processos intelectuais capazes de usar – Winnicott esclarece com precisão – experiências angustiantes catalogadas para gerar memória consciente. Contra essas angústias, que não podem ser verbalizadas e que, portanto, não são as neuróticas, o bebê pode não obstante erguer novas defesas – os conhecidos sintomas de psicose: desintegração ativa, falso si-mesmo – que se põe como real e é tomado por observadores como pessoa real –, despersonalização (perda do alojamento no corpo), perda do senso de real, invulnerabilidade autista etc., que distorcem e mesmo bloqueiam o processo de amadurecimento já afetado pelas intrusões.

Fica gerado assim o inconsciente patógeno winnicottiano, constituído do não-acontecido winnicottiano no relacionamento externo com outros seres humanos, de algo no bebê, que, por falta de facilitação ou proteção, deixou de ser integrado e, por isso mesmo, não foi vivido nem experienciado em primeira pessoa. Essa falha existencial é radicalmente diferente do inconsciente freudiano, que consiste num excesso, no que aconteceu na vida intrapsíquica, mas não devia.

Esse inconsciente pode persistir em indivíduos que conseguem certo grau de integração pessoal constituindo um falso si-mesmo social, por exemplo, aquele que se envolve com questões de administração da institualidade genital. Uma ilustração são os casos de pacientes fronteiriços (borderline), em que o cerne do distúrbio é psicótico, mas onde o paciente está de posse de uma organização suficiente para apresentar uma neurose, ou um distúrbio psicossomático, quando a ansiedade central psicótica ameaça irromper de forma crua. Em tais casos, o paciente pode vir a se defender fazendo-se neurótico (em oposição a louco) e precisar de ser tratado como tal. Dessa forma, ele nega a não-comunicação e o fato de que seu problema fundamental não foi alcançado.

A análise standard foi concebida para romper as resistências, lembrar na transferência o fragmento reprimido da vida consciente, elaborá-lo, isto é, decifrar seu significado, e, isso feito, recolocá-lo na boa ordem temporal e causal da corrente da vida mental, enfim, submetê-la ao controle da consciência. A cura tradicional é uma talking cure, cura pela palavra.

Aqui surge o problema assinalado por Winnicott em 1971 e que acabo de reconstruir: a talking cure não chega a dissociações, não propicia o contato do paciente com a amorfia pessoal patógena. Uma das razões é o uso do método de associação livre. Este revela, por definição, um tema coerente, um sentido, um propósito, uma meta, de base instintual, cuja realização é proibida e, portanto, afetada pela angústia. Organizar o sem-sentido já é defesa, diagnostica Winnicott, assim como o caos organizado é a negação defensiva de caos.

Além disso, ao praticar a análise standard, o terapeuta facilmente incorre em conluio com o paciente que nega, criando um falso si-mesmo cuidador, a não-comunicação, isto é, o fato de não alcançar o colapso e de ter medo de colapso. A interpretação do falso si-mesmo do paciente em termos tradicionais pode ser excelente, com o único inconveniente de jamais terminar. O distúrbio subjacente – o não-acontecido – não entra na transferência e não é revivido na consulta como seria preciso para que o processo de amadurecimento e de cura pudesse progredir. Decerto, o paciente pode mesmo mobilizar um falso si-mesmo psiconeurótico para finalizar o tratamento e mesmo expressar gratidão. Porém, ele sabe, em algum nível, que não houve alteração no seu estado psicótico subjacente e que o conluio com o analista terminará em fracasso. Foi bom enquanto durou. Se a psicanálise pudesse ser um modo de vida, diz Winnicott, poder-se-ia dizer que tal tratamento realizou o que se esperava. Mas a psicanálise não é um modo de vida. O objetivo da análise é outro: espera-se que o paciente termine a análise, esqueça o analista e descubra que o próprio viver é a terapia que faz sentido. Nas palavras de Margaret Little, nos casos que dizem respeito à existência, à sobrevivência e à identidade pessoal, a transferência não se desenvolve e a psicanálise na sua forma clássica revela-se ineficiente.

A intepretação standard pode inclusive ser perigosa se aplicada a casos nos quais o paciente precisa entrar em transferência psicótica, por exemplo, em relacionamento de dependência profunda com o analista. Se o terapeuta falhar não no que diz, mas no que faz – em se comportar de modo que facilite o processo analítico do paciente (que é o equivalente ao processo maturativo do lactente e da criança) –, ele subitamente torna-se não-eu para o paciente, sabe coisas demais e fica perigoso, adverte Winnicott, pois torna-se demasiado próximo na comunicação com o núcleo central quieto e silencioso da organização do eu do paciente.

O tratamento por interpretação encontra outro obstáculo: o caráter impensável e, por conseguinte, não verbalizável do inconsciente não-acontecido do psicótico. A razão pela qual o paciente não obtém alívio é que, seguindo o tratamento tradicional, ele tenta recordar a loucura que teria sido experienciada. Na realidade, relembra-se e revive exemplos de loucura que se assemelham a lembranças encobridoras. A loucura original, o colapso, pertence a um estágio muito inicial, anterior à organização no eu daqueles processos intelectuais que podem abstrair experiências que foram catalogadas e apresentá-las para uso em termos de lembrança consciente. Em outras palavras, a loucura que tem de ser lembrada só pode ser lembrada se revivida no colo do analista.

Um outro limite da análise standard é revelado pelos casos de tendência antissocial – roubo, mentira, agressividade contra as estruturas sociais, tendência antidemocrática – que sinalizam, pelo comportamento antissocial, perda abrupta do ambiente até então suficientemente bom por culpa desse próprio ambiente, percebida pelo paciente.

Winnicott chega à conclusão de que análise é só para quem precisa, quer e aguenta. Com outros pacientes, Winnicott faz trabalho não-analítico. Sua obra fornece uma série de elementos para pensar as alternativas à terapia tradicional. O ponto fundamental é o seguinte: a terapia winnicottiana não se resume mais a interpretar o inconsciente reprimido; ela é, antes, o fornecimento de um contexto profissional para a confiança, no qual esse trabalho pode ocorrer.  Trabalho de manejo, de care-cure, de cura pelo cuidado.

Para tratar as cisões, por exemplo, o terapeuta precisa reconhecer e suportar a situação de sem-sentido do paciente comunicada na transferência psicótica e lhe oferecer, no setting especializado, a oportunidade de experienciar um estado de ausência de propósito, uma espécie de tiquetaquear da personalidade não integrada, sem insistir na necessidade de o paciente organizar o sem-sentido. Fica por conta do paciente a tarefa de retomar, nessas condições asseguradas não pela interpretação, mas pelo cuidado, o processo de amadurecimento e de restaurar os contatos e alcançar criativamente seus objetivos.

O tratamento da tendência antissocial não é psicanálise, mas placement. Trata-se de provimento de cuidados que substituem os cuidados perdidos, que podem ser redescobertos pela própria criança e nos quais ela pode experimentar de novo sua instintualidade, com possibilidades de testá-los. A terapia é fornecida pela estabilidade do novo suprimento ambiental e manejo.

No essencial, a cura pelo cuidado é uma extensão do conceito de holding, de segurar, e de viver com alguém, que inclui mutualidade e identificação cruzada. Tudo começa, diz Winnicott, com o bebê no útero, depois com o bebê no colo, havendo um enriquecimento a partir do processo de crescimento da criança, pois a mãe que conhece aquele bebê específico a que ela deu à luz torna esse enriquecimento possível. O tema do ambiente facilitador capacitando o crescimento pessoal e o processo maturacional tem que ser uma descrição, Winnicott insiste, dos cuidados que o pai e a mãe dispensam, e da função da família. Isso leva à construção das estruturas sociais, tais como a máquina democrática, com os indivíduos maduros tomando parte de acordo com sua idade e capacidade na sua criação, manutenção e, conforme o caso, na sua reconstrução. O cuidado não é cura no sentido do tratamento por remédios, mas sim no sentido do cuidado-cura, que poderia ser, diz Winnicott, o lema da profissão de terapeutas winnicottianos.

 

Leia mais

Os dois modos de vida de um homem

Onde vivemos criativamente

Onde adoecemos

 

Zeljko Loparic é filósofo, professor titular aposentado da Unicamp, fundador, com Elsa Oliveira Dias, do Instituto Winnicott e da International Winnicott Association. Publicou numerosos trabalhos sobre Kant, Heidegger e Winnicott. A totalidade da sua produção intelectual encontra-se disponível online em Acervo Loparic.

 

Uma parceria com o Instituto Winnicott

 

> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

Deixe o seu comentário

Novembro

TV Cult