Um armado e desastrado, outro estelar e iluminado

Um armado e desastrado, outro estelar e iluminado
Ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro

 

I- Armado e desastrado

 

Meu livro caiu e disparou um tiro de versos por engano. Atingiu você. Eis o perigo da poesia: quando você menos espera, ela introduz uma flor no cano de um fuzil.

O estranho episódio do tiro acidental no aeroporto, envolvendo o ex-ministro da educação, Milton Ribeiro, foi, no mínimo, mais um ato falho letal dos defensores da flexibilização do porte de armas.

Quanto mais armas circulam, maior o risco de atos voluntários ou involuntários que podem matar inocentes transeuntes.

Em 2018, a campanha de Bolsonaro foi centrada no armamento da população.

A campanha de Fernando Haddad, ao contrário, seguiu o lema de “mais livros, menos armas”. Seus eleitores se encaminharam às urnas com um livro debaixo do braço.

Nesse momento, tornou-se evidente o enorme contraste entre duas mentalidades brasileiras completamente diferentes.Quem cometeu o ato desastrado no aeroporto não foi, digamos, o ex-ministro da defesa, não: foi o mais recente ex-ministro da educação, afastado por ter sido acusado de corrupção. Ele não só caiu pelo escândalo envolvendo liberação de dinheiro público a prefeitos ligados a pastores, como, fora do cargo, mantém-se sendo um cidadão armado potencialmente perigoso.

Milton Ribeiro, que é pastor e teólogo, também declarou que “a universidade deveria ser para poucos”, que há universidades demais. Difunde, por conseguinte, a lógica de mais armas, menos universidades. A militância desses pastores usa a palavra da Bíblia para defender a flexibilização do porte de arma, e associam Bíblia e arma, arma e Bíblia. Mais Igrejas, mais clubes de tiro; menos universidades, menos livros. Repito: esse não foi o ex-ministro da defesa ou da economia, mas o ex-ministro da educação.

 

II- Um destemido editor

Para quem se depara com a associação entre religião, arma e educação com pavor e não encontra nela nenhum cabimento, notícias como essas causam asco e profunda desesperança. Essa é a militância bélica de quem está comandando a educação no atual governo.

No outro lado do enorme contraste entre diferentes mentalidades, há pouca visibilidade para os verdadeiros trabalhadores da educação: os professores, os pesquisadores e os produtores de cultura, especialmente os últimos. O hediondo sempre tem muita audiência; a sutileza encantadora vive, ao contrário, na penumbra das atenções. Por isso mesmo, para que a literatura ganhe um mínimo de espaço na selva do mundo administrado, foi imprescindível a existência de editores de revistas e organizadores de eventos de poesia.

Recentemente, no dia 2 de abril, faleceu um dos maiores escritores do Ceará e do Brasil: Carlos Emílio Corrêa Lima (1956-2022), vítima de infecção generalizada após intervenção odontológica.

Com apenas 20 anos de idade, foi um dos editores da revista O Saco (1976-1977), vendida em bancas de jornal sem grampeação: era um saco pendurado que continha quatro cadernos com folhas soltas, como um cordel urbano. Seu primeiro número já contou com sete mil exemplares; a partir do terceiro número, a revista ganhou apoio da empresa carioca Superbancas, motivo pelo qual chegou a trinta mil exemplares e foi distribuída por todas as grandes cidades do Brasil.

Embora ela tenha desfrutado de vida curta – sete números – como é comum em revistas literárias, seu sucesso propiciou a Emílio escrever artigos em jornais cariocas de grande circulação, como o Suplemento da Tribuna da Imprensa e o Jornal do Brasil. Em 1979, lança o livro Cachoeira das Eras, que causou certo impacto pela prosa poética profusa, abundante, fantástica, e pela fértil imaginação utópica prenunciando o florescimento de um Brasil profundo e glorioso. Estas se tornaram características marcantes de sua obra.

A atividade de editor de revistas continua no Rio de Janeiro, nos Cadernos Rio Arte, de 1984 a 1987, Letras & Artes, de 1986 a 1991, o que lhe rendeu o prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor divulgação cultural do país em 1990 e, mais tarde, na impressionante revista Arraia Pajé Urbe, de 2000 a 2003, com formato triangular que alude tanto ao peixe arraia quanto às velas das jangadas cearenses. Aberta, ela se torna losangular. Dentro, vê-se dois pedaços de livro que precisam ser abertos juntos e girados para cada página ser lida na sequência, remetendo o objeto livro à brincadeira infantil do encaixe de partes. Tal enorme sofisticação de diagramação, edição e concepção artística conseguiu tiragem de três mil exemplares e também foi largamente distribuída. Em todas essas revistas, Emílio publicou centenas de poetas; no caso da Arraia, revelou entrevistas feitas por ele com Rubem Braga e Hilda Hilst.

 

III- Nasce um sonho: CEP 20000

 Voltando aos anos 80, Emílio trabalhou como Coordenador de Editoração do Rioarte e da Fundação Rio, cujo tablóide de literatura é o Letras & Artes. Em conversas com Guilherme Zarvos, a abertura do Letras & Artes para toda uma variedade de escritores suscitou a necessidade de “criar uma amplidão de convivência, juntar as tribos numa imensa constelação, e todas as artes”, segundo Emílio. Chacal, que já tinha um histórico importante de organização de eventos, também queria dar seguimento a uma nova empreitada. Os três apresentaram a proposta ao presidente da Rioarte, Tertuliano dos Passos, com quem Emílio mantinha uma relação próxima e, especialmente por sua causa, conseguiram a aprovação do projeto do CEP 20000 para se sediar no Espaço Cultural Sérgio Porto. Embora Emílio não tenha sido organizador do CEP, e sim Zarvos e Chacal (depois aos dois se juntou Michel Melamed), ele constou, indubitavelmente, entre os fundadores. O CEP é certamente um dos eventos mais ativos e duradouros do Brasil, pois existe até hoje, vivíssimo, sobrevivendo à pandemia, em vigor há 32 anos. Inclusive, o último evento, no dia 27 de abril, celebrou uma homenagem a Emílio. Não é pouca coisa.

Retornando a Fortaleza, Emílio organizou diferentes eventos de poesia que podem ser vistos como desdobramentos do CEP: Rodas da poesia, Leitura no palco sob a passarela, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), entre outros.

Observa-se como o ativismo cultural de nosso escritor cearense foi farto e fecundo. Ainda vale mencionar que em 1988 se iniciou sua atividade de resenhista literário do Jornal do Brasil, que tornou-se mais intensa de 1993 a 1995. Nesse meio-tempo, concluiu graduação em 1979, mestrado em 2002 e doutorado em 2018. A dissertação – sobre Virgílio Várzea (1863-1941), com quem Cruz e Sousa publicou seu primeiro livro – foi publicada logo depois da defesa. Impressiona, portanto, a variedade de atividades literárias de nosso escritor. Tanta produção também contou com ajuda de familiares e amigos ao longo do tempo. Indispensável mencionar que seu companheiro de vida dos últimos dez anos, o professor de história Raul Ávila de Agrela, foi indispensável ao dar a ele suporte em muitas adversidades.

Suas declarações em entrevistas combinavam sempre aguda indignação com a falta de incentivo à literatura, abundância de menções a suas atividades coletivas, grande erudição e, mais que tudo, deliciosa irreverência, vinda diretamente de sua poética. Nos primeiros anos da internet, ele se entusiasmou com portais literários virtuais de grande alcance como o pioneiro Jornal de Poesia, de Soares Feitosa, Cronópios, de Edson Cruz e Mallarmagens, de Nuno Rau. Na contramão da dificuldade de Emílio de publicar seu precioso trabalho, esses foram nomes que o acolheram nos últimos vinte anos. Considerou o império do Facebook uma colonização do espaço internauta responsável por diminuir o acesso a revistas virtuais e criticava com veemência a subserviência do Brasil à cultura estrangeira.

A obra de Emílio unia vastidão imaginativa, vocabulário suntuoso, paixão pela cultura popular, inovação formal prenhe de neologismos e aglutinações, fôlego estonteante e prolífico, ironia afiada e conjunção entre mito e ficção científica, entre o mais arcaico e o mais utópico. Sua personalidade irrequieta, imoderada, provocativa e exagerada impregnava a grandeza sublime de uma obra extraordinária. Por isso mesmo, tanto a obra quanto a pessoa não agradavam a muitos, mas fascinavam a outros.

 

IV- Coragem cósmica

Se o campo da educação e da cultura é vítima de tantos ataques, se os transeuntes da literatura e da crítica vivem com medo de serem atingidos por disparatadas formas de agressão vindas de tantas frentes, é preciso responder ao absurdo horroroso com absurdo maravilhoso.

Não adianta conclamar sensatez porque o mundo já enlouqueceu faz tempo. A razão sempre esteve com loucos como o autor de Cachoeira das eras.

Quando um ex-ministro da educação quase mata um passante no aeroporto, é preciso invocar uma vida inteira de vitalização poética de um imenso escritor, crítico, pesquisador e ativista cultural como Carlos Emílio Corrêa Lima.

E, caro leitor, não se engane: para cada agressor armado de pistola, desastrado ou mal intencionado, há centenas de escritores armados de livros, revistas e corpos performatizantes. Há milhares de leitores que reescrevem o lido nos subterrâneos da imaginação.

Não se abale nem se intimide com notícias ameaçadoras, que fazem parte daquilo que Emílio chamava de ruidocracia.

Insufle seu peito do sopro de poetas revigorantes.

Seja corajoso: empunhe uma flor, dispare um verso, trague um sonho – na vanguarda do cosmos.

Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.

 

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