Sikêra Jr. e o novo pânico moral contra os homossexuais
O apresentador Sikêra Jr. vociferou na TV a sua revolta contra uma campanha do Burger King pela diversidade sexual (Foto: Divulgação)
Há algumas semanas, o apresentador Sikêra Junior reagiu ferozmente contra uma linda propaganda do Burger King em que crianças explicavam com naturalidade e graça tipos de relacionamentos afetivos não convencionais. Sikêra, bolsonarista por convicção e soldo, segundo planilhas da Secom de Fabio Wajngarten, vociferou na televisão a sua revolta. Gritou que aquilo era inaceitável e passou a atacar não a publicidade, mas os próprios LGBTs. E não parou até associar gays, lésbicas e transexuais à pedofilia, que é um clássico da associação livre na fala dos ultraconservadores.
O apresentador recitou, com estudada indignação, todos os lugares-comuns da homofobia brasileira. Essa que vinha sendo crescentemente recalcada há alguns anos, mas que, com o advento das trevas bolsonarista, agora se expressa quase livremente até em programas de TV.
Começa com o “vocês não têm filhos, não vão ter filhos, não reproduzem, não procriam, e querem acabar com a família dos brasileiros“, como se para ter filhos algum casal, não importa a sua orientação sexual, precisasse necessariamente gerá-los, ou fazer isso com suas próprias células. Depois, passa para a típica contraposição reacionária entre o recato conservador e a liberdade sexual dos homossexuais, como se ser sexualmente reprimido e morrer de inveja do tesão dos outros fosse superior à liberdade. Para, então, rematar brutalmente com o salto irracional que vai da homossexualidade à pedofilia. “Não me importa o que você faz entre quatro paredes”, rosnou o ogro, “é um direito seu. Agora envolver criança, isso é pedofilia, não tem outro nome, é abuso infantil.” Como se os heterossexuais não fossem, segundo os dados, os grandes predadores sexuais de crianças na sociedade brasileira.
O discurso de Sikêra Jr., repudiado por cada alma civilizada no Brasil e punido com justiça mediante uma avalanche de fuga de patrocinadores dos seus programas, reflete basicamente o problema do sexo para um ultraconservador. Notem que faz parte da resposta padrão do conservador de direita a ressalva de que ele não tem nada contra os homossexuais, desde que não transem. Onde entra o sexo, entra também o desconforto dos conservadores.
Nem vou discutir a falácia, uma vez que além de certos animais que só transam na ocorrência do cio, a procriação é a menor das serventias do sexo. Mas fato é que a repulsa ao sexo está aí. O conservador simplesmente lhe tem horror. Ou precisa gritar publicamente que o sexo lhe repugna, mesmo quando o pratica gostosamente, protegido pela escuridão, e das maneiras menos ortodoxas possíveis.
Isso vem de um dualismo arcaico segundo o qual nós somos uma composição precária entre uma alma e um corpo, cada um puxando-nos para um lado. A nossa alma é imortal, foi criada por Deus e tende para ele, mas está presa provisoriamente a um corpo humano, corruptível, terreno, que tende à satisfação de necessidades e prazeres terrenos. Nesse puxa-e-estica antropológico, só há um jeito para assegurar que a alma imortal desfrute do gozo de uma eternidade junto a Deus, que é impedir que a carne, fraca, como se sabe, nos puxe para o pecado e a corrupção. O sexo para o ultraconservador é carnal, mundano e rebaixado.
Naturalmente, isso diz muito pouco sobre os homossexuais, mas diz muito sobre uma sociedade atravessada por uma concepção doentia de sexo e por fantasias sexuais perversas que bem mereceriam ser tratadas.
O salto para a pedofilia vai na mesma direção. A ideia de crianças sendo profanadas pelo sexo lhes é dolorosa, embora em um mundo pós-freudiano a sexualidade seja inerente à nossa própria existência e parte da nossa constituição psíquica, desde as fases mais elementares da nossa vida. Na psicanálise, a pulsão sexual é vida, no reacionarismo, é morte, imundície, profanação. Por isso a perversa fantasia de que alguém vai sujar, degradar as nossas criancinhas, cujas almas angelicais, creem, nunca se maculariam com a carne sem o constrangimento dos adultos. O argumento é insustentável, mas é muito eficiente para produzir pânico moral.
Na vida real, a vida como ela é, há mais pedofilia no seio das sacrossantas famílias e em ambientes religiosos, do que em qualquer outro ambiente social. Pelas mãos de pais, padrastos, madrastas, tios, sacerdotes e religiosos passam mais corpos infantis para a satisfação sexual dos adultos do que em qualquer outro espaço social.
Mas essa história de ter um tipo humano usado para nos assustar com a ideia de predação sexual de crianças e, ao mesmo tempo, como bode expiatório, para levar a culpa e a punição que nos alivia a consciência, é um clássico cultural. Podia ser o estrangeiro, os membros de uma casta, um grupo estigmatizado. Podiam ser seres míticos como faunos e sátiros. Mas os conservadores ultimamente escolheram os homossexuais como o seu bode expiatório porque neles projetam o seu duplo horror: o horror ao sexo (sim, eles transam) e o horror à profanação dos corpos infantis.
Repito, a população LGBTQIA+ é uma tela onde uma mente sexualmente reprimida e uma sexualidade perturbada projetam as suas fantasias, seus medos e os desejos que não confessa. Nessa projeção, aprende-se nada sobre a tela, mas se revela muito sobre quem nela se projeta.
Se você é um sujeito conservador moderado e está me lendo agora, como pai heterossexual de filhos heterossexuais que convivem com queridíssimos amigos homossexuais ou trans, só queria tranquilizá-lo dizendo que não caia no conto do vigário desses ultraconservadores oportunistas e suas fantasias sexuais perversas. Seus filhos não se tornarão homossexuais ou transexuais se aprenderem a respeitar a diversidade sexual, se aprenderem que o sexo e o amor erótico não são monstruosos, sujos nem pecaminosos, se entenderem que é ok ser gay, lésbica, bi, desde que as pessoas se respeitem e sejam felizes. Igualzinho ao que desejamos a casais heterossexuais.
Por outro lado, seus filhos tampouco deixarão de ser homossexuais, se esta for a sua orientação sexual, apenas porque alguém lhes ensina a ter nojo e ódio da homossexualidade, ou que sexo é algo sórdido e asqueroso, ou que os LGBTs não podem ter direitos ou estima social. Isso não evita homossexualidade, mas é certamente um modo de produzir pessoas sexualmente infelizes e psiquicamente miseráveis, sofrendo inutilmente porque pessoas como Sikêra Jr. lhes cravou perversamente uma enorme cruz nas costas.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
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