A pandemia como um problema de comunicação política
O que vem primeiro para as pessoas, os fatos ou a interpretação dos fatos? (Foto: Marcelo Seabra/Fotos Públicas)
As pessoas tendem a imaginar que, na vida como na política, há uma prioridade dos fatos sobre as representações que fazemos deles e que usamos para nos comunicar com os outros. O material, o concreto, como por exemplo os problemas sociais, as instituições da política e a política real viriam antes; depois é que viriam as aparências, as impressões, os sentimentos e as opiniões como reação secundária aos fatos. Por fim, a comunicação disso tudo aos outros. Será mesmo verdade?
Na política, as pessoas são, afinal, o que contam. E o que vem primeiro para elas, os fatos ou a interpretação dos fatos? Os fenômenos ou a maneira como eles são explicados, narrados e assimilados? Pois bem, as interpretações, as explicações e as narrativas são todos da ordem da comunicação e não da ordem dos meros fatos. E são tudo menos secundários.
Consideramos a pandemia. Ninguém pode negar que epidemias são um problema com que epidemiologistas e virologistas devem lidar. Assim como médicos e enfermeiros. E gestores públicos, quando os temos. São também um problema econômico. E um problema que exige resposta em termos de política públicas, quando as há. Certo. Mas será que a comunicação representa uma intervenção secundária e de menor importância? Na verdade, não. Vejamos.
1) Grande parte da tragédia que estamos enfrentando começa com a politização da pandemia pela extrema-direita mundial. Sim, porque, por desventura, o vírus se espalhou justo no momento de máxima expansão de governos e movimentos de extrema-direita no mundo. E a extrema-direita populista, identitária e digital, é essencialmente um fenômeno de comunicação. Ela existe e se dissemina por meio de narrativas, através da construção e propagação de imagens públicas (a demonização da esquerda, a satanização dos migrantes) e por meio da manipulação propagandística dos grandes sentimentos, como o medo, o ódio, a esperança e o desespero.
2) Para tanto, a extrema-direita, de Trump a Bolsonaro, aderiu a vários scripts e enquadramentos dos fatos (e aqui não importam se montados a partir de fatos ou se inventados inteiramente) cujo propósito consistia em sustentar a sua posição epistêmica, a sua perspectiva cognitiva e moral sobre a realidade.
De fato, podemos nos
perguntar honestamente,
como chegamos ao ponto
de estar discutindo, na
terceira década do século 21,
coisas que considerávamos
que faziam parte do patamar
mínimo civilizacional?
Sim, porque a impressão que temos é que uma parte da sociedade está no terceiro milênio, enquanto a outra luta arduamente pelos valores e pelo estilo de vida do século 16, pondo em discussão a democracia como valor universal, por exemplo, ou a ciência como fonte de conhecimento seguro; a liberdade de viver a nossa vida como bem nos aprouver, o cosmopolitismo ou a existência em uma comunidade mundial tolerante e pluralista de povos em cooperação. Ou a necessidade de preservar o meio ambiente, os direitos das minorias, direitos humanos.
Quem colocou tudo isso em discussão no mundo para depois desferir-lhe um ataque feroz foi a extrema-direita. E por que o fez? Porque a extrema-direita não é simplesmente uma posição no espectro ideológico republicano, ela é um pouco de crenças e uma intenção de reformar o mundo. A sua visão de mundo e os seus valores são incompatíveis com o Humanismo cristão, o Iluminismo e o Liberalismo, que são os três grandes pivôs que explicam o patamar civilizatório em que nos encontramos. E contra os quais ela está em guerra.
No ceticismo mal-intencionado da extrema-direita, a sua principal arma de batalha é, primeiro, a negação de tudo – ciência, jornalismo, o valor dos intelectuais, os princípios da democracia liberal – para colocar em seu lugar aquilo que esses grandes movimentos removeram: a tradição, a fé, o dogmatismo, os vínculos comunitários ao líder tribal.
E a pandemia, o que tem a ver com isso? Ora, a autoridade da razão e da ciência precisam ser removidas. Daí as narrativas que negaram a doença enquanto puderam, caracterizaram o vírus como parte de um complô chinês, atacaram a ciência e as instituições globais, inventaram pseudomedicamentos, sabotaram e negaram todas as medidas propostas por cientistas ou a OMS.
Tudo isso é comunicação, comunicação política, nada disso é epidemiologia, microbiologia, farmacologia, virologia ou medicina. Aliás, os problemas gerados pela comunicação política – fake news, teorias da conspiração, negacionismo, os enquadramentos que opõem economia a isolamento social, etc. – é que se transformam em gravíssimos problemas epidemiológicos e médicos. Como estamos vendo nesses dias, essas áreas podem tratar a doença e inventar vacinas, mas não podem curar falsas representações, consertar atitudes inadequadas e perigosas, remediar imaginários distorcidos e narrativas nocivas.
3) Além disso, a cooperação ou não da população às medidas sanitárias propostas não é só um problema de saúde pública ou de políticas públicas, mas um enorme problema de comunicação. A não cooperação depende de muitas coisas. Depende de quanto prosperaram as campanhas de desinformação por parte de governos negacionistas e genocidas. Assim como depende da chamada “percepção do risco” ou do julgamento socialmente compartilhado sobre qual seria o risco de alguém pegar o vírus e morrer caso se exponha a ele.
Ora, a depender de como
se enquadra um problema,
aumenta-se ou se diminui
a percepção do risco de
morrer, e as consequências
no nível do comportamento
que a isso se segue.
Uma gripezinha não me mete medo, a ideia de que atletas são imunes me deixa tranquilo, a convicção de que só os velhos devem morrer não comove uma parte dos jovens, a certeza de que remédio para malária ou piolho, tomados preventivamente, salva vidas faz com que as pessoas se sintam invulneráveis. Tudo isso fez parte de uma insidiosa campanha de propaganda do governo que sabotou decisivamente o que diziam os cientistas e contribuiu decisivamente para o quadro em que nos encontramos.
O êxito do bolsonarismo em particular e da extrema-direita, em geral, deve-se, creio, a três princípios que ensino aos meus alunos por quase três décadas:
1º) A comunicação não está apenas no fim do processo, não é o setor de empacotamento de ideias e de fatos. Está também no projeto, no atendimento, na venda e no pós-venda da ideia e na pesquisa de opinião para ver o que a multidão deseja e teme. Os fatos? Ora, os fatos são commodities, matéria prima, a comunicação é que os refina, beneficia e os transforma em um produto consumível.
2º) Não há ideia, causa ou história, por mais ridículas, inconsistentes, insensatas ou difíceis que sejam, que não possam ser vendidas, desde que devidamente empacotadas, no timing certo e na circunstância adequada.
3º) Uma história, uma explicação ou uma interpretação não são socialmente válidas por serem verdadeiras, sensatas ou plausível, mas por convencerem um grande número de pessoas.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)