Vagina pulsante e penetração intelectual: sobre a filosofia de Paul B. Preciado

Vagina pulsante e penetração intelectual: sobre a filosofia de Paul B. Preciado
Paul B. Preciado: na engrenagem de excitação tecnoproduzida, corpos não são vivos nem mortos (Foto: Marie Rouge)

 

Filósofos malditos, como George Bataille, já haviam apontado para os limites da sublimação. Apreciadas pelo velho Freud, as soluções de compromisso psíquicas sublimatórias convertem decomposições corpóreas, dejetos e carnes desejosas em abstrações purificadas; envernizam o que é condenável aos olhos da moral civilizada. Seu jogo configurador amaina a força de impulsos sexuais e agressivos que brotam das vibrações carnais. Por esse prisma, processos sublimatórios não deixam de ser uma forma de violência que embota, amputa ou ignora prazeres e dores.

Ao explicitarem esses limites, porém, poucos filósofos malditos foram capazes de, verdadeiramente, lançar o corpo de seus leitores na prova concreta de suas teorias. George Bataille escreveu algumas de suas reflexões sobre o tema em O erotismo, O ânus solar e A literatura e o mal. Em nenhum deles, a leitora sentirá o frêmito de seu corpo – não sendo Tirésias, não sou capaz de saber o efeito da leitura em homens. É provável que, em outras obras de Bataille, como a História do olho, a leitora, levada ao limite do imaginável, excite-se. Mas ali não se pode mais dizer que o autor faça filosofia.

Diante disso, parece haver algo de novo na escrita do filósofo Paul B. Preciado:  a experiência de ler seus textos filosóficos excita. Suas palavras incendeiam o corpo. Mostram a força do erotismo em sua versão não sublimada. Tesão, portanto, não é aqui apenas uma força de expressão. Em Testo Junkie, há trechos como os que se seguem:

“Ano novo. Eu fico chapada. De todas as maneiras possíveis. Cada vez mais. É a primeira vez que ela me come com minha cinta peniana, gozo para ela como se fosse uma colegial. […] Sou sua cachorra king, sua puta trans, um menininho que mostra sua periquita por trás de seu enorme pau.

Paul está lá: sua pele arrepia-se enquanto seu corpo trans submete-se ao enorme pênis de plástico da romancista e sua então parceira Virginie Despentes. O oco vaginal lubrifica-se. Abre-se. Está de prontidão. “[…] eu me torno sua escrava, sendo raivosamente aberta, como uma ninfomaníaca que abre todas as braguilhas procurando sexos para levar à boca, para enfiar em cada um dos meus orifícios”.

Insossas manobras intelectuais não são o estilo de Preciado. A leitora não será capturada pelos volteios de pensamentos que desafiam a pura inteligência. Não será o jogo livre da razão, aos moldes kantianos, a instigá-la. Seguir pelas infinitas ginásticas mentais, destituídas da carne-máquina, será parte de uma velha epistemologia. Aqui, o órgão sexual pulsante conduzirá o pensamento: úmido, vibrante, vigoroso, aberto.

Que não se subestime, todavia, os caminhos intelectuais aos quais uma vagina lubrificada pode conduzir. A excitação do corpo-máquina vivifica ideias. A fina e exigente reflexão que se forma em torno das sofisticadas elaborações teóricas construídas em Testo Junkie une-se ao entusiasmo de um corpo em ebulição – vida!

Que também fique claro: Preciado não faz concessões ao rigor filosófico. Seu corpo não é apelativo, tampouco sedução barata. Como em Marquês de Sade, a excitação produzida pela leitura de seus escritos é uma denúncia contundente aos séculos de hipocrisia ilustrada. Mas é ainda mais: sua filosofia resiste ferozmente à domesticação do desejo pelos interesses do capital.

 

É preciso salientar que Preciado
não é um filósofo de sobrevoos.
Como Michel de Montaigne e
Santo Agostinho, se entrega ao
gênero das confissões filosóficas,
expondo todos os meandros
de sua vulnerabilidade.

 

 

Está subjetiva e concretamente implicado em suas reflexões. Seu corpo trans e sua voz modulada pelo Testogel seguem rentes às articulações reflexivas, transfigurando a matéria íntima de suas transformações corpóreas e espirituais em finas análises críticas. Tal franqueza confessional revela que seus desejos não são capazes de resistir por completo à lógica capitalista farmacopornográfica.

Daí ser possível dizer que Testo Junkie é um visceral e contínuo debater-se contra a entrega total aos seus desejos capturados pela indústria sexual, sem que isso signifique resvalar em preceitos moralistas. Sua árdua e persistente resistência crítica a essa modalidade de poder econômico e político também não recorre a um olhar distante e neutro. Como qualquer sujeito que vive nas amarras do sistema capitalista, Preciado é invadido pelos apelos da mercadoria e do raciocínio guiado pela lógica do capital. Entrega-se aos sabores de seus fetiches para depois decompô-los um a um e trucidá-los com sua afiada lâmina crítica.

O filósofo mostra que na engrenagem de excitação tecnoproduzida, corpos não são vivos nem mortos. São apenas presentes ou ausentes, presenciais ou virtuais. Seguindo seu léxico, vemos que aquilo que permite girar a atual economia global é o valor medido pela excitação integrada à bioeletrônica dos meios digitalizados e fármaco-produzidos: imagens, vírus, programas de computação, fluídos tecno-orgânicos, internautas, vozes que atendem demandas por sexo, drogas, animais de laboratório, embriões congelados, células-mãe, moléculas de alcaloides ativos.

Na filosofia de Paul B. Preciado, não há nada inteiramente natural ou artificial. Não há sujeitos e objetos. Segue Donna Haraway, assumindo que as feições ciborgues implodem fronteiras entre os artifícios e os corpos naturais. Cada tecnocorpo concentra forças orgásmicas prestes a eclodir e porta a potência de produzir capital sexual. Transformada em capital, a força desses tecnocorpos não está, por conseguinte, nem na bios nem no soma; aliás, toda tradição de Aristóteles a Darwin é substituída por uma lógica pautada em modulações de tecnoeros. Os corpos tecnovivos agitam a potentia gaudendi. Tanto a biopolítica (política de controle e produção da vida) como a necropolítica (política de controle e produção da morte) funcionam como farmacopornopolíticas ou gerenciamento da potentia gaudendi.

Mais de uma vez, Preciado expressou suas pretensões. No debate com Caetano Veloso na Flip deste ano, fica claro que não quer nada menos do que promover o desabamento de uma epistemologia que já está em ruínas e que se perfila em sistemas binários, colonizadores, racistas, heteronormativos e patriarcais. Seu entusiasmo para a tarefa é contagiante e encoraja suas leitoras a seguirem na mesma direção.

Se na psicanálise os limites contra a onipotência narcísica emergem pela angústia da castração, limitando e normatizando formas do desejo, talvez seja possível dizer que, na filosofia de Paul B. Preciado, apresenta-se uma nova modalidade de limitação contra tal onipotência: os percalços daqueles que se lançam por inteiro no campo desejante. Na vulnerabilidade que se apresenta ante os intensos obstáculos, na fragilidade de um corpo-máquina em transformação, na angústia desesperadora de um lugar sem garantias, constrói-se sua filosofia. É um lugar que abdicou da ideia de preservação – a morte e a castração estão colocadas em cada passo, mas isso será só mais uma pedra no caminho daqueles que se mantêm fiéis às linhas esboçadas pelo desejo e ao que alimenta o erotismo de nossas existências.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).


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