Desvendar a alma dos crentes

Desvendar a alma dos crentes
Flávio de Carvalho e seu "New Look" na rua Barão de Itapetininga, em São Paulo, capital, 1956 (Foto: Reprodução)

 

Na terça-feira, 9 de junho de 1931, uma pequena nota na página seis do jornal O Estado de S. Paulo anunciava: “domingo, às 15 horas, quando desfilava pelas ruas do centro da cidade a procissão de Corpus Christi, um rapaz muito bem posto, que se achava na esquina da rua Direita e praça do Patriarca, não se descobriu, conservando ostensivamente seu chapéu na cabeça. Os crentes, que acompanhavam o cortejo, revoltaram-se com essa atitude e exigiram em altos brados que ele se descobrisse. Ele, no entanto, sorrindo para a turba, não tirou o chapéu, embora o clamor da multidão já se tivesse transformado em franca ameaça. Foi então que inúmeros populares tentaram linchá-lo”.

Ao contrário do que se poderia imaginar, o bem posto rapaz não era um simples desatento. Acontecia ali o primeiro grande experimento artístico-científico do modernista (ou pós-moderno, como queria Gilberto Freyre) Flávio de Carvalho.

“Me ocorreu a ideia de fazer uma experiência, desvendar a alma dos crentes por meio de um reagente qualquer que permitisse estudar a reação nas fisionomias, nos gestos, no passo, no olhar, sentir enfim o pulso do ambiente, palpar psiquicamente a emoção tempestuosa da alma coletiva”, esclareceu em seu livro Experiência n. 2, lançado poucos meses depois – embora ainda hoje não se saiba se de fato existiu uma “experiência n. 1”.

Nascido em 1899 na cidade de Barra Mansa, no Rio de Janeiro, Flávio de Carvalho foi enviado para estudar na Europa logo aos 12 anos – primeiro em Paris, depois na Inglaterra. Formado engenheiro pela Universidade de Durham, retornou ao Brasil apenas em 1922, logo depois da Semana de Arte Moderna.

Em São Paulo, deu início a uma série de ações culturais, sem se furtar às polêmicas. Um ano depois de Experiência n. 2, inaugurou o Clube dos Artistas Modernos como resposta a Lasar Segall, que acabara de anunciar a criação da Sociedade Pró-Arte Moderna. “Detestamos elites, não temos sócios doadores”, declarou, em tom de provocação, ao lado dos companheiros Di Cavalcanti, Antonio Gomide e Carlos Prado. A arenga entre os dois pintores inspiraria Oswald de Andrade no romance Marco Zero: II – Chão.

Em 1933, fundou o Teatro da Experiência. Instalado no mesmo prédio onde funcionava o CAM, na rua Pedro Lessa, embaixo do Viaduto do Chá, o espaço foi interditado pela polícia logo na estreia, depois da apresentação de “O Bailado do Deus Morto”, da autoria do próprio Flávio e com o elenco formado quase totalmente por atores negros.

Morto em junho de 1973, Flávio de Carvalho passou longe de testemunhar o advento das redes sociais, a enorme caixa de ressonância das massas que a ele tanto interessavam.

 

Mas é de se pensar o que
produziria o artista diante
da constatação de que, quase
um século depois de sua
experiência na procissão de
Corpus Christi, a eleição de
um governo armado contra
a cultura e a ciência parece
ainda comprovar a validade
de seu experimento.

 

 

“O deus e a pátria são as duas coisas mais maleáveis que o homem possui. Com facilidade ele molda a pátria e o deus à sua imagem e se prosta contrito em adoração a si mesmo. Nivelado ao deus e à pátria ele se considera um ser privilegiado. Patriotas e irmãos em deus ou Cristo não devem ser molestados”, escreveu Carvalho, 89 anos antes do “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Frente à nova onda conservadora, é também de se pensar em colocar em perspectiva o trabalho do irrequieto artista, que em outubro de 1956 chocou a provinciana sociedade paulistana ao desfilar pela rua Barão de Itapetininga em seu New Look, traje que desenvolveu como roupa ideal para os homens, trocando o tradicional terno e gravata por saia plissada e meia arrastão.

Paradoxal como o próprio Flávio de Carvalho, o momento atual traz a boa nova do lançamento de dois livros, ambos organizados pela pesquisadora Larissa Costa da Mata, e que permitem ao leitor conhecer mais sobre o trabalho do autor: Os gatos de Roma: notas para a reconstrução de um mundo perdido (UFSC) e Flávio de Carvalho: o berço da força poética (Alameda).

O primeiro reúne a última e mais longa série de textos publicados por Flávio, entre 1957 e 1958, no jornal Diário de S. Paulo. Nele, Carvalho retoma a reflexão iniciada na série “A moda e o novo homem”, publicada um ano antes, e amplia suas indagações sobre o tempo a partir da interpenetração de duas concepções.

De acordo com a ideia de “sonambulismo histórico” do autor, o tempo é visto como a força motriz a impulsionar a estética em seu cruzamento com o espaço. “A emoção estética deve ser considerada como uma brecha nas malhas da consciência e do mundo organizado e estabelecido, como um rompimento do dogma diário: é como abrir uma janela para um outro mundo”, escreve em “Vila Júlia – sonambulismo da história”.

A visada histórica de matriz nietzschiana, em que o começo não está acoplado ao desenvolvimento linear, mas ao desequilíbrio entre domínio e resistência, se espraia praticamente por toda a sua obra. Mas seguir o fio de Ariadne por entre o vasto e heterogêneo campo de ação e pensamento do artista é tarefa para Teseu nenhum botar defeito – o que torna ainda maior o valor do segundo livro organizado por Larissa Costa da Mata, Flávio de Carvalho: o berço da força poética.

Além de excertos do inédito Mecanismo da emoção amorosa e da pequena série “Na fronteira do perigo”, também jamais publicada, o livro reúne  ensaios de oito pesquisadores sobre outra ação vista como escandalosa: o conjunto batizado de “Série Trágica”, composto de nove desenhos a carvão, em que Carvalho registrou os momentos de agonia da mãe à beira da morte.

“O desejo de ver a mãe esconde, não raro, algo de escandaloso. No limiar do possível, esse desejo se recobre muitas vezes de uma aura transgressiva, como se denunciasse a violação de um território proibido, associado a conteúdos perigosos ou mesmo obscenos. Daí terem sido poucos os que realmente se lançaram a tal aventura, arriscando-se a olhar de frente o insondável enigma materno”, aponta uma das pesquisadoras que participam do livro, Eliane Robert Moraes, professora da USP que investiga as relações entre estética e erótica.

No conjunto de ensaios, a cultura e as ciências caminham juntas mais uma vez, como mostra a escritora e crítica de arte Verônica Stigger ao tratar da viagem organizada pelo artista para estudar índios da região amazônica.

“A ideia de Flávio de Carvalho era unir arte e investigação científica: queria, por um lado, estudar os aspectos etnográficos, psicológicos e artísticos dos índios com os quais teriam contato e, por outro, produzir um filme livremente inspirado na história de Umbelina Valéria”, diz Stigger sobre a expedição realizada em agosto de 1958, inspirada em uma reportagem sobre uma branca mantida refém por índios ao longo de 24 anos.

Um ano depois da aventura de Flávio de Carvalho, o físico e romancista britânico C. P. Snow proferia na Universidade de Cambridge a palestra “As duas culturas e a revolução científica”, na qual conclamava cientistas e “intelectuais literários” a deixarem de lado a barreira entre os dois campos do saber. O que Snow não podia imaginar é que, no Brasil, Flávio de Carvalho há muito a derrubara.

Rodrigo Simon é pesquisador no Departamento de Teoria e História Literária na Unicamp.

Org.: Larissa Costa da Mata, Editora UFSC
317 páginas – R$36

Org. Larissa Costa da Mata, Editora Alameda
316 páginas – R$66


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