Márcia Wayna Kambeba: para ouvir o choro do nosso chão
A geógrafa e poeta Marcia Kambeba (Foto: Reprodução/YouTube Itaú Cultural)
A escrita não é a palavra morta, ‘escrita funerária’, mas uma escrita viva
[Manoel Fernandes Moura, líder Tukano]
Passaram por cima da memória e escreveram no corpo dos vencidos uma história de dor e sofrimento. […] É preciso escrever – mesmo com tintas do sangue – a história que foi tantas vezes negada.
[Daniel Munduruku]
Presente em Eliane Potiguara, o modo paradigmático de escrita repete-se em outra poeta contemporânea oriunda dos povos originários, que resguarda o exemplo singular ancestral atualizando-o como necessidade de sobrevivência. Ao haver uma cultura imaterial que transmite uma herança milenar, tal imaterialidade se compõe na materialidade da palavra, do canto, dos instrumentos, da dança, do corpo, dos grafismos, dos desenhos, dos artefatos, dos sonhos, da casa circular, da aldeia, do rio, das árvores, das chuvas, da terra, do ciclo do sol, da floresta, do território… Na penúltima estrofe do poema “Aldeia Tururucari-Uka [A casa de Tururucari]” do livro Ay kakyri Tama/ Eu moro na cidade, Márcia Wayna Kambeba afirma: “Contam os mais velhos com sabedoria/ Que o Kambeba tem um exemplo a seguir/ De um líder que lutou pelo povo/ Para não os ver sucumbir/ Pelas armas dos may-tini/ Tururucari não deixou a etnia se extinguir”.
O “exemplo” transmitido oralmente pelos mais velhos, o inesquecível da tradição entendido enquanto “sabedoria” a ser transmitida, a verdade do povo Kambeba, é a luta do líder Tururucari – a contaminar seu povo, os de sua época e seus descendentes – contra a extinção de sua etnia pelas armas desproporcionalmente assassinas dos brancos (os may-tini). Esse é o paradigma a ser herdado, o caso historicamente singular que se repete seguidamente de outras maneiras através de acontecimentos singulares que se relacionam entre si. A luta do líder Tururucari ajuda na constituição de uma série de lutas subsequentes pela não extinção.
Assim como tal caso, há muitos outros que, indo um em direção ao próximo, tornam insistentemente inteligível o que sem eles seria desconhecido da maioria de nós. Cada um desses casos é exemplar de uma regra que eles mesmos constituem. Relacionando-se com outros, tal exemplo da luta é um paradigma político, como os outros também o são. Ao invés de um problema para o paradigma, o fato de essa tradição eminentemente oral não poder ter uma imagem preservada de Tururucari (“Não se sabe como ele era”) é um ponto decisivo: sem imagem, mas com uma ideia que abre a possibilidade de imagens, o exemplo em mobilidade está pronto a se encarnar em cada imagem dele posteriormente imaginada e em cada membro da nova linhagem que o imagina (“Hoje, Tururucari representa/ União, força, luta e coragem/ Não se sabe como ele era/ Mas se faz uma ideia de sua imagem/ Retratado no desenho do indígena Uruma/ Marcando essa nova linhagem”).
Assim como de outras nações originárias, o paradigma “do Kambeba” é a resistência, o exemplo de sua luta permanente para não sucumbir, o combate incisivo contra o genocídio perpetrado pelos colonizadores, pelo Estado e pelos neocolonizadores. Resiste-se para não ser aniquilado, para não deixar “a etnia se extinguir”. Se aos povos originários não é permitido decidir exclusivamente por si a viabilização do que desejam para si, e nem mesmo a preservação de suas existências, é preciso que descubram modos de intervenção a buscar eficácias nas ações políticas para suas autodeterminações. Que os primeiros invasores, o Estado e os neocolonizadores sempre fizeram e fazem uma guerra avassaladora contra os territórios indígenas, apropriando-se deles e os destruindo, é certo. Lembremos que Ailton Krenak nos fala de “uma clara orientação das políticas de Estado para fazer desaparecerem o pensamento, as formas de sociabilidade, de comunidade, as formas de vida que esses povos conheciam”, remetendo-se ainda à “construção de cidades inteiras em cima de túmulos, de lugares em que vocês [os brancos] enterraram ou ocupantes ou habitantes originários daquele lugar”. É comum que os chamados civilizados se ergam por sobre o que, barbaramente, aniquilaram de outros povos, tentando levá-los à mais profunda decadência e dizimação.
De diversos modos, a resistência atravessa o livro Ay kakyri Tama/ Eu moro na cidade, de Márcia Wayna Kambeba, podendo ser o paradigma tanto evocado quanto o que o constitui. O poema “Silêncio guerreiro” começa com a consideração de uma “sabedoria milenar” aprendida em “território indígena”, transmitida, geracionalmente, pelos mais velhos aos mais jovens: “o silêncio”. Há milênios, o que, de maneira paradoxal, se transmite nessa tradição oral é a necessidade da aprendizagem do silêncio, a inesquecibilidade de o mais importante ser “ouvir, mais que falar”. O que, no silêncio, se ouve? O que o silêncio faz ouvir? O que, para falar, é primeiro, e antes de tudo, preciso, no silêncio, ouvir? O que, transmitido através das gerações, o silêncio ensina?
Assim como de outras nações originárias, o
paradigma “do Kambeba” é a resistência, o
exemplo de sua luta permanente para não
sucumbir, o combate incisivo contra o genocídio
perpetrado pelos colonizadores, pelo Estado e
pelos neocolonizadores
Com toda clareza, logo na segunda estrofe, o poema diz: “No silêncio da minha flecha/ Resisti, não fui vencido/ Fiz do silêncio a minha arma/ Pra lutar contra o inimigo”. Como a tecnologia bélica dos brancos sempre fora desproporcionalmente mais letal do que os artefatos de guerra dos indígenas, não deixa de ser curioso notar que, enquanto aquela é barulhenta (espingardas, revólveres, fuzis, metralhadoras, canhões, bombas etc.), esses são silenciosos: flechas. Com arcos e flechas compostos de matérias extraídas da natureza, ao invés do barulho, o sopro de um deslocamento de ar, uma exalação, quase imperceptível, da floresta. Em contraposição ao estardalhaço destruidor das metrópoles invasoras, as flechas garantem o silêncio da selva, na qual, morando, os povos nativos passam a ter, muitas vezes, de se esconder para poderem se defender e, desapercebidamente, atacar. Tendo o silêncio a seu favor, com o silêncio confundido às flechas e às armas silenciosas das florestas capazes de surpreender os inimigos, a poeta apresenta o silêncio, presente igualmente de maneira diferencial na vibração dos sons de toda a floresta, como arma da “resistência” indígena contra os inimigos. Com o inesperado do que vem, da palavra que abre o segundo verso, a quebra do primeiro é fortíssima: “No silêncio de minha flecha/ Resisti […]”. Na passagem do primeiro para o segundo verso, no intervalo da quebra, uma súbita frenagem dada pela inversão ou pela anástrofe, uma contenção da respiração como no instante imediatamente anterior ao em que se solta o tensionamento, que resiste, da corda de fibra de imbira ou do que quer que seja.
Se, como mencionado, o paradigma da resistência do silêncio ou do silêncio enquanto resistência que se transmite pelo que se ouve comparecia na abertura do poema (“No território indígena/ O silêncio é sabedoria milenar/ Aprendemos com os mais velhos/ A ouvir, mais que falar”), se a segunda estrofe nos explicita a primeira, ou seja, de onde vem a importância dessa “sabedoria milenar” de um povo que, para sobreviver, tem de resistir, tem de aprender “a ouvir, mais que falar”, se a terceira estrofe desdobra que “Silenciar é preciso” para ouvir “O choro do nosso chão” ou para ouvir as dores dos sofrimentos de tanto sangue derramado na terra para a sobrevivência se fazer, se a quarta vem dizer o que a “voz da Natureza” ou “o canto da mãe dágua” demanda, seu fim, com a quinta estrofe, desdobra e, a um só tempo, resume o vínculo intrínseco entre silêncio e o que fora chamado de resistência: “É preciso silenciar/ Para pensar na solução/ De frear o homem branco/ E defender nosso lar/ Fonte de vida e beleza/ Para nós, para a nação!” Quando o silêncio é resistência, a solução, hoje, não é mais a flecha enquanto artefato bélico para, em guerra, combater o homem branco, mas o que, na flecha, silencia, o silêncio da flecha propiciando a resistência pela força do pensamento (“Para pensar na solução/ De frear o homem branco”).
Como outros indígenas vivos, Márcia Wayna Kambeba sabe que, atualmente, se enfrenta melhor o homem branco com as palavras, com a educação, com a poesia, com o canto, com a arte, com a cultura, com a tradição, com a política, com a intervenção legislativa etc. do que com os artefatos bélicos. Em “Minha pedra rosa”, publicado originalmente no blog da autora em 2015, Eliane Potiguara, de modo parecido tanto na arma escolhida quanto na semelhança entre ela e a flecha, afirma: “E elegi também a palavra como minha arma, aquela que se atira ao vento, que flutua e ecoa nos ouvidos e espíritos humanos”. Com essa mesma comparação entre palavra e flecha, Kaka Werá Jekupé abre o livro A terra dos mil povos: “De acordo com nossa tradição, uma palavra pode proteger ou destruir uma pessoa; o poder de uma palavra na boca é o mesmo de uma flecha no arco”. Dando o tom de tudo o que é, estabelecendo o vigor natural do coração e de tudo que o cerca, entoando o imaterial da floresta em sua matéria que na toada fala, performativa, a palavra é flecha – poder –, jamais meio para dizer um fim previamente dado fora dela. Feita por artistas entendidos enquanto “guerreiros da arte” – guerreiros sem outras armas senão as palavras –, “a literatura indígena é uma maneira de usar a arte, a caneta, como uma estratégia de luta política. É uma ferramenta de luta”. Em nossos dias, para os povos das florestas, que, há mais de 500 anos resistem à insistente tentativa de extermínio, é consensual a inter-relação entre resistência e palavra, entre resistência e afirmação da voz, entre resistência e pensamento, entre resistência e diálogo, entre resistência e ideia, entre resistência e arte, entre resistência e literatura…
Como outros indígenas vivos, Márcia Wayna
Kambeba sabe que, atualmente, se enfrenta melhor
o homem branco com as palavras, com a educação,
com a poesia, com o canto, com a arte, com a
cultura, com a tradição, com a política, com a
intervenção legislativa etc. do que com os artefatos
bélicos
Esse mesmo tema presente em “Silêncio guerreiro”, de Márcia Wayna Kambeba, retorna no poema “Território ancestral”, que parte igualmente do que é inesquecível, do que não se pode, de maneira nenhuma, esquecer, da verdade a ser guardada, do que a história não cessa de revelar aos indígenas, de “O que fazer com o homem na vida/ Que fere que mata/ Que faz o que quer?// Do encontro entre o ‘índio’ e o ‘branco’/ Uma coisa não se pode esquecer/ Das lutas e grandes batalhas/ Para o direito à terra defender”. A primeira estrofe, de onde o poema parte, é também, em repetição, a última, a estrofe a que, circularmente, o poema, sem querer terminar, volta, sendo sua questão o problema circular, infindável, incessante, que foi, que é e que vem, dos povos nativos. Defender a terra dos invasores, que chegaram depois, armados, querendo tomá-la à força de quem, desde o começo mítico dos tempos, estava nela, é o mesmo que defender o “território ancestral” com tudo o que, material e imaterialmente, isso implica. Nos povos originários, há uma indiscernibilidade completa entre o que se pode chamar de material e imaterial. Entre esses dois modos de vida, o dos colonizadores e o dos povos da floresta, o dos exterminadores e dos exterminados, o dos racistas e o dos que sofrem discriminação, a diferença é gritante, como com lucidez coloca o “Manifesto Brasil 500 anos de resistência indígena, negra e Popular”, assinado, em dezembro de 1998, por diversos grupos: “Vamos celebrar sim, as vitórias e derrotas de uma luta sempre desigual: de um lado a riqueza, o poder, as armas, o desprezo pela vida e a arrogância de classe, de outro lado, a vida coletiva, o trabalho humano, os despossuídos de tudo, a solidariedade de classe, a humildade e generosidade anônimas, a infinita esperança”.
O que fazer com esse homem que fere, mata, faz o que quer? O que fazer com essa vida que fere, mata, faz o que quer? O que fazer com esse homem infinitamente desmesurado, que não vê no outro qualquer limite para suas ações? Nesse poema, a mesma questão do anterior retorna, com uma diferença quanto à eficácia dos usos das armas dos indígenas e dos brancos: “A arma de fogo superou minha flecha/ Minha nudez se tornou escândalo/ Minha língua foi mantida no anonimato/ Mudaram minha vida, destruíram meu chão”. Em um princípio de realidade avassalador, esclarece-se que “a arma de fogo [do branco] superou minha flecha”, causando, por aqueles “Que faz[em] o que quer[em]”, por aqueles que se colocam na posição de soberanos, não tendo na alteridade um limite aceitável, invasões territoriais, destruições da natureza, assassinatos, escravizações, estupros, tráfico de mulheres, destruições de línguas, tradições, cosmovivências, espiritualidades etc. etc. etc. A derrota da flecha para as “armas de fogo” inaugura a derrocada da sabedoria ancestral pela perversão dos invasores modernos com sua tecnologia bélica mais avançada, posto que industrializada, economizada.
Diante da fratura temporal causada pelas violências das ações colonialistas e neocolonialistas, é preciso aos indígenas uma estratégia que, como no poema anterior, não se passe pelo confronto das tecnologias bélicas, do qual sairiam indubitavelmente perdedores. É necessária uma nova “estratégia de sobrevivência”: “Como estratégia de sobrevivência/ Em silêncio decidimos ficar./ Hoje nos vem a força/ De nosso direito reclamar./ Assegurando aos tanu tyura / A herança do conhecimento milenar”. Em um glossário ao fim do livro, é explicado que “tanu tyura” são os “nossos pequenos”, as crianças, aqueles a quem se deve transmitir o “conhecimento milenar”. De novo, essa nova estratégia se passa, primeiramente, pelo silêncio, para que, por ele, possa advir um pensamento mais adequado à luta na atualidade, para que, por ele, pelo silêncio, possa-se tomar a decisão de ficar e de usar meios condizentes com os dias de hoje, como palavras que expressem um “direito” – que defendam algo da ordem da justiça.
A derrota da flecha para as “armas de fogo”
inaugura a derrocada da sabedoria ancestral pela
perversão dos invasores modernos com sua
tecnologia bélica mais avançada, posto que
industrializada, economizada
As palavras constituem um campo no qual se pode e se tenta lutar, o da demanda pela justiça (pelo direito, pelo legislativo, pela diplomacia) no lugar das flechas e da guerra, o da demanda de “nosso direito de reclamar” pelo “território ancestral”, o direito desse povo desaldeado reconquistar ou reconstruir o que se encontra na encruzilhada entre o arcaico e o atual, no arcaicontemporâneo do que comparece no intervalo entre o que podemos chamar de o material e o imaterial de suas tradições. O fato de os indígenas saberem que as palavras são forças e que, contrariamente aos brancos (que não estudamos, senão excepcionalmente, qualquer língua indígena), têm de ir em direção à alteridade (às línguas “emprestadas” [Alvaro Tukano] ou “fantasmáticas” [Kopenawa]) – enquanto nós, em posição soberana, nos preservamos autocentrados –, faz-se presente na aprendizagem que muitos realizam da língua portuguesa e da escrita do colonizador. Apropriar-se da língua e da escrita é se apropriar da arma dos colonizadores para poder melhor se defender deles, possibilitando negociações com instituições estatais, redações de documentos reivindicatórios, participação direta na elaboração de leis e políticas públicas…
Evidenciando, em outro tom, alguns dos modos do que Márcia Wayna Kambeba falava de “No silêncio da minha flecha/ Resisti, não fui vencido/ Fiz do silêncio a minha arma/ Pra lutar contra o inimigo” e de que “É preciso silenciar/ Para pensar na solução/ De frear o homem branco/ E defender nosso lar/ Fonte de vida e beleza/ Para nós, para a nação!”, Ely Ribeiro de Souza, escritor da etnia Macuxi, afirma que, para o indígena, a escrita “constitui-se numa literatura – poesia-práxis – usada para confrontar e reagir às ações regionais, de grileiros, mineradoras, pecuaristas invasores de seus territórios”, e também ao Estado nacional com suas estratégias de “manipulação das ideias, atualizando seus mecanismos de controle social” em busca de “implantar seu projeto civilizatório”. Ele acrescenta: “Os textos escritos por autores indígenas podem nos dar a oportunidade de contarmos uma outra história, sobre nossas tradições que foram desvirtuadas por estranhos que se apropriaram de nossas histórias e as transformaram em folclorismo, modismo literário, justificativas nacionalistas que em muito prejudicaram e distorceram nossas histórias”. É essa outra história que se deixa ver nessa poesia de confronto, essa história que, sem essa poesia e outros testemunhos, não seria contada para nós, essa outra história, de resistência, que se deixar ver nos poemas interventivos que aqui se lê.
Como Carlos de Assumpção e Eliane Potiguara, Márcia Wayna Kambeba sabe – como sabem os que sofrem na carne da história do Brasil –, que, hoje, a guerra, esse limite fabricado entre a vida e a morte, essa obrigatoriedade da assunção desafortunada do cotidiano da morte em vida, leva a resistência a transformar o combate de armas em outro travado nas palavras, de tal modo que elas nada têm de autônomas nem, em sua urgência, buscam apenas algo que se convencionou chamar de o belo estetizado. Em um ensaio intitulado “Literatura indígena: da oralidade à memória escrita”, dizendo que “À noite o indígena sonha com o que vai ser escrito ou com a música a ser cantada com os guerreiros da aldeia. Acredita-se que quem escreve recebe influências de espíritos ancestrais, dos encantados, por isso a literatura dos povos da floresta é percebida com um valor material e imaterial”, Márcia Wayna Kambeba defende uma poesia pedagógica e de denúncia, que, “presente em cada gesto, em cada palavra, em cada lugar”, seja capaz de poetizar a vivência dos povos, resguardando sua história, suas culturas, territórios, o que lhes é sagrado, a valorização da mulher e tantos outros temas. Ela afirma que, carregada de ancestralidade – contra o apagamento da história e da memória –, a literatura indígena “Diferencia-se de outras literaturas por carregar um povo, história de vida, identidade, espiritualidade”, guardando uma “memória de saberes” que, ameaçada de desaparecimento, resiste nas palavras escritas.
Se resistir se dá quando aquele que, de qualquer maneira, tem de morrer, quando aquele contra o qual tudo é feito incessantemente para aniquilá-lo, insiste em sobreviver, persevera em uma vida, mesmo que arriscada, possível, em uma vida, mesmo que rebaixada, digna, em uma vida que preserve seus valores, contemple suas tradições, permitindo a autodeterminação acerca de seus modos de vida, hoje, é na palavra que a luta pela vida e pelo que de mais significativo a constitui é travada. Nessa luta para que a palavra possa intervir radical e literalmente a favor da vida, coloca-se a poesia contemporânea autoral de mulheres dos povos tradicionais, como Eliane Potiguara, sobre quem escrevi anteriormente, e Marcia Kambeba. Enquanto resistência, tal poesia acontece ajudando a compor a vida política dos indígenas contra o extermínio que sofrem e se confundindo com a luta política frente àqueles que insistem em dizimá-los. Assim, a memória desses povos serve efetivamente de legado “para o recomeçar de um tempo novo” a dizer respeito a todos nós: “Sou Tuxaua Kambeba e quero falar/ Antes que a idade não me permita mais lembrar/ Da vivência de minha infância/ Das lembranças do meu povo/ Servindo de alguma forma/ Para o recomeçar de um tempo novo.// Da vida que tive, lembro como agora/ Das lutas pela terra, pela vida que foi embora/ Para muitos de meus parentes/ Que morreram na batalha/ Por um lugar pra viver/ E pela continuidade de um legado/ de uma história. […]”.
Alberto Pucheu é poeta e professor de Teoria Literária na UFRJ. Publicou, entre outros, de Que porra é essa – poesia?, A fronteira desguarnecida e Para que poetas em tempos de terrorismo?