O silêncio de Bolsonaro
Uma vez presidente, Bolsonaro não alterou em nada seus métodos e formas de atuar (Foto: Marcos Corrêa/PR)
Pela primeira vez, Bolsonaro se calou. Lá se vão mais de vinte e quatro horas sem um grito, uma bazófia, uma ameaça, uma ofensa ou fanfarronice. Talvez o último arroubo do antigo Bolsonaro tenha sido a frase “acabou, porra!”, uma vez que a fala “está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar” já compõe o léxico do novo Bolsonaro.
Em 2003, ainda deputado, confrontado no campo das ideias pela deputada Maria do Rosário, reagiu com uma expressão vil, menosprezando a dignidade humana, como se uma violência brutal, o estupro, pudesse ser considerada uma benesse, algo bom para acontecer com uma mulher. O ato rendeu condenação na justiça.
O então candidato a presidente Bolsonaro, portanto, o velho Bolsonaro, em palestra na Hebraica do Rio de Janeiro, após dizer que caso fosse presidente não haveria demarcação de terras indígenas ou quilombolas, praticou inominável ato de racismo ao comparar quilombolas a gado. O ato gerou condenação na justiça.
A lista de palavras e gestos abomináveis antes da posse é interminável e tem, na ameaça de motim e tentativa de explosão à bomba de quartéis em 1987 (chamada operação Beco sem Saída), um ponto inicial na sua extensa folha corrida. Os coronéis responsáveis pela investigação decidiram, por unanimidade, pela condenação. “O Justificante [Bolsonaro] mentiu durante todo o processo, quando negou a autoria dos esboços publicados na revista VEJA, como comprovam os laudos periciais.” Segundo documento assinado por três coronéis, Bolsonaro “revelou comportamento aético e incompatível com o pundonor militar e o decoro da classe, ao passar à imprensa informações sobre sua instituição”.
O jovem Bolsonaro recorreu ao Superior Tribunal Militar e a Corte, por quatro votos a oito, o considerou “não culpado” da acusação de autoria dos planos de explosão de quartéis e da adutora que abastecia a cidade do Rio de Janeiro, mas o puniu com 15 dias de prisão em razão de artigo publicado na VEJA em que Bolsonaro reclamava de salários baixos. Depois, perícia da Polícia Federal reafirmou a caligrafia de Bolsonaro como autor dos croquis e planos de explosão. O Exército, em uma solução de meio termo, preferiu não expulsá-lo, embora houvesse elementos suficientes para tanto. Quando elegeu-se vereador, foi para a reserva como capitão.
Vê-se que a trajetória de Bolsonaro antes da posse na presidência da República era um rosário de crimes, ameaças, punições e algumas “passadas de pano”. Uma vez presidente, não alterou em nada seus métodos e formas de atuar. Continuou ameaçando, praticando atos violentos, desprezando a vida humana e agredindo adversários reais e imaginários.
Transferiu a culpa da sua incapacidade inicialmente para a centro esquerda. O comunismo, sempre ele, também serviu e serve de pano de fundo para suas escapadas retóricas. Governadores, Globo, Folha de S.Paulo, Estadão, antigos aliados, Congresso, China, todos eles já foram utilizados como instrumento de cortina de fumaça para seus desatinos. Ultimamente, escolheu como alvo o STF e seus ministros como culpados pela sua completa incapacidade de comandar uma nação. Bolsonaro já culpou até Leonardo di Caprio e a ativista Greta pelos incêndios na Amazonia.
Apesar disso tudo, Bolsonaro conseguiu chegar até aqui, passados quase um ano e meio de gestão. No caminho, perdeu aliados, apoio e criou inimigos aos montes. Mesmo pisando sobre uma montanha de 50 mil brasileiros mortos, sem contar as cifras ocultas da pandemia, conseguiu encontrar a quem transferir a culpa da sua política genocida.
Mesmo tendo chegado até aqui, o que de certa forma é impressionante, pela primeira vez Bolsonaro se calou. Lá se vão dias de silêncio. E, por incrível que pareça, esse silêncio não se deve a ocupação das ruas, aos atos da oposição ou da direita brasileira. Quem calou Bolsonaro foram alguns recibos de pagamento da escola de dois dos seus netos em dinheiro vivo por um novo morador do presídio de Bangu e um coiteiro de Atibaia com procuração para falar em nome da família e com acesso livre à corte e aos palácios do reino bolsonarista.
Patrick Mariano é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP”As instituições estão funcionando”