“A esquerda se divide por ideias e a direita se une por interesses”

“A esquerda se divide por ideias e a direita se une por interesses”
Com Bolsonaro, um paradigma mudou na política nacional e nunca mais seremos iguais (Foto: Marcos Corrêa/PR)

 

O título desta coluna é uma citação do carismático ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, que me fez pensar muito esta semana. 

Estou desde abril de 2009 observando política nacional nas arenas digitais, que são os radares mais sensíveis para se detectar e acompanhar alterações na paisagem. Vi quando começaram a se formar as constelações de direita: os militantes da homofobia e evangélicos conservadores, foram dos pioneiros, depois a direita antissocial, os intervencionistas militares, a turma contra a corrupção, os liberteens e ultraliberais, e o lavajatismo. Depois vi quando foram se aglomerando e formando galáxias no antipetismo, no antilulismo, na antipolítica. Vi quando começou a se formar, em 2016, a frente ampla que redundou no bolsonarismo pela atração de todas essas forças antes mencionadas.

Quero dizer que a direita conservadora que nos governa não nasceu pronta, foi formada a partir de várias partes. Evidentemente, o bolsonarismo não teria sido bem-sucedido em atrair todas essas forças e em liderá-las para derrotar a esquerda e a direita em 2018 se não tivesse capturado alguma coisa importante na sociedade, um desejo de mudança radical, um cansaço da esquerda, um sentimento generalizado de repugnância pela política tradicional e seu costume de servir-se do dinheiro público. Algo foi capturado, magnificado e disseminado. E teve também o caos gerado pelo impeachment e pela operação Lava Jato, pois o caos sempre provê as melhores oportunidades para forças obscuras e marginais. De toda sorte, o fato é que o apoio a Bolsonaro se forma como uma frente ampla, composto por uma cola precária e eventual, em grande parte oportunista e improvável, mas suficiente para a impressionante vitória do candidato da extrema-direita há dois anos.

Isso para dizer que não entendo por que tanto mimimi e tanta “problematização” para que certas figuras da esquerda se juntem nas frentes amplas e movimentos pró-democracia que começaram a surgir essa semana (#Estamos Juntos e Somos 70%). 

Maio de 2020 será reconhecido como o mês em que os Bolsonaros e o bolsonarismo que lideram mostraram a sua face mais medonha. Enquanto o vírus enluta mais de mil famílias por dia e já passamos de meio milhão de infectados, enquanto nos tornamos o centro da pandemia mundial com um governo que mais sabota do que ajuda, o bolsonarismo trava a sua guerra particular contra o STF e passou o mês concentrado em como deve ser feita uma intervenção militar no país. Foi demais até para o elástico padrão de passividade e tolerância dos democratas brasileiros e, de repente, um “todos contra o bolsonarismo e pela democracia” se apresentou como possibilidade.

Mas Lula reluta. Disse que “tem pouca coisa de interesse da classe trabalhadora nesses manifestos”. Que não é maria vai com as outras. E que tem gente envolvida que está longe de ter convicções democráticas. Deve estar certo em todas as três teses, mas quando era para todos reconhecerem que Bolsonaro era uma ameaça à democracia e votar em Haddad no segundo turno de 2018, a causa era urgente e a pauta, universal. Por que enfrentar o veloz agravamento da inclinação fascista do bolsonarismo não pode ser universal o suficiente? Sem mencionar que em um eventual golpe militar ou qualquer gambiarra autocrática que venha a se instalar, aí é que não sobrará mesmo nada de Lula ou da classe trabalhadora. Por fim, se o MBL e Temer, que não podem ser acusados de amantes das regras do jogo democrático, estão em um movimento pela democracia, eles é que deveriam resolver seus escrúpulos de consciência, se os têm, e não os que sempre lutaram pela democracia e contra o fascismo, que têm um lugar natural numa frente pró democracia liberal. 

Quer dizer que ultraconservadores, conservadores moderados, reacionários, conservadores religiosos, direitistas, extrema-direita, gente armada, ultraliberais sem convicções democráticas, fazendeiro ogro, nazista, viúva da ditadura, gente com tesão por armas, farialimers, empresário da crise econômica, miliciano, procurador de Curitiba, a turma do jaleco branco e do mundo jurídico, financistas, crentes e descrentes, em suma, a Arca de Noé que se juntou ao bolsonarismo em 2018, puderam se unir para ganhar uma eleição e governar, por que só os liberal-democratas é que não podem? 

Este é o ponto. A direita conservadora foi pragmática, não ficou discutindo a relação e pedindo sinceridade e pureza. Vejam a união do lavajatismo com o bolsonarismo para ver quão esdrúxula foi a frente ampla que criaram e que, pouco a pouco, à medida que o bolsonarismo se volta contra as instituições da democracia liberal e contra a renovação da política, vai vendo as suas partes se distanciarem. Já a esquerda e centro estão a discutir a relação. E aí dá-lhe mágoas, solicitação de provas de arrependimento, e dá-lhe triagem para ver se os odiados ex-amores estão no grupo e dá-lhe exigência de que a minha pauta esteja entre os princípios. Caramba! É uma frente ampla para sobreviver, não a escolha de parceiro de cama e de vida.

Com Bolsonaro, um paradigma mudou na política nacional e nunca mais seremos iguais. Não dá para voltar atrás, nostalgia agora seria fatal, restauração é impossível e a ideia de que é preciso esperar o povão se revoltar contra o tirano é suicídio. Sim, é preciso criar uma nova base, reconquistar a imaginação dos cidadãos, mas antes é preciso tirar a bota do bolsonarismo do pescoço da democracia. 

Como diz o pensador americano Mark Lilla, “fazemos política com o país que temos, e não com o país que desejamos”. Manifestos são o de menos, pode-se assiná-los ou não, o importante é ter número e força. De fato, a democracia se faz mais com democratas do que com aparatos. Mas, ou produzimos uma convergência que agregue os liberal-democratas agora, para planejar objetivos e implementar estratégias que se possam compartilhar, ou seremos condenados à política identitária, arrebentados em facções e fragmentos, lambendo obsessivamente as nossas “especificidades” e gozando em nossos rituais de autoconcedida superioridade moral.  Como diz Mujica, a direita encontra nos interesses uma razão suficiente para se unir, a esquerda e o centro buscam na ideologia excelentes razões para se separar. Não dá para quebrar essa maldição? 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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