Crônica da barbárie anunciada
São Paulo, SP, 19 de maio de 2020 (Foto: Roberto Parizotti/Fotos Publicas)
“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às cinco e meia da manhã”. Na primeira linha de Crônica de uma morte anunciada (1981), Gabriel García Márquez conta ao leitor que Santiago Nasar vai morrer. Todo mundo no povoado sabe que ele vai morrer, mas cada um tem suas razões para nada fazer. A morte anunciada do protagonista se cumpre com a ciência generalizada do povoado.
Hoje, somos Santiago Nasar. O fascismo no poder anuncia seu projeto de golpe, que trará repressão e violência estatal. A eugenia fascista no poder anuncia a morte de milhares de brasileiros pobres, negros; dos excluídos de toda sorte, dos frágeis e idosos. Indiferentes ou pensando nos próprios interesses, muitos dos que podem agir fecham os olhos, tal como os habitantes do povoado em que vivia o personagem de Márquez.
A barbárie está anunciada para onde quer que se olhe. Nas notícias de jornais, nos posts de redes sociais, no vídeo ministerial, na contagem crescente de vítimas, nas covas abertas, nas hordas brutalizadas de fascistas tomando os espaços públicos.
Há os que alertam. “Guardadas as devidas proporções, o ‘ovo da serpente’, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar parece estar prestes a eclodir no Brasil”. É o decano da mais alta Corte advertindo que “bolsonaristas querem implantar uma desprezível e abjeta ditadura militar”.
Celso de Mello sabe ler a História, e são muitas as semelhanças. Na República de Weimar e aqui, agora, a barbárie chegou ao poder pelo voto, sob uma Constituição democrática e progressista que o eleito sempre disse que queria destruir. Tanto um quanto outro alcançaram o governo anunciando a barbárie.
Em Mein kampf (1925), Hitler escreveu: “temos que ser cruéis. Temos que recuperar a consciência tranquila para sermos cruéis. Que sorte para os ditadores que os homens não pensam”. Bolsonaro, por anos a fio, defendeu a ditadura, a tortura e o assassinato de opositores políticos. Tanto ele quanto Hitler tomaram o controle do Estado em meio a graves crises econômicas e sociais. Ambos têm a seu dispor gente brutalizada, animalizada e movida pelo ódio, além do apoio de uma parte insana da sociedade – que existe em qualquer sociedade, mas que o fascismo faz emergir com força.
E, no entanto, aqui e agora, como lá antes, há os que não veem o perigo e há os que veem, mas preferem seguir seus próprios caminhos mesmo com a serpente rompendo a casca do ovo.
Em meados dos anos 1920, os comunistas alemães negligenciaram o nazismo, pensando que, ao final, tudo aquilo acabaria lhes favorecendo. Stalin e os comunistas alemães elegeram não o nazismo, mas a social-democracia como a grande inimiga. A social-democracia era para eles o social-fascismo ou a parcela moderada do fascismo. Os comunistas alemães aprenderam a lição morrendo nos campos de concentração e, a União Soviética, tendo parte do país destruído e perdendo 20 milhões de vidas.
A lição da História está na síntese do anarquista Buenaventura Durruti, ainda nos anos 1930, antes de se desenrolar toda a barbárie nazifascista: o fascismo se destrói. Com o fascismo não se dialoga, não se concilia, não se admite omissão, não se admite outro cálculo ou estratégia que não seja o aniquilamento. O fascismo se destrói porque o fascismo, se não contido, destrói inevitavelmente. É essa a sua razão de ser. A barbárie é a sua natureza. Quem não destrói o fascismo é destruído. Simples assim.
Mas aqui, no Brasil, continua-se sem entender que o fascismo se destrói. Trata-se de mais um paralelo com os estertores de Weimar, com a agravante de que hoje há uma experiência cujo ensinamento é claro. Bolsonaro cultua a violência. Bolsonaro quer armar suas hordas. Bolsonaro é eugenista. Toma leite para mostrar que o branco é superior. Pouco importa quem vai morrer pelo vírus, se são velhos ou já têm doenças. Menos ônus para a sociedade, alívio para a Previdência. Bolsonaro anuncia que muitos vão morrer, “e daí?”. Bolsonaro tem um projeto e, se puder, irá executá-lo, assim como Hitler executou o seu porque pode.
O erro dos comunistas nos anos 1920 e 30 vai se reproduzindo agora. Eles pensavam que, ao fim e ao cabo, o combate ao fascismo não era impositivo; que poderiam prescindir de alianças, abrir mão de apoio ou não distinguir fascismo de antifascismo; que o tempo proporcionaria a deterioração natural do monstro.
Muitos caminham por veredas semelhantes. “Ninguém me respeita no PT. Eu quero francamente que eles vão à puta que pariu”, disse Ciro Gomes. “Em 2014 a campanha de Dilma inaugurou as fakes news. Não era o gabinete do ódio, mas era uma espécie de comitê do ódio”, disse Marina Silva. “Sinceramente, não tenho condições de assinar determinados documentos com determinadas pessoas”, disse Lula.
Dois ex-presidentes fazem declarações equivocadas ou moles diante do avanço da barbárie bolsonarista. Para Lula, não podemos sair por aí fazendo alianças a torto e a direito com gente que não está preocupada com os direitos dos trabalhadores – o que soa estranho, dito por quem nunca teve problemas com alianças, alguém que fez escolhas bastante discutíveis e trouxe para seu governo quadros de direita que jamais tiveram qualquer preocupação com os direitos dos trabalhadores.
Na retórica de Fernando Henrique Cardoso, Bolsonaro “está fazendo coisas que não são apropriadas”. Há uma política genocida em curso, mas o adjetivo é frouxo, lânguido: “apropriado”. Não é apropriado tal como, digamos, não é apropriada a falta de modos à mesa. Impeachment? Já tivemos dois, são traumáticos…
Há também os ressentidos: não podemos assinar manifestos, fazer aliança ou frente com quem apoiou o golpe de 2016. São os que tomam veneno pensando que vão matar o outro. Aqueles em que o juízo de certo e errado passa pelo filtro das emoções e desaparece. Há aqueles que querem impor aos aliados certas condições, o que desnatura o requisito lógico prejudicial do conceito: aliança é entre diferentes. Não se faz frente consigo mesmo.
O afastamento de Bolsonaro é para já. Será tanto mais rápido quanto mais ampla for e mais agilmente se mover a frente antifascista. Teremos companhias incômodas, mas é algo que já escapou da mera esfera da política. É imperativo categórico. Limite entre civilização e barbárie. Viver ou morrer. E tudo anunciado.
Luiz Carlos Prestes subiu ao palanque de Vargas, que mandara sua mulher, Olga Benario, grávida, judia, para morrer na Alemanha nazista. Submeteu-se à consciência, entre o que entendia ser o seu dever e sua própria individualidade, suas emoções e sentimentos. Usou a razão e olhou adiante de si. Hoje, trata-se apenas de ser antifascista. Amanhã a luta é outra. Albert Camus, que foi goleiro, disse que tudo que sabia da vida havia aprendido com o futebol. No domingo, o futebol nos mostrou como ser antifascistas.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP