Não é sempre que o fascismo conduz a Auschwitz

Não é sempre que o fascismo conduz a Auschwitz
Hannah Arendt durante o julgamento de Adolff Eichmann em 1960 (Reprodução)

 

Na última coluna que publiquei neste espaço, Por que dizer fascismo: o centauro de Maquiavel, sustentei que o traço básico do fascismo, como forma de dominação capitalista, era a ideia de homogeneização da sociedade segundo o padrão da convencionalidade burguesa, branca, ocidental, heterossexual, cristã, ou tudo que certa tradição cunha como “normal”. Esse padrão conduzia à identificação da diferença ou como “doença” ou como o “mal” e, consequentemente, à sua desumanização. Formas de exclusão, de violência física e moral, de negação de direitos são assim legitimados.

Lembrei o centauro de Maquiavel. O Príncipe, a dominação política, pode ser representado pela metáfora do centauro, metade animal, metade homem. Tanto precisa da força do animal quanto da astúcia humana. Domina pela violência e pelo consenso que por estratégia, virtu, consegue obter, alcançando assentimento e obediência. Sustentei que o fascismo é a pior forma do centauro porque nele, além da violência extrema, a dominação pelo consenso é dirigida para o irracional da massa, para que parte da sociedade consinta com essa violência ou adira ao aniquilamento, moral ou físico, de outra parte da sociedade.

O fascismo é o mal absoluto na política, e para compreender o fascismo é preciso compreender a natureza do mal.

Ao analisar a personalidade de Eichmann, Hannah Arendt deu uma contribuição decisiva para isto, reelaborando noções filosóficas antigas por meio da expressão banalidade do mal.

Eichmann, de acordo com a narrativa de Arendt, não se sentia um innerer Schhweinehund, bastardo imundo. Somente ficava com a consciência pesada quando “não fazia aquilo que lhe ordenavam”, mesmo que isso significasse “embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado”.  Todos os psiquiatras que o examinaram haviam atestado sua normalidade e um deles disse que era mais normal do que se sentira após entrevistá-lo. Em vez do ser tonitruante ou ardiloso, o estereótipo do mal que certamente muitos imaginaram, ali estava um homem burocrático, medíocre, incapaz de dizer algo que não fosse o mais trivial lugar comum e no qual se podia até ver certas virtudes pessoais, segundo um dos psiquiatras, como o de ser atencioso e dedicado à família e às relações próximas.

O que Arendt denominou de banalidade do mal foi o vazio de pensamento que percebeu na alma de Eichmann, que aparecia como a lacuna entre o dever e as consequências do dever que a personalidade burocrática e medíocre de Eichmann demonstrava. Quando um dos juízes perguntou a Eichmann sobre a contradição entre dever e consciência, respondeu que o dever está acima de tudo. Seu juízo moral, a distinção entre o certo e o errado, se esgotava, pois no conceito de obediência era indiferente ao sofrimento atroz e assassinato de milhões de pessoas em uma engrenagem da qual era peça importante.

Arendt dá-se conta de que errara ao usar anteriormente a expressão mal radical. O mal era como um fungo, superficial, mas radical significa ir às raízes. Podia ser extenso, mas não tinha raízes porque só se vai às raízes pelo pensamento.

O justo e o bem implicam pensar. Um bom exemplo é o conceito de reversibilidade, usado por alguns filósofos morais, como John Rawls. Significa que diante de um conflito, o sujeito deve empreender o esforço de, colocando-se no lugar do outro, verificar se seu juízo seria o mesmo. A reversibilidade é radical porque implica o pensamento – vai-se às raízes do conflito, vai-se ao outro, em um um processo complexo da razão.

A ideia de que o justo e o bem impõem um esforço do pensar remonta a Platão/Sócrates e encontra uma rigorosa formulação em Kant. Para Kant, “não matar” porque isto está na lei positiva ou nos 10 mandamentos não é um juízo moral. Seguir a norma porque a autoridade jurídica ou religiosa a determinam é um modo de não pensar. A nossa razão deve construí-la a partir de si mesma, incondicionalmente, sendo a própria consciência a única autoridade legisladora e o sujeito moral presta contas somente a ela. No imperativo categórico o sujeito moral não mata porque como ser racional não pode ter a vontade de viver em mundo em que matar seja lei universal. O juízo moral constitui-se por um modo, uma forma de raciocinar, do qual deriva a norma.

Quando Eichmann mostra a banalidade de sua conduta dizendo que o dever está acima da consciência, significa que abre mão do que há de mais nobre na condição humana, que é o pensar. Torna-se coisa, peça de engrenagem, corpo sem alma.

Não é sempre que o fascismo conduz a Auschwitz. Mas se tomarmos agora o processo político e social do Brasil hoje, veremos como a banalidade do mal espalhou-se como o fungo de que falava Hannah Arendt, como aparece esse vazio da consciência moral que vem se tornando uma força política e social que ameaça conduzir o Brasil à barbárie ainda além da perversa e excludente estrutura social que sempre tivemos.

A banalidade do mal aparece na indiferença ou na adesão à violência policial contra excluídos. Na censura às artes. Na perseguição ao conhecimento e à pesquisa na academia. Na violência contra mulheres quando “merecem”. Na homenagem a um torturador perante milhões de brasileiros por um candidato a presidente. Na sua declaração de que prefere o filho morto a gay, incentivando a violência contra as travestis e gays, e ainda que certas mulheres podem ser estupradas. No endosso de outro candidato à violência da força policial que chefiava como governador com a frase de faroeste  “quem não reagiu está vivo”. Na fala de um candidato a vice-presidente estigmatizando 54% da população, os negros, como malandros e justificando a miséria em que vive a esmagadora maioria deles. Ou responsabilizar os negros pela própria escravidão. No apoio velado ou aberto ao amontoamento de 700 mil pessoas em condições que lembram campos de concentração, no sistema prisional. Na mitificação de um juiz que viola confessadamente direitos e garantias fundamentais e quebra regras jurídicas comezinhas para compor a engrenagem de um golpe de Estado cujo resultado é o aprofundamento da miséria em que vivem milhões de brasileiros.

O que há de comum entre esses exemplos e organizar o transporte em massa de milhões de pessoas para a morte? Neste a violência e a exclusão são imediatas. Naqueles significa a institucionalização, gradativa, lenta, disfarçada, da violência e da exclusão do pobre, do negro, da diferença sexual etc.  O que os une conceitualmente é o vazio do pensamento, a consciência trivial e sem luz. A indiferença às consequências do ato ou juízo. Não pensar é o que há de mais perigoso na vida.


MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP


Acompanhe a coluna Além da Lei, todas as segundas, no site da CULT

(13) Comentários

  1. Fico me perguntando porque a virtude moral sempre tem de estar do lado da “esquerda”, para os autores que escrevem para Cult. É um doga ideológico. E para fugir do conceito de moralidade cristã, “superada ” e “conservadora”, faz-se um malabarismo teórico para construir um conceito, que no fundo nem mesmo a esquerda acredita, já que evita lidar com subjetividades, por não dominar sua natureza e achar que a realidade é estritamente estsocioeconômica. E os clichês, os estereótipos aparecem em profusão. Talvez o cerne do texto seja a intenção de demonizar o juiz Sérgio Moro, que aparece “anonimamente” citado. Pobre esquerda brasileira, nem se deu conta que o mundo é outro. O seu tom revolucionário, denunciante já não é o mesmo, porque perdeu sua essência, sua legitimidade, sua aderência com a realidade. Lamentável.

  2. o traço básico do fascismo é a supremacia do macho. ele é um sintoma de uma crise do Patriarcado. o fascismo é o viagra do Patriarcado

  3. Excelente análise ! Acabei de assistir o filme, O experimento Milgram, que nos faz pensar na Obediência cega à autoridade e as possíveis consequências de não se pensar, em abrir mão dessa condição que nos humaniza. Gostei bastante.

  4. A clareza com que explica a era da bestialidade em que vivemos onde predomina a banalidade do mal, É proibido pensar e como isso vem sendo construído ao longo de décadas com a grande contribuição da mídia e outras estratégias. A civilidade criou a barbárie. Este texto traz grande contribuição para pensar o momento presente.

  5. Que alento ler esse belíssimo artigo. .. a abordagem da não radicalidade do pensamento fascista é decisiva para entendermos a heteronomia dos discípulos do ‘mito’. Parabéns!

  6. Abordagem maravilhora e tão necessária. Não escondo a angústia de ver os rumos que tomam nosso país, Mas se o pensar não acabou, a esperança também não.

  7. Infelizmente essa é a realidade brasileira atual! Sem dúvida esse é um dos melhores textos que já li! Parabéns!!

  8. Caro Marcio,
    Só li agora seu artigo, escrito antes das eleições, e o saboreio como um manjar, constatando: nós não estávamos errados! Nós, os do grupo #elenão.
    Como é alentador ler algo que explica filosoficamente a onda de ódio e violência que o futuro presidente da república impulsiona, e entender de forma mais conceitual as máscaras de preconceito e intolerância que caíram dos rostos dos que convivem conosco. É como se a ética não fosse mais necessária, uma vez que a banalidade do mal está instalada. Não é preciso mais ter vergonha de ser preconceituoso, nem de levar esta pecha para o travesseiro. Gritar, mostrar, esbravejar preconceito, violência, intolerância é ser autêntico. Talvez eles acham até bonita essa autenticidade, com a mesma alma leve de Eichmann, no mesmo vazio de pensamento “que aparecia como a lacuna entre o dever e as consequências do dever que a personalidade burocrática e medíocre de Eichmann demonstrava”.
    Obrigada, irmão. Nestes dias que eu tenho me calado nas redes sociais, precisei compartilhar seu texto.
    Continue nesse grau de lucidez. Poucos estão conseguindo isso nestes dias.
    abs,
    Mônica Picco
    monicapicco@terra.com.br

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