Da impiedade

Da impiedade
Drauzio Varella e Suzy em reportagem exibida programa Fantástico, da TV Globo (Foto: Divulgação)

 

No início deste mês de março, o programa Fantástico da Rede Globo apresentou uma matéria de Drauzio Varella mostrando como vivem as mulheres trans nos presídios do país. O Dr. Drauzio, como é conhecido, é um humanista, médico oncologista, escritor, cientista e pessoa muito influente na divulgação científica na área de saúde, além de ter um consistente trabalho de muitos anos com população carcerária, frequentemente como voluntário. A reportagem comoveu o Brasil porque, em um dado momento, ante a profunda tristeza e solidão demonstrada por uma interna do presídio em que fazia a entrevista, ofereceu-lhe um abraço.

A comoção durou quase uma semana, sobretudo entre a esquerda e os humanistas, exaustos da aridez e desumanidade desses novos tempos. Até que começou a circular em ambientes digitais, no fim de semana passado (7), a notícia de que a trans abraçada pelo Dr. Drauzio, Suzy, havia cometido um crime hediondo e tinha sido condenada por ter estuprado, matado e ocultado o cadáver de uma criança. Começou neste momento o linchamento moral de Drauzio Varella, figura exemplarmente odiada pela nova direita brasileira, agora acusado não apenas de “passar pano” para criminoso, que é uma recriminação que a direita habitualmente lhe faz, como principalmente de “normalizar” o estupro e a pedofilia, além de ter compaixão “seletiva” pelo criminoso e não pela família da vítima, esta sim, merecedora de um abraço.

Pois é, amigos, a piedade, esta virtude que se define como “a permeabilidade do coração”, que andava escorraçada do Brasil desde que a extrema-direita chegou ao poder, ousou assomar a cabeça na janela por meio do Dr. Drauzio. Apareceu justamente para abraçar uma pessoa que nem sabia mais o que era um abraço humano. A piedade, como é do seu costume, não perguntou se a pessoa era boa, virtuosa e merecedora, nem disto deu recibo e certificado. Viu apenas um humano precisando desesperadamente de afeto em situação desumana, e simplesmente o acolheu em um abraço compassivo.

Nunca um abraço custou tanto e foi tão exemplarmente punido. Foi só a piedade aparecer na soleira, na companhia da humanidade, esta outra sumida, que choveram pedradas e cuspe na cara. O mais sutil que lhe disseram é que quando se enlaça alguém, abraça-se igualmente todos os pecados do abraçado. E que se abraço um pedófilo endosso a sua culpa e “normalizo” a pedofilia. Se abraço uma pessoa trans estou induzindo todas as pessoas a se tornarem trans, pois não rejeitei a monstruosidade que há nessa condição. E que se abraço um criminoso, mas não abraço ao mesmo tempo todos os afetados pelo seu crime, a minha piedade também se transforma automaticamente em um delito e em um insulto.

A atual extrema-direita hegemônica no Brasil gosta de economizar piedade para gastá-la em abraços em milicianos, corruptos e prevaricadores, ou em endosso a torturadores e assassinos políticos. Para pedófilos, assassinos comuns e pessoas trans não pode haver piedade. E cada abraço em uma delas é uma afronta, a ser punida com linchamento. Não contente com o julgamento, a extrema-direita quer regulamentar a piedade, a própria e a dos outros. Ninguém impediu ninguém de abraçar, por exemplo, a mãe da vítima, mas o sommelier de piedade da direita não reclama e se escandaliza porque quer ir abraçar quem ele acha que o merece, e sim apontar o dedo para dizer que o humanista não deu o único abraço autorizado e legítimo. Não só quer dissipar a sua própria piedade com torturadores, como também deseja ter o direito de veto da direção para a qual se encaminha a piedade alheia, que deve ser magra, seletiva e desumana.

O Dr. Drauzio publicou posteriormente um vídeo em que afirma que lamenta que o abraço possa ter causado dor à mãe da vítima. Disse, além disso, em uma nota, que quando um médico cuida e quando um humanista abraça, não cuida nem abraça o crime, mas o ser humano que tem diante de si. Antes, eu acho que um certo “véu de ignorância” é importante para evitar que o médico, o enfermeiro, o advogado, o padre e os religiosos em geral, para dar exemplos de profissões que lidam com problemas semelhantes, sejam influenciados negativamente na sua dedicação à pessoa que está diante deles em estado de necessidade. É um humano e nisso reside toda a informação que deveria bastar.

A esquerda, naturalmente, encontrou no linchamento ao humanitarismo do Dr. Drauzio mais uma evidência, das tantas que temos, da impiedade da nova direita. Não deveria, porém, sentir-se tão superior. A direita e a esquerda igualmente lincham os que consideram “monstros”, e sentem nisso o regozijo por não ter deixado impune um deslize ou delito no seu turno de guarda moral do universo. Não, a esquerda não tem o monopólio da compaixão. Nunca teve. A única diferença entre as franjas impiedosas da esquerda e da direita é que cada uma seleciona as monstruosidades imperdoáveis em uma gaveta diferente. E que é mais fácil para as pessoas comuns entenderem as repulsas da direita do que as da esquerda, devendo-se derivar deste fato as devidas consequências eleitorais.


WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

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