Os demônios da liberdade
Obras de Antonio Obá em exibição na mostra 36º Panorama da Arte Brasileira: Sertão, no MAM (Foto: Divulgação)
Depois de dois episódios de ataques mais evidentes às artes no Brasil, uma sequência de outros ocorreu de maneira mais ou menos surda – tornou-se parte de nosso cotidiano. A violência ostensiva integra a vida de cada brasileiro, dia após dia. Foi no 35º Panorama da arte brasileira: Brasil por multiplicação que Wagner Schwartz apresentou La Bête, performance inspirada na obra de Lygia Clark.
Epígono de Oiticica e Clark, Wagner Schwarz deslocou a obra Bicho para seu corpo. Buscava intensificar as intenções de Clark e abrir fronteiras do campo artístico. Língua incompreensível, porém, aos que vociferaram pedófilo, safado, sujo, porco, pervertido, vagabundo. Na frente do MAM-SP estavam sujeitos que, evocando o nome de Deus, apresentavam-se como defensores da moral e dos bons costumes. Se em 2017, a sanha destruidora da liberdade emergiu de modo restrito no que parecia ser apenas um disparate obtuso de alguns manifestantes de plantão, em 2019 ela assumiu legitimidade governamental em nosso país.
É nesse contexto hostil às vidas de certas populações, às artes e à liberdade de expressão, ligadas às infinitas variações desejantes, que Júlia Rebouças concebe 36º Panorama da Arte Brasileira: Sertão. Numa toada de resistência à destruição a partir daquilo que está nas entranhas de nossa cultura, a mostra une-se a Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. O resgate do Sertão, em seu sentido mais amplo, mostra que há uma materialidade brasileira que perdura e não é fácil de ser aniquilada. O desejo que dela brota tem poder, potência, força – uma aposta nele será essencial para superarmos o caráter destrutivo que, hoje, nos governa.
De uns homens, Deus se esquece. Ficam no apagado da história. Esperam hora e vez. Sem pressa. No espaço do impreciso, pelejam pela existência. De seus direitos, fiam-se ao menos que se constituirá lembrança. Que alguém salve alguns momentos de sua bravura. Sabe-se que a linguagem é a parte que cabe aos humanos. Fantasiação encarnada nas letras do alfabeto, tecida nas malhas da escrita discursiva. Sem leis que não as desenhadas pelas vidas traçadas nas lutas, nas desgraças, nos amores e nas paisagens do Sertão, jagunços guerreavam contra injustiças da norma escrita pelos políticos e fazendeiros. Puxando e alinhavando os fios emaranhados do Sertão, João Guimarães Rosa e Euclides da Cunha deram vida à memória do Brasil de dentro.
Conta Antonio Candido, que em seu encontro com João Guimarães Rosa à beira-mar, quando passeavam em Porto Fino-Ligúria, tentou introduzir o tema da política, declarando-se socialista. Rosa ponderou a questão, emitiu opinião, mas ao fim e ao cabo disse logo o que lhe importava: “a única questão fundamental do homem”, declarou, “é saber se Deus existe ou não”. Na incerteza, escreveu histórias.
Em Grande sertão: veredas, a ficção destaca nomes próprios. Deus criou todas as coisas pelo nome, exceto os humanos. Feitos do barro, só ganham vida pelo sopro divino. O nome de cada recém-nascido é conferido a ele por outros de sua espécie. Pela nomeação, cavam-se fossos por onde desaguarão as águas do destino. Sina. Nada desata-se do nome. Com ele, todavia, coisa alguma está pré-definida – com o registro do nome forma-se apenas um oco que se liga a tradições diversas. São os passos e o desdobrar efetivo da vida que lhe darão consistência material. Pedro Pindó, Valtêi, Quelemém, Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Antônio Dó, Andalécio, Candelário, Jazevedão e tantos outros – cada nome uma promessa de história, uma relação tão complexa quanto singular com as leis e a natureza do Sertão. Por eles, desenham-se mapas geográficos e estudos historiográficos. É pelo teor ficcional, impresso em cada personagem, que Guimarães Rosa teceu a verdade sertaneja que brota das paisagens semiáridas do Brasil, mas que a transcende numa espécie de versão faústica de nossa história.
Contada por Haroldo de Campos, outra anedota envolvendo o escritor de Cordisburgo indica alguns dos tormentos roseanos. No Congresso Internacional Pen Clube de 1966, houve uma homenagem aos escritores, poetas e ensaístas latino-americanos. É saborosa a reconstituição haroldiana das cenas passadas ali. Brasileiros no evento, apenas ele e Guimarães Rosa. O poeta paulistano participava de uma mesa, junto com outros escritores latino-americanos, discutindo o tema “escritor eletrônico”. Mais tímido, Rosa deu uma desculpa qualquer e não integrou a mesa, permanecendo na plateia. De lá, seguiram rumo a um piquenique na baia do rio Hudson, organizado para a ocasião. No dia anterior, conta Campos, ele dera a Rosa dois exemplares da Revista Invenção. Neles estavam os primeiros fragmentos de Galáxias e um prefácio chamado “Dois dedos de prosa sobre uma nova prosa”, no qual Haroldo de Campos explicava a forma de seu texto – ele seria apresentado numa caixa, com as folhas impressas soltas em seu interior, de maneira que não fosse preciso obedecer a nenhuma espécie de ordem linear de leitura.
Expansivo e interessado em estabelecer novas interlocuções intelectuais, além do apetite incitado pela mesa repleta de quitutes, Haroldo de Campos não conseguia escapar à súplica de Rosa, que o chamava de canto. Perturbado, o mineiro disse: “Você me deu aquelas revistas. Você não sabe o que tem nas mãos. Aquele texto é o demo. Você soltou o demo naquele texto. Mas tem uma coisa: não provoque demais o demo. Não faça um livro de folhas soltas, faça um livro comum. O demo já está lá”. No tête-à-tête, Rosa, que na lembrança de Haroldo de Campos estava especialmente “endemoniado” naquele dia, detalha o processo de composição de seus textos, em particular de Grande sertão: veredas: “quando me vem o texto, eu fico nu, rolo no chão, luto com o demo de madrugada no meu escritório e, depois, naquele impacto, naquele impulso, escrevo”. Haroldo de Campos nota que não se tratava de uma metáfora. O demo de Guimarães era um demo encarnado, a forma da negatividade que, para ele, assumia uma força demoníaca.
Se retomo aqui essas cenas diabólicas e faço alusões às questões ontológicas roseanas é porque há nelas três ingredientes importantes para pensar formas de criação artística em 36º Panorama da Arte Brasileira: Sertão – Deus, Diabo e a história daqueles que vieram da terra do sol. Na exposição do MAM-SP, Júlia Rebouças toma o termo Sertão de maneira evocativa. Afetos, formas, ideias e ficções que emerjam do vocábulo são matérias que aparecem de maneira direta ou alusiva. Sua potência é, de qualquer modo, demoníaca. “Sertão”, diz Rebouças, “não cessa de se insurgir contra o colonialismo e de escapar de seus desígnios. Se o imaginário de certo senso comum trata Sertão como vazio, aridez, aspereza ou indigência, a ele confrontam-se as acepções de vitalidade, força, criação, gestadas a partir de uma ordem de saberes e práticas que desafia o projeto colonial em suas reiteradas tentativas de submissão”.
Lá estão Ana Lira, Ana Pi, Ana Vaz, Antonio Obá, Coletivo Fulni-ô de Cinema, Cristiano Lenhardt, Dalton Paula, Daniel Albuquerque, Desali, Gabi Bresola e Mariana Berta, Gê Viana, Gervane de Paula, Lise Lobato, Luciana Magno, Mabe Bethônico, Maré de Matos, Maxim Malhado, Maxwell Alexandre, Michel Zózimo, Paul Setúbal, Radio Yandê, Randolpho Lamounier, Raphael Escobar, Raquel Versieux, Regina Parra, Rosa Luz, Santídio Pereira, Vânia Medeiros, Vulcanica PokaRopa. Como aqueles de Grande sertão: veredas, cada um desses nomes carrega uma história. Mas os nomes próprios ali presentes trazem mais do que uma história contada por alguém. Cada um deles engendra uma forma ficcional singular que transcende a história individual e é capaz de conceder potência e teor de verdade à força demoníaca que atravessa a todos.
Numa voz pausada e vigorosa, escuta-se na obra de Mariana de Matos: “antes do desejo de nos esmagarem com o peso monolítico de seus costumes e sistemas de pensamento. Antes da súbita invenção das normas e modelos. Antes da produção e aprimoramento das técnicas de gerenciamento. De medo, nascemos”. Ou “embora mantenham corações apegados a órgãos que produzem pirâmides das diferenças, por audácia, mesmo embora deteriorem as pontes que nos ligam ao nosso direito de existência, nascemos.”. Uma insistência na existência que está à margem, que não se adequa às demandas dos contornos normativos, que persiste simplesmente por teimosia em apostar num outro molde de pertencer a este mundo que, embora devastador, preserva suas frágeis belezas. Na obra Fundamento (2019) a escrita e a letra artísticas buscam transfigurar em corpo-simbólico esses e outros dizeres.
No meio de todos os nomes próprios de artistas, destaca-se a obra-arquivo de um coletivo, o Coletivo Fulni-ô de Cinema. Obra de rememoração e reinvenção de uma cultura sequestrada. Sua feição rudimentar não a torna menor – nela está entranhado o último fôlego de salvaguardar traços ancestrais, quase em extinção. O audiovisual como ferramenta é sinal de luta contra a eterna onda avassaladora de apagamentos de tudo que diz respeito aos povos indígenas. Num grito, intitularam a obra no idioma dos Funil-ô: YOONAHLE. Ou, em português, “agora, é nós”. A cultura dos homens brancos visivelmente esgotou-se em muitos de seus mais elementares pilares. Preservar outros modos de subjetivação e de cultura é oferecer feixes de abertura à redoma sufocante no interior da qual respiramos.
A artista Ana Pi, por sua vez, faz um resgate do azul, lembrando que tal cor não existia em muitas civilizações antigas. Na Odisséia, o azul simplesmente não aparece e o mar grego é descrito como “da cor do vinho escuro”. Vale frisar que a cultura ocidental reconhece suas raízes no mundo helênico. Entretanto, só no Egito-África havia a cor azul, tanto reconhecida na natureza, como produzida para pintar artefatos – não haveria uma elevação nesta sensibilidade perceptiva africana, capaz de enxergar as diferentes tonalidades do azul? “Azul de tão preto” é a expressão que designa negros, num sentido claramente pejorativo. Com um tecido leve, esvoaçante e delicado encobrindo seu corpo, Ana Pi mostra a beleza da cor azul ao deslocar-se numa diáspora dançante por vários países da África. Nesse trajeto poético, reinscreve traços ancestrais da negritude nos dias de hoje. Num discurso firme, seguro, forte sobre suas intenções, Ana Pi abre um campo vasto de invenções por territórios ainda não amplamente explorados.
Mabe Bethônio é mais um a recuperar imagens do Sertão. No Museu de Etnografia de Genebra, encontra um acervo de fotografias de Edgar Aubert de La Rüe e, com elas em mãos, destaca aquelas que dão ênfase à violência e ao cerceamento provocados pelas fronteiras, cercas, limites (1901-91). O Sertão mostra a faceta rude, brutal, atroz daquilo que nos organiza em processos civilizatórios ditos elevados – os limites fronteiriços dos Estados-nação, das leis que privilegiam poderosos, das propriedades que foram delimitadas como privadas pela despossessão dos mais fracos.
Cada artista, um Sertão. São modos singulares de resistir, de engendrar formas ficcionais, cujo teor é o da verdade do desejo, dos afetos à flor da pele, da luta pela existência desadaptada, dos corpos que borbulham. Quase sempre evocados pelos aspectos demoníacos, as formas artísticas de Sertão expõem a faceta farsesca e hipócrita da moral e dos bons costumes.
O moralista de plantão, é bom lembrar, espezinha seu alvo, tido como representante do mal, dos pecados, dos desvios de um caminho imaginariamente reto. Com tal gesto, o arauto da moral outorga-se realizar toda sua crueldade e perversidade, sempre em nome de Deus ou de algum Bem supremo. O Sertão resiste a esses forjados moldes pastorais. Enquanto o prazer do moralista atrela-se à recusa da vida e ao prazer narcísico sadomasoquista, o caráter sertanejo alinha-se ao desejo destituído de fronteiras, sem evitar seus riscos e angústias imanentes. Se o gozo satânico do moralista é a destruição daquele que ousa seguir os passos incertos de uma potência desejante e criadora, o artista que afirma e engendra contornos aos aspectos demoníacos da existência coloca em evidência a falência dos preceitos que imperam em seu tempo. São esses lugares insubordináveis e vitais que se alastram e integram a confecção das obras de Sertão, constrangendo limites do falso moralismo.
É diante de todas essas considerações que este texto pretende ser apenas um apelo para que não se deixe de visitar a mostra em cartaz no MAM-SP. O primeiro gesto necessário a cada um de nós, que insiste nas múltiplas variações desejantes, é visitar poros cheios de oxigênio, conceder vida às obras realizadas por pessoas que também teimam em existir apostando em moldes inéditos, nos quais a beleza, a delicadeza, a complexidade, a variedade, a fragilidade podem livremente vigorar.
ALESSANDRA PARENTE é psicanalista, Doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Recentemente fez seu pós-doc na FFLCH-USP com estágio na Birkbeck, University of London