Quem não reagiu está vivo
René Magritte, Décalcomanie, 1966 (Reprodução)
O começo da curta campanha eleitoral deste ano tem se caracterizado pela influência do Poder Judiciário no pleito, com a inexplicável ausência dos debates do candidato de maior preferência dos eleitores – fato que inclusive gerou decisão do Conselho da ONU determinando ao Brasil que garanta os direitos políticos do ex-presidente Lula, líder isolado das pesquisas – e pela tentativa de isolar o segundo colocado, Jair Bolsonaro, como único representante do que de mais nefasto existe na política nacional.
De fato, as propostas e a postura do segundo colocado em muitos casos são atentatórias à dignidade da pessoa humana, agressivas à democracia e deploráveis eticamente. Representa a escalada fascista de forma mais crua. No entanto, a grande mídia tem se esforçado para atribuir unicamente a ele essa representação do mal, personificando-o e etiquetando-o. Com isso, dois objetivos são atingidos: possibilitar o crescimento político do candidato preferido do chamado estabelecimento, Geraldo Alckmin, e revesti-lo com um verniz democrata, encobrindo flertes e ações fascistas do seu próprio partido.
Poucos dias atrás, Bolsonaro esteve no Pará e cunhou a seguinte frase a respeito do massacre de Eldorado dos Carajás: “Quem tinha que estar preso era o pessoal do MST, gente canalha e vagabunda. Os policiais reagiram para não morrer”. A frase rapidamente ganhou destaque e despertou indignação. Em setembro de 2012, ao comentar uma ação violenta da Polícia Militar de São Paulo que vitimou fatalmente nove pessoas, em Várzea Paulista, o então governador Geraldo Alckmin deu a seguinte declaração: “Quem não reagiu está vivo”.
Entre uma e outra declaração são seis anos de diferença, mas ambas revelam o desprezo e a dessacralização da vida. A declaração de Bolsonaro fere porque avilta preceitos éticos mínimos da vida social. A de Alckmin agride de forma idêntica, mas tem um componente a mais que é o de justificar a ação de uma das policias que mais mata no mundo. Segundo dados do 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o estado administrado há 24 anos pelo PSDB possui maior proporção de mortes em decorrência de intervenção policial em relação ao total de mortes violentas em 2016: 17,4%. A proporção no Brasil é de 6,9%.
Em março de 2002, o secretário de segurança de Alckmin denominou a operação que resultou na execução de 12 pessoas em pedágio da rodovia Castelo Branco como “um primor”. A Operação Castelinho foi descrita pela promotora Vânia Araújo, que denunciou os policiais envolvidos, como uma ação “equivocada, desnecessária, gratuita e macabra de força”.
O postulante a sucessor do governador, João Doria, após a TV Globo filmar ação de agentes públicos da prefeitura na Cracolândia – durante 15 segundos eles jogaram jato de água sobre pessoas em situação de rua – afirmou que foi um ato “descuidado”. A ação da prefeitura na Cracolândia foi um rotundo fracasso, ao custo de violência, bombas, inclusive com relatos de derrubada de casa com moradores dentro.
E não é apenas no apoio a massacres e chacinas que essa banalização da vida se materializa, mas também na imposição de políticas nefastas para essa e futuras gerações, como o congelamento dos gastos na saúde e educação e a derrubada de aparatos normativos mínimos da relação entre capital e trabalho. A gestão da economia é fator central para condução à barbárie social, como bem denunciou a Caravana do Semiárido Contra a Fome.
Essas ações demonstram o acerto da análise de Marcio Sotelo quando afirma, em texto primoroso, que no Brasil a banalidade do mal espalhou-se como o fungo de que falava Hannah Arendt, “como aparece esse vazio da consciência moral que vem se tornando uma força política e social que ameaça conduzir o Brasil à barbárie ainda além da perversa e excludente estrutura social que sempre tivemos”.
A direita se vê, então, diante de um dilema complexo: tentar isolar Bolsonaro como o encarne único e exclusivo do mal e, ao mesmo tempo, seduzir o seu eleitorado cativo e radicalizado com propostas semelhantes às suas, mantendo apenas a roupagem democrática e civilizatória.
Como se vê por esses exemplos de rápida pesquisa, o dilema praticamente devora quem se submete a ele, porque um se relaciona com o outro. Para se viabilizar politicamente e conquistar o eleitorado cativo do ex-militar, é preciso se despir da roupagem democrática e se expor. Para criticá-lo e se diferenciar dele, é preciso apagar o passado.
O golpe de 2016 radicalizou ao extremo o campo da política, possibilitou o despertar de monstros adormecidos e raspou o verniz democrático de grupos e partidos políticos. Infelizmente, não tem sido muito fácil encontrar diferenças entre esses dois projetos políticos.
PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP