A revolução ‘piazzollana’ do tango
O compositor argentino Astor Piazzolla (Foto: Reprodução)
Já faz exatamente 90 anos que o antropólogo Franz Boas defendeu que, na grande história das manifestações humanas, a música, a poesia e a dança parecem sempre nascer juntas. A canção e o baile, fundidos, desempenhariam originalmente uma função ritual, onde, mais tarde, Victor Turner viria a identificar a experiência da communitas, esse sentimento de comunhão, de fazer parte e de se entender sob uma mesma narrativa existencial.
Mais que a simples evocação emotiva, no entanto, é a elaboração formal o que viria a outorgar às linguagens expressivas o refinamento que, nos termos dessas mesmas linguagens, engendraria a apreciação estética. Boas deixa implicitamente sugerido que são esses recursos formais (semioticamente se os poderia chamar de “textuais”) que realizariam o passo seguinte: a autonomização das formas expressivas, para a qual Boas utiliza um termo sugestivo: “emancipação”. Assim, tendo nascido juntas sob o mesmo teto ritual, música, poesia e dança poderiam se emancipar, nos termos de suas próprias textualidades.
O que a obra de Piazzolla deixa como legado — e o que o define como gênio no campo da música popular — não é outra coisa que a ilustração dessa vereda da história cultural de Boas, qual seja, de como transformar uma expressão “popular” em grande arte por meio da potencialização dos seus recursos formais, emancipando a “música” como expressão em si — não sem controvérsias, o que, por si só, já oferece uma específica crônica argentina de como essas transformações possam ser socialmente processadas.
A história da música no continente americano no século 20 parece reiterar, em diversos momentos e em graus variados, essa dinâmica transformativa, o que ofereceria mostras de que os “gêneros mestiços” (e “mestiços” exatamente porque populares), em vez de necessariamente decaírem na pasteurização comercial da reiteração vulgar (pela saturação do fácil e do adocicadamente emotivo), podem produzir também expressões de alto refinamento formal, em que a linguagem se complexifica reflexivamente frente à sua própria textualidade.
Estamos falando de tango, mas também de jazz, de samba e da música cubana, por exemplo. Em todos esses casos, o mito vanguardista da ruptura, ainda que eventualmente sirva como rótulo oportuno, precisa ser sempre criteriosamente sopesado frente ao processo de adensamento da tradição. Não foi apenas Piazzolla, nem o bebop, nem a bossa nova, nem Benny Moré… É o adensamento da tradição e a abertura intrínseca à diferença, carregada no coração da própria mestiçagem, que movem tanto as reflexões quanto as inflexões.
Astor Piazzolla nasceu em Mar del Plata em 1921, neto de quatro avós italianos. Aos 4 anos, sua família se muda para Nova Iorque, onde viverá até os 15. Aos 9 anos ganha de presente do pai, saudoso da Argentina, um bandoneón, que começa a tocar de forma autodidata, com a ajuda de um amigo que tocava piano, mas sem lhe ocorrer executar nele os temas dos discos de tango que o pai tinha em casa. Vivendo em um bairro de imigrantes, o East Village, infestado de gangsters italianos e judeus, teria como primeiro professor de música um vizinho, o pianista húngaro Bela Wilda, que fora aluno de Rachmaninoff, e que o fazia tocar Bach no bandoneón, a partir de partituras de piano. Seu repertório de formação era inteiramente clássico. Contam alguns dos seus comentaristas que Piazzolla sempre compôs sobre o piano, à exceção de uma única peça composta diretamente no bandoneón, “Adios Nonino”, seu réquiem intimista para o pai. Até que Carlos Gardel chegara a Nova York para rodar “El día que me quieras”, Piazzolla jamais havia tocado um tango.
O encontro de Piazzolla com Gardel em 1934 se tornaria lendário, mas a seu momento não foi mais que prosaico. Piazzolla tinha 13 anos e seu pai, fã do grande ídolo argentino, lhe encarregara de levar um presente a Gardel, de um patrício a outro: uma peça gauchesca que ele mesmo entalhara em madeira; pedindo-lhe, em troca, fotografias autografadas. Gardel, que não falava inglês, acolheu o menino de muito bom grado e logo o transformou em seu cicerone e intérprete informal, o que lhe valeu uma ponta no filme “El día que me quieras”, como vendedor de jornais. Teria sido apenas após as filmagens que Gardel ofereceu um churrasco, no qual Piazzola compareceu com seu bandoneón e arriscou peças do repertório clássico, até que Gardel lhe pediu que o acompanhasse em “Arrabal amargo”.
O primeiro tango do seu bandoneón foi tocado nada menos que para o grande mito, e o vaticínio de Gardel foi direto: “¡Haciendo tangos, tocás como un gallego!” (seria no Brasil como alguém dizer: “no samba, você toca tamborim como um português”). Isso não impediu que Gardel reconhecesse a destreza do rapaz no instrumento. Ao chegar em Hollywood, manda-lhe um telegrama convidando-o a acompanhar sua trupe musical. Com 14 anos, nem seu pai nem o sindicado dos músicos autorizariam tal aventura. Muitos anos depois, Piazzolla se lembraria dessa passagem, acrescentando que, se não fosse por sua providencial juventude, poderia ter morrido junto com Gardel no acidente de avião que o vitimaria em Medellín logo depois.
Não seria apenas dessa que Piazzolla escaparia, mas também de lutar na Segunda Guerra Mundial. Em 1937 estaria de volta à Argentina, onde o tango finalmente o capturou. E o foi sobretudo pela orquestra de Aníbal Troilo, o Pichuco, de quem, como ouvinte, logo tratou de aprender seus temas de memória, e com quem, pouco depois, estaria tocando na noite portenha, aos 17 anos. A inquietação do jovem Piazzolla era evidente, e sua formação clássica logo o incitaria a se arriscar nos arranjos, com invencionices que Troilo não deixaria ir muito adiante, em favor da função iminentemente dançante das execuções de sua orquestra. Se nos anos 1920 e 1930 a voz de Gardel consagrara para o tango o estatuto de crônica poética da vida (e da alma) portenha (tal como as composições de Noel Rosa o haviam feito para o samba e para o Rio de Janeiro), nos anos 40 as “orquestras típicas” dos cafés dançantes tratavam de estender essa cumplicidade do encontro, nascida nos cabarés e “boliches” (botecos), para a cerimônia do baile, seus meneios, seus códigos, seu universo afetivo. O tango era, fundamentalmente, aquilo que se cantava e se dançava.
Mesmo que apaixonado pelo tango e completamente imerso nele, Piazzolla ainda parecia se orientar pelo cânone da música clássica. Ainda que desconcertado e fascinado com as invenções de Stravinsky e Béla Bartók, seu paradigma, na verdade, desde os Estados Unidos, era George Gershwin. E se Gershwin fizera o que fizera com o blues, e transitara tão bem pela canção americana, por que não ele, Piazzolla, com o tango? Sua ambição o levou a enviar uma sonata de seu punho para o célebre pianista Arthur Rubinstein, quando este passara por Buenos Aires em 1941. Rubinstein o aconselhou a seguir em frente, ampliar sua formação, e o apresentou como aluno a Alberto Ginastera, o mais importante compositor erudito argentino do século 20.
Enquanto isso, na orquestra de Aníbal Troilo, sua habilidade no bandoneón contrastava com seus não muito bem-vindos atrevimentos como arranjador, até que finalmente a deixou em 1944, pensando encontrar na orquestra de Francisco Fiorentino o espaço que buscava. Também não foi dessa vez. Formou sua própria orquestra, com a qual gravou seus primeiros discos, entre os quais figura seu primeiro tango registrado, “El desbande”, de 1946, que no ano seguinte serviria de tema para o filme “El hombre del sábado”, dirigido por Leopoldo Torres Ríos. No entanto, a recepção do tango ainda o colocava dentro de sua caixa convencional, onde reinavam, imperiosas e exuberantes, as orquestras típicas, que tocavam… para dançar.
Para além do cânone melódico-
harmônico da música clássica,
a experiência de Piazzolla como
arranjador o fez descobrir a
dimensão rítmica, o swing do
tango, como ele a chamava, e,
daí, aguçar sua curiosidade pelo jazz.
Até o resto de sua vida, Piazzolla não dissociaria mais seu trabalho como compositor do seu trabalho como arranjador. A profusão das suas regravações se justifica pela novidade dos arranjos: o arranjo teria um estatuto similar ao da composição. Do período de ouro das grandes orquestras, parece ficar para Piazzolla como herança o princípio de que a ideia de autoria está vinculada à sonoridade específica da execução, em detrimento da composição melódica do tema original.
Guardadas as proporções, essa ideia está também fortemente presente no jazz, sobretudo a partir do bebop, quando os temas são tomados quase que como meros pretextos para a execução. A “ruptura” que Piazzolla operará dez anos depois do seu primeiro tango composto pode em parte ser entendida como a radicalização daquele princípio, em favor da aventura arranjística. E, nisso, mesmo pretendendo-se vanguardista, acaba se inscrevendo plenamente na tradição.
O amadurecimento decisivo de Piazzolla parece se gestar com sua ida para Paris em 1954, onde se dispõe a estudar composição clássica com a renomada professora Nadia Boulanger, do Conservatoire National Supérieur de Musique et de Danse (grande amiga de Stravinsky e professora, entre outros, de Copland, Bernstein, Lutoslawski e Gardiner). Aí, numa convivência de tão apenas quatro meses, Boulanger (que também seria professora de Quincy Jones, Burt Bacharach e Egberto Gismonti) o intima a assumir sua alma tanguera, em lugar de tão simplesmente querer ser mais um compositor erudito.
Em Paris, no começo de 1955, pouco antes de regressar à Argentina, grava três discos com uma pequena orquestra de cordas e harpa, formada por músicos da Ópera de Paris, com o revezamento de dois pianos, o do jazzista Martial Solal e o de um jovem aluno argentino do Conservatoire, Lalo Schifrin. Com essa formação, Piazzolla começa a dar curso a uma notável liberdade rítmica e harmônica, prenunciando a “revolução” que estaria por vir logo em seguida.
Ao retornar a Buenos Aires, Piazzolla começa repetindo a formação francesa, incluindo eventualmente a voz de Jorge Sobral. Com essa formação gravaria, em 1956, três singles, que conformariam as investidas preliminares do que ele próprio viria a chamar de “nuevo tango”. Ao intitular temas como “Vanguardista” e “Lo que vendrá”, esse espírito já se faz anunciar. Enquanto isso, no meio do caminho, em 16 de setembro de 1955, um golpe de Estado derruba o presidente constitucional Juan Domingo Perón, colocando em seu lugar o general e ditador Pedro Eugenio Aramburu, ao qual cabe iniciar o processo de desperonização do país.
É recorrente entre os analistas da história cultural argentina a confrontação da “revolução piazzollana do tango” com as transformações sociopolíticas em torno da queda do peronismo. Das evocações mais impressionistas sobre a paisagem cultural aos esforços de articulação entre o significado da linguagem musical e seu reconhecimento social (o que inclui as mediações institucionais), as conclusões tendem a confluir: as transformações formais operadas na linguagem do tango por Piazzolla a meados dos anos 1950 acabaram caindo no vazio em termos de recepção social, e só muito tempo depois adquiriram pleno reconhecimento estético, como potencializadoras dessa linguagem, num movimento de fora para dentro da Argentina.
Ao regressar de Paris e seu efervescente ambiente cultural, fertilizado pelo jazz e seu novo regime de audição, Piazzolla intui implicitamente, como interlocutor para o seu projeto expressivo, um público urbano e conectado a uma “modernidade” que se expressa pela intensidade da experimentação estética, ou, na realidade, em termos mais concretamente argentinos, uma classe média educada, progressivamente avessa ao peronismo e a seu específico apreço retórico e institucional por um nacional-popular onde o tango, aquele dos salões de baile e das narrativas melancólicas de suas letras, ocupava o lugar de signo proeminente. É como imaginar algo semelhante ao ambiente social de produção e circulação da bossa nova, de uma classe média urbana e “moderna”, que intuitivamente contesta os cânones culturais da Rádio Nacional e sua inspiração getulista.
Ao se sobrepor à queda do peronismo, no entanto, a proposta de Piazzolla em certa medida assume a conotação de golpe de misericórdia no próprio tango e todo seu substrato de validação simbólico-social: tratar-se-ia, para os tradicionalistas do tango, de uma modernidade corrosiva. Para coroamento da ironia perversa, a classe média cosmopolita argentina pouca atenção daria às novas invenções daquele gênero popular de passado “cafona”, e logo se entregaria às seduções da cultura de massa transnacional e seus imperativos banalizantes, com muitíssimo mais rapidez que o tempo que levou para a bossa nova ser aniquilada pelo iê-iê-iê.
E o que constituiu, concretamente, essa “revolução piazzollana do tango”? A versão argentina da orquestra “francesa” de Piazzolla possuía uma diferença notável frente à anterior: a presença de músicos solistas consagradamente reconhecidos e virtuosos. O passo seguinte foi o de criar um grupo menor que amplificaria a expressão solo, ao mesmo tempo em que os arranjos se tornam mais complexos: variações abruptas de andamento e de tom, contrapontos elaborados, polirritmias, dissonâncias harmônicas, o recurso ao ruidismo, em suma, uma música impossível de ser dançada por um par de baile, e onde seu tema acaba sendo escassamente evocado, o que subtrai o suporte auditivo da reiteração melódica, e isso tudo sem deixar de ter a prosódia tanguera.
A essa fórmula Piazzolla adicionou o timbre inusitado (e até então absolutamente estranho para o tango) de uma guitarra semiacústica, característica do jazz, e distinta da guitarra propriamente elétrica, que já havia assomado no blues (e transformara o jump blues em rhythm and blues, ou seja, no rock em seu estado infantil). Nascia assim o Octeto Buenos Aires, que impunha ao ouvinte que sentasse e escutasse, que tomasse o discurso musical como um fim em si, voltado para sua própria textualidade. Bastaram-lhe dois discos (um dos quais se tornaria relativamente obscuro) e algumas apresentações ao vivo para realizar essa revolução.
Piazzolla poderia ter dito que a invenção do octeto derivou da concepção do sexteto de tango, que Julio De Caro criara em 1924, bem como de sua continuidade com o sexteto de Elvino Vardaro, com quem Piazzolla tanto se impressionara ao chegar de Nova York, e que agora convidara para ocupar o lugar de violino solo na sua orquestra de molde francês. No entanto, na contracapa do disco mais emblemático do octeto, Piazzolla declara que sua inspiração teria sido um octeto de jazz de Gerry Mulligan, que ele escutara em Paris.
Até então, entre as formações que Mulligan liderara, havia um grupo com dez instrumentos, mas não um grupo de oito. Estaria Piazzolla se referindo, na verdade, às gravações que seriam reunidas em “Birth of Cool”, com Mulligan, Miles Davis e Lee Konitz, entre outros? A remissão a Mulligan, em lugar de De Caro, parece denotar outra coisa: o que está em jogo é a inspiração do jazz a partir da revolução do bebop, ou seja, em lugar da big band da era do swing, que tocava nos ball rooms para gáudio das multidões de pernas inquietas, entra em cena agora o grupo pequeno, em que todos são solistas, e que toca em pequenas casas noturnas, para as pessoas escutarem sentadas. A um novo regime de execução lhe cabe um novo regime de audição. O negócio… é combinar isso com os russos.
Sim, alguns se entusiasmaram com a nova aventura piazzollana, seja com o octeto seja com o quinteto que logo em seguida Piazzolla formaria diretamente com os quadros solistas da sua orquestra “francesa” ― o primeiro de vários outros quintetos, a formação que viria a se consolidar como a mais duradoura, a mais enxuta e consistente. Mas, com raras exceções, o mainstream do tango torceu-lhe o nariz: podia ser grande música, mas não era tango (assim como até hoje há quem diga que bossa nova não é samba, muito menos música “autenticamente” brasileira).
Durante muitos anos Piazzolla
responderia: “não importa, é
música contemporânea de Buenos
Aires”. Os signos da modernidade
e da urbanidade lhe bastavam para
explorar as possibilidades da tradição.
Três anos depois de retornar de Paris, enfadado com a rejeição, Piazzolla volta a Nova York para tentar a sorte. Mas o ambiente musical norte-americano não tinha nada a ver com o francês. Apesar da curiosidade de um Dizzy Gillespie pelas sonoridades caribenhas, o mundo “latino” da musicalidade era um gueto que, quando chegava à indústria fonográfica, assumia a forma do pastiche, em que bongôs estavam por toda parte. A bossa nova ainda não havia chegado aos Estados Unidos e, com ela, uma interpelação ao jazz de mesma estatura formal. Sozinho, Piazzolla não conseguiu mais que gravar, em nome próprio, três discos de gosto muito duvidoso, pelos quais a revista Billboard de 14 de dezembro de 1959 o apresentaria como executante de um “instrumento inusual, parecido com o som de uma concertina”. Um dos discos saiu com seu nome grafado de forma incorreta (“Piazola”) e o último jamais chegou a ser lançado, senão no Japão após sua morte.
O jeito foi voltar para a Argentina, gravar um disco condescendente, ironicamente intitulado “Piazzolla… o no?”, que recebeu um subtítulo ainda mais estranho, “bailable y apiazolado” ― e que, frustrando as expectativas dos executivos da indústria fonográfica, acabou sendo um dos seus discos menos vendidos ―, mas também assumir sua etiqueta de “vanguardista” e de figura urbana portenha, que começava a encontrar sintonia com novas expressões literárias, como a de Ernesto Sábato, com quem acabaria por estabelecer um breve diálogo.
Foi esse diálogo com a literatura marcada pelo cenário da urbanidade que lhe serviu de senda durante os anos 1960, para, por fim, desembocar em sua colaboração com o poeta Horacio Ferrer, a partir da composição da ópera-tango “María de Buenos Aires” (1968), na qual a protagonista encarnaria, na figura feminina da prostituta – tal como a personagem Alejandra de Sobre héroes y tumbas (1961), de Sábato, e tal como a “Graciela oscura” do tema que compusera para a diva Egle Martin no filme “Extraña ternura” (1964), de Daniel Tinayre ― (já não mais reduzida à imagem costumbrista da milonguita da antiga crônica tanguera), uma hipérbole literária da cidade de Buenos Aires. Não se tratava de simples retorno ao tango cantado (em alguns casos o texto poético é recitativo), mas de uma parceria com a experimentação poética, em que ambos os discursos, para usar o termo de Boas, vêm textualmente “emancipados”, o que não significa que não possam estar juntos.
A colaboração com Horacio Ferrer trouxe junto a voz de Amelita Baltar, uma voz que não nascera no mundo do tango, mas no mundo do folklore (a música tradicional das províncias), e com quem Piazzolla, separado da primeira esposa (dizem alguns, por culpa de Egle Martin), estabeleceria um romance que terminaria de forma acre alguns anos depois. Os anos dessa tripla colaboração marcam a passagem de Piazzolla pelo Rio de Janeiro em 1972, para uma apresentação no Teatro Municipal, e para ver Amelita Baltar ser vaiada no Maracanãzinho, enquanto interpretava “Las ciudades” (tema de Piazzolla, com letra de Ferrer), no caótico e derradeiro VII Festival Internacional da Canção. Esses anos marcam também a ida de Piazzolla para a Itália em 1973, para, finalmente, conquistar a consagração internacional que não conseguira nos Estados Unidos.
Em dezembro de 1972 é lançado na França o filme de Bernardo Bertolucci Le dernier tango à Paris. Sua intensidade erótica e convulsionada, bem como a interpretação de Marlon Brando, transformaram o filme num must. A produção encomendara a Piazzolla os temas musicais. Piazzolla compôs dois. Mas não chegaram a tempo de serem editados no filme, que acabou ganhando um tema composto pelo jazzista argentino Gato Barbieri. Quatro anos depois, esses temas seriam utilizados em uma produção de outro italiano, Francesco Rosi. Estabelecido na Itália, Piazzolla colaboraria regularmente com o cinema como também, em parte por culpa do impacto do filme de Bertolucci, seria redescoberto na França.
Na Itália, ao invés de formações pequenas (a última antes de se mudar havia sido um noneto), Piazzolla gravará com orquestra e um “conjunto eletrônico” (assim chamado por conta dos teclados), que até 1977 dariam a sua música uma sonoridade característica daquela década.
Em 1973 Piazzolla renomeia um de seus temas para prestar uma homenagem a Milton Nascimento (“Retrato de Milton”). Em 1974 envia um tema a Chico Buarque para ser letrado, o que, apesar das reiteradas promessas deste, nunca viria a acontecer. Em 1975, quando retoma na Itália sua colaboração com poetas-letristas (o que incluiu o italiano Sergio Bardotti), toma como parceiro o poeta Geraldo Carneiro, que alguns anos antes havia colaborado com Egberto Gismonti. Um desses novos temas foi gravado pela primeira vez por Ney Matogrosso, para seu primeiro disco após deixar o grupo Secos e Molhados.
Em 1979 Piazzolla retorna para a Argentina, agora, no entanto, para tomá-la como base para circular pelo mundo. A década de 1980 representou sua plena consagração internacional, ainda que na Argentina despertasse reservas, agora motivadas pelo equívoco de ter aceitado um constrangedor convite para almoçar com o ditador Jorge Rafael Videla, enquanto sua filha, Diana, militante do Peronismo de Base, vivia exilada no México, em péssimas condições de subsistência. Piazzolla admitiria que, apesar de tão arrojado esteticamente, em política, morria de medo. E a filha, que escreveria sua primeira biografia, a partir de entrevistas com ele no México, apenas com dificuldade conseguiu perdoá-lo.
Até bem pouco tempo, estabelecer com precisão a discografia de Piazzolla era uma tarefa insana. Simplesmente se pode dizer que ele saiu gravando por aí; os detentores dos direitos sobre essas gravações são variados, e usualmente as utilizam para produzir coletâneas arbitrárias, com títulos reiterados como “Libertango” e coisas similares. Após sua morte, veio à luz uma enormidade de registros de apresentações que havia feito pelo mundo afora, principalmente na década de 1980, quando passou a alternar apresentações de seu quinteto com apresentações sinfônicas que, finalmente, despertaram o interesse do mundo erudito por sua música.
Curiosamente, seu canto do cisne, que para alguns e para o próprio Piazzolla, são seus registros mais consistentes, plenos e maduros, são seus três discos gravados, por fim, nos Estados Unidos, para o selo norte-americano American Clavé, entre 1986 e 1989. Se não tivesse sido colhido por uma trombose cerebral que o deixou inteiramente incapacitado em agosto de 1990, dois anos antes de falecer, Piazzolla seguramente teria ainda nos surpreendido um pouco mais.
Tom Jobim sempre parecia ter pronta uma peroração contra o descaso que os brasileiros devotam a seus músicos e artistas de estatura reconhecida mais que tudo fora, por esse olhar que vê coisas que os nativos muitas vezes não veem. Em alguns casos, aventuras geniais e inquietas da expressão e da linguagem parecem precisar de mais tempo que o necessário para serem digeridas por aqui, depois mesmo de terem sido aniquiladas por alguma moda. É como se precisassem sempre dos futuros amantes da música do Chico Buarque, para que um dia finalmente se tornem “amáveis”. Muitos sertanejos ruidosos passarão, deixando seu rastro de mediocridade consumista, mas a grande arte, a da excelência da forma e não a do apelo fácil, essa fica ou para os futuros amantes ou para aqueles que, sisuda e tranquilamente, a sabem amar em silêncio. Para Piazzola e tantos outros, valeu a recomendação de Chico: “não se afobe não, que nada é pra já”. (Resta agora Chico finalmente pôr letra em “Cartas de Buenos Aires”).
Ricardo Cavalcanti-Schiel é antropólogo, doutor pelo Museu Nacional
(1) Comentário
Excelente texto! Amei saber mais do genial Piazzola!