Leonardo Fróes e a bananeira
(Arte: Revista Cult)
Encontrar um poema esquecido de Leonardo Fróes é como receber alguma lição do inesperado. Os seus poemas foram sendo publicados, desde 1968, em livros magros, em edições pouco ou não comercializadas, até que, em 1995, o poeta publicou, pela editora Rocco, os poemas de Argumentos invisíveis. O prêmio Jabuti, que o livro recebeu, foi apenas pequeno sinal de uma ambiguidade com a qual a obra vai convivendo, a de uma discrição poderosa. Gosto muito de lembrar o começo de um poema publicado em 1986, no livro Assim/Missa, que diz: “a única coisa que eu sinto que mudou foi a minha voz: / eu agora falo muito mais baixo”. Naqueles anos entre a anistia e a formação de uma nova constituinte, e também de algum bate-boca público entre poetas, esse poeta, que havia arrumado um mato onde morar ainda em 1970, levanta a voz, em livro, para baixá-la, ainda mais.
Faz algum tempo que para Leonardo Fróes a poesia acontece na relação com a natureza como modo de produzir democracia. Alguns dos temas que se repetem nos seus poemas, como a contemplação, o encontro ou a troca de olhares com animais, pessoas ou plantas, ou ainda o reconto de fábulas indianas, japonesas ou chinesas de qualquer época, ou por fim os versos em dicção sapiencial que nos ensinam sobre a opacidade dos saberes acerca da vida, parecem trabalhar em prol da sabotagem e da reversão das forças contra-comunitárias que as cidades em que vivemos operam.
Diante de um animal, o poeta se mostra capaz de largar “qualquer vestígio de quem sou, / lembranças, compromissos ou datas / ou dores que ainda ficam doendo”, até que “qualquer coisa maior se estabelece / nesta ausência de distinção entre nós” (“O observador observado”). No olhar de qualquer outra pessoa com quem esbarre na rua, o encontro pode produzir o instante em que as duas pessoas “deixam de perceber que se ignoram” e, aglutinadas pela emoção, “a presença da espécie rarefaz-se” (“A lagoa dos olhares”). Ou ainda ao observar os galhos tortos e secos como esqueletos de qualquer árvore, é “como se, no escuro, de cada galho / surgissem numerosas pessoas / vendo você observá-las” (“Ambições de assombrações”).
Ora numerosas pessoas comuns quase aparecem numa planta seca, ora a espécie humana evapora no encontro entre duas pessoas, ora “qualquer coisa maior” acontece na relação com um animal. Seja como for, são fundas, invisíveis e indefinidas as formas pelas quais alguma experiência comum é falada nesses versos. O espaço público é o instante de uma relação dissolvente que se estabelece entre viventes, o que testemunha tanto o sufocamento do espaço público quanto o caráter arqueológico dessa poesia.
Por isso a alegria ao descobrir, durante a pesquisa que desenvolvo sobre a obra do poeta, um poema de Leonardo Fróes publicado em 1981 e esquecido por ele próprio. Ausente dos seus livros desde então, esse poema foi publicado no mesmo ano que o seu livro mais singular, Sibilitz. Saiu na página 124 do segundo número do projeto Almanak, número intitulado Kataloki e editado por Arnaldo Antunes, Nuno Ramos e Sérgio Papi. O trio de organizadores, então muito jovens, trilhou caminhos bastante singulares na cultura brasileira. Nos três números do projeto Almanak (1980, 1981 e 1988), Arnaldo Antunes, o único entre os três a organizar os três números da revista, convocou artistas da palavra e da imagem muito heterogêneos e em atividade então no Brasil. Era, enfim, um encontro de gerações e uma farra semiótica. O número 3 da revista, do qual também participou Leonardo Fróes com um poema, pela monumentalidade do projeto editorial (um livro com mais de 40 centímetros de altura) e pela quantidade e heterogeneidade dos poetas publicados (mais de 100), desenhou a pluralidade, no ano da nova constituição, da poesia brasileira posteriormente aos cismas das vanguardas. Foi essa a narrativa que vigorou na década seguinte, a de uma poesia plural em tempos de democracia recém-renascida.
No poema encontrado, “Adeus à bananeira ociosa”, uma criança nasce na cara do poeta. O berro do bebê e sua inabilidade para erguer o corpo e caminhar são duas condições marcantes nesse poeta que agora precisa reaprender, desde outro começo, a caminhar e falar. A fala andarilha dos versos longos e das frases longas narra o acontecimento para um poeta que, espantado, experimentou a afasia do choro e o embaralho das pernas. O tema da criança nascendo ou sobrevivendo no adulto, tema romântico inscrito num verso do poeta inglês William Wordsworth (1770-1850), “The Child is father of the Man” (“A Criança é pai do Homem”), reencontra no poema de Fróes um tratamento singular: organizado por um comovido fluxo discursivo, atravessado por imagens fantásticas, compondo uma representação indecidível. Homenagem aos filhos, no meio do caminho da vida? Num poema de 1975, que também tematiza a infância, a ociosidade estava presente noutra chave, pois era a infância o seu país: “Sobretudo era principalmente bom não fazer nada, / não mexer nem zumbir, apenas enredar-se / no ar fugitivo” (“Rock-rocinha”). Agora é com a criança nascendo que o poeta se despede de si como uma “bananeira ociosa”, e o trabalho que se impõe é o de, como um bebê, no meio do caminho dessa vida, aprender a andar outra vez.
Adeus à bananeira ociosa
Eu estava plantado aqui como uma bananeira ociosa produzindo fumaça.
Parece que a fumaça trancada não me deixava enxergar o sofrimento dos outros.
Eu estava com a vida resolvida e marcada por hábitos tentaculares estranhos
que me devoravam. Às vezes eu ficava um tempão virando água ou café
na beira do fogão conjugal que me igualava com ela pela boca e o tempero. Eu
tinha medo
da mordida dos homens, e por isso comecei a descida pelo funil colossal da
minha alma pequena. Eu não queria mais saber das esquinas
e tinha decidido virar um tigre sem manchas, com a barba de cristal e
um colarinho de ouro. Parece que eu estava chegando
a um país oriental de mentira e maravilhas de pedra.
Eu tinha decidido também que eu ia esfaquear uma nuvem para contemplar o
mistério. Ou então que eu ia construir uma asa para viajar para o sol.
Eu estava sentado aqui tramando coisas assim sob a figueira frondosa
quando porém uma criança nasceu na minha cara e chorou.
Eu não podia mais olhar para dentro porque a criança abagunçou minha vida.
Eu não podia virar café nem água nem sombra porque a criança na verdade
entornou o caldo dos hábitos. Primeiro eu perdi o peito da mãe
e depois eu deslizei do nirvana para a tentação do ciúme e a banalidade
das fraldas, do cheiro de bebê que entontece, das mamadeiras matinais que
engatinham com sonoridades perfeitas.
Passei um longo tempo correndo carregando no colo esse menino e o segundo.
Perdi a consistência do sábio que eu tinha admirado produzindo minhocas
de mentalidade abstrata. Ganhei em troca a sensação esquisita
de estar no meio do caminho da vida sem ter porém começado.
Parece que os meninos é que vão me ensinar como se anda outra vez,
sem rejeitar o que vem quente, colorido e espantado na bandeja da hora.
Luiz Guilherme Barbosa, 30, é escritor, professor de Português e Literaturas de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II, e doutorando em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor do livro A mão, o olho: uma interpretação da poesia contemporânea (2014), integra o coletivo de poetas Oficina Experimental de Poesia.