A Ética do Barbeiro
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Minha segunda e última crônica no Caderno Donna do Jornal Zero Hora de hoje, enquanto eu substituía as férias da Martha Medeiros.
Uma das características de uma megalópole como São Paulo é seu estranho caráter de província. Cada bairro é uma pequena cidade do interior com seus personagens folclóricos, suas fofocas típicas, a maledicência como constante e, para quem se apercebe disso, aquela vontade de fugir que surge como consciência infeliz de morador interiorano. A diferença entre as cidades não é o seu tamanho, mas a velocidade que elimina o tempo, que é o esconderijo do inominável.
O destino é feito de ironias e quem foge de uma cidade pequena pode acabar caindo no mesmo lugar sob a ilusão de seu contrário.
Assim, há um bairro em São Paulo onde, em meio ao charme de restaurantes caros, de shoppings exclusivistas, de mansões e prédios tombados há, na porta de uma garagem, uma minúscula barbearia.
Dia desses a figura ilustre do barbeiro explicava a dois escritores barbudos na padaria da esquina um fato fundamental para entender a política brasileira. Dizia ele que cortava o cabelo de um ex-presidente há mais de 15 anos.
Os dois escritores não perderiam a piada apesar do lugar comum:
– Então você faz a cabeça do homem?
Se fizesse a cabeça o barbeiro não teria sido vítima de uma distorção teórica que lhe foi imputada por aquele homem sério adorado pela vizinhança:
– Ele me perguntou se eu achava que alguém que chega na política pode roubar do povo e contou em uma entrevista que eu (como representante do “povo”) penso que roubar é um direito de quem está no poder.
– Que horror, disse o escritor careca. Cafetinagem intelectual, falou o mais cabeludo.
– O que eu realmente disse é “quem está no poder pode fazer o que quiser”. Assim como o meu poder é cortar o cabelo, eu poderia escolher cortar pescoços.
A ética do barbeiro é bem simples. Do uso da tesoura ao uso das verbas toda ação depende de um ser humano e sua escolha.
Sempre confiante na sua tesoura, o barbeiro continua cortando o cabelo do ex-presidente. E a vida, ou a corrupção, digamos que elas simplesmente continuam.