A revolução por fazer

A revolução por fazer
Rosa Luxemburgo discursa no Congresso Socialista Internacional, em Stuttgart, na Alemanha, em 1907 (Reprodução)

Em 1792, em meio aos enraizamentos possíveis dos projetos revolucionários que marcaram os anos de 1780 e 1790 na França, Mary Wollstonecraft (1759-1797) escreveu A vindication of the rights of woman. O texto, dedicado a Charles Maurice Talleyrand Perigord (1754-1838), e inspirado na defesa da educação nacional feita pelo então destacado diplomata e político francês, e ainda em meio à possibilidade de efetiva construção da igualdade proposta pelos jacobinos, considerava a educação como fundamento da equidade, e a sua ausência, o substrato sobre o qual se erigia o controle dos homens sobre a vida das mulheres. Wollstonecraft dirigia-se a Talleyrand como legislador, e esperava que ele, reconhecendo seus argumentos no momento de revisar a Constituição francesa e apoiando-se na razão, respeitasse os direitos das mulheres e fizesse justiça a metade da humanidade.

Com enorme talento e coragem para infringir regras, a autora trazia em sua reivindicação forte sintaxe aprendida em leituras iluministas que aliavam educação e razão como conteúdos capazes de libertar efetivamente as mulheres, e evidentemente toda a humanidade, dos grilhões da menoridade. Se havia que libertar a humanidade da menoridade imposta pelas configurações sociais de Antigo Regime, no caso da metade feminina da humanidade, havia que considerar, também, a urgência de observar suas possibilidades no exercício da política e da vida pública. Questões de gênero, neste momento, articulavam-se, portanto, ao princípio de que todos os homens nascem livres e iguais em direitos, conforme afirmado na primeira Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. O título da Declaração, por si, evidencia a relevância do texto de Wollstonecraft. Os rumos dos processos revolucionários demonstraram quão assertivas eram as proposições da escritora: o Código Civil de 1804, que sedimentou as conquistas da revolução na França, assim como a legislação civil que se viu enraizar no mundo ocidental ao longo do século 19, mantinha as mulheres no espaço restrito dos lares e sob controle do marido, o espaço público continuava sendo privilégio masculino.

Aleksandra Kollontai (Foto: Coleção George Grantham Bain/Livraria do congresso de Washington)

Passados quase 150 anos das revoluções historicamente chamadas de burguesas do final do século 18, no início do século 20, em meio aos levantes bolcheviques que construiriam a primeira república socialista conhecida, uma das mais destacadas militantes bolcheviques, Aleksandra Kollontai, escrevia, em 1926, em sua Autobiografia de uma mulher comunista sexualmente antecipada: “Mas, no fim das contas, havia ainda a tarefa infinda, a libertação das mulheres. As mulheres, é claro, tinham recebido todos os direitos, mas na prática viviam ainda sob a velha opressão: sem autoridade na vida familiar, escravizadas por mil tarefas domésticas, carregando todo o fardo da maternidade, mesmo os cuidados materiais, porque agora muitas delas conheciam a vida desacompanhada, em consequência da guerra e de outras circunstâncias”.

A militante escrevia após a aprovação, ainda em 1917, de decretos que substituíam o casamento religioso pelo civil e autorizavam o divórcio; do Código do Casamento, da Família e da Tutela, em 1918; e da permissão do aborto em 1920. O conjunto de leis confirmava a igualdade de direitos de todos os trabalhadores, independentemente de sexo e origem, além de buscar transferir para o âmbito público as atividades domésticas que prendiam as mulheres no lar. Escolas, lavanderias, creches, restaurantes públicos libertariam os trabalhadores dos serviços domésticos e permitiriam uma efetiva ocupação do espaço público por todos. Um grande passo, um “assalto ao céu” em meio a circunstâncias e tradições de que não se esqueciam tão rapidamente, tampouco pela letra de lei. Mas a lei, sem dúvida, era resultado dos debates que se desenharam ao longo de todo o século 19 e que se manifestaram na ação pública dos bolcheviques. Cabe lembrar tais debates para tentar compreender a “tarefa infinda” de libertação das mulheres que afligia Kollontai e que seguramente explica o abandono da Rússia soviética em 1922 por outra bolchevique de primeira hora, Angélica Balabánova (1878-1965).

Clara Zetkin (Foto: Coleção George Grantham Bain/Livraria do congresso de Washington)

Em O comunismo e a família, de 1920, Kollontai apontou as transformações na família que caracterizaram o enraizamento do capitalismo: o capitalismo empurrara a mulher para a vida pública, posto que o trabalho doméstico, entendido como produção de necessidades, foi se esvaziando – roupas e víveres, por exemplo, podiam ser encontrados nos espaços públicos, em lojas. Além disso, havia necessidade de aumentar a renda familiar, o que empurrava a mulher para atividades remuneradas e públicas. Mas entre o final do século 18 e o início do 20, quando se assistiram a essas modificações na organização familiar, não teria havido aumento proporcional da presença política da mulher na vida pública. Na senda aberta por esta realidade escreveram e militaram, especialmente no seio da social democracia alemã, August Bebel (1840-1913), Rosa Luxemburgo (1871-1919) e Clara Zetkin (1857-1933), esta última fundamental na militância de Kollontai, além de Angélica Balabánova, já citada, e da anarquista Emma Goldman (1869-1940), entre muitas outras e outros. O consenso aqui era quase impossível: para muitos sindicalistas, entre socialistas, comunistas, anarquistas ou reformistas, a presença da mulher na vida pública implicava disputa pelo mercado de trabalho e forçava os salários para baixo. No mesmo sentido, embora as ideias de união livre e igualdade das mulheres povoassem os círculos progressistas de debate russos, como bem o demonstra a pesquisa de Wendy Goldman (2014), haveria que confrontar os projetos de emancipação feminina com o mundo das necessidades, e isso mesmo após a vitória da Revolução em 1917.

As propostas de Kollontai, em boa parte encampadas pelo governo dos bolcheviques e expressas na legislação, supunham uma mulher nova com necessidades novas forjadas na luta pela sua efetiva libertação junto com a da classe trabalhadora. O lugar da mulher revolucionária nas fileiras sindicais e socialistas seria conquistado com independência econômica e com a formação livre e autônoma de sua personalidade, o que permite afirmar que, se a militante bolchevique não lera a reivindicação de Mary Wollstonecraft, seguramente trazia em seus escritos e suas ações a percepção da necessidade de aliar libertação e formação conforme já reclamara a escritora inglesa no final do século 18.

Emma Goldman convoca os trabalhadores a abraçarem a ação direta; o ato aconteceu em 1916, na Union Square, Nova York (Foto: Reprodução)

Nesta lógica construída com base no trabalho e na solidariedade, não bastariam os direitos civis e políticos. O projeto das sufragistas não era suficiente, era preciso deixar os registros burgueses sobre o papel da mulher. Tais registros teriam tornado a vida mais fácil para as mulheres da burguesia que podiam comprar os novos serviços e frequentar restaurantes, mas as mulheres trabalhadoras pobres descobriram, por sua vez, a jornada dupla de trabalho: no espaço público, onde auferia remuneração, e no espaço privado do lar, onde continuava a exercer as atividades domésticas que sua família não podia comprar.  E foi neste sentido que a militante defendeu uma nova moral sexual, com uniões e separações livres. Ela acreditava, como muitos bolcheviques, que, quando a sociedade, por meio do Estado, pudesse prover a vida de todos, as uniões poderiam ser livres.

Mas Kollontai pregava em campo minado: desde os assaltos aos espaços públicos promovidos por niilistas, por populistas, pelas experiências comunitárias, especialmente as cristãs, e até por terroristas, na Rússia czarista entre os séculos 19 e 20, as tradições em torno das quais se organizavam as “rússias”, muitas e distintas, expressavam-se também de maneiras distintas e complexas. Se é verdade que a modernidade vivida como fabulação cria radicalismos distantes da experiência de muitos, como afirma Marshall Berman, não é menos assertivo que ela não é capaz de decretar o fim das tradições que, muitas vezes, se tornam elemento de resistência. A argumentação bolchevique, centrada na ideia de que a família definharia na mesma proporção em que avançassem as conquistas socialistas que transformariam a mulher em cidadã responsável pela República e pela produção material da vida de toda a sociedade, esbarrara nas circunstâncias reais de enfrentamento mesmo da produção material da vida pelos russos após a Revolução. A família, especialmente nas áreas rurais que viveram os processos de coletivização, se manteria como refúgio para crianças, velhos, mulheres e todos os tipos de desvalidos que não dispunham de meios próprios para prover a sua subsistência, especialmente na Rússia oprimida pelos efeitos econômicos e sociais da Primeira Guerra e da Guerra Civil. Não seria tão simples decretar sua extinção. O tema e os debates em torno da permissão do aborto são bastante elucidativos dos sentidos e conteúdos da família nas rússias que saíam do czarismo para a República Soviética.

Emma Goldman, em registros de quando foi detida (Foto: Livraria do congresso de Washington)

No ano em que Kollontai escrevia sua autobiografia, o governo bolchevique editaria um novo Código de Família Soviético que, conforme afirma Joana El-Jaick Andrade (2011) em seu doutorado, “flexibilizou ainda mais as regras relativas ao casamento e ao divórcio. Passou-se a reconhecer os casamentos de fato – produzindo efeitos sobre a partilha da propriedade e o direito à pensão alimentícia –, suprimiu-se a necessidade de atribuição de um nome comum e facilitou-se o divórcio, abolindo a necessidade de se recorrer ao juiz nos casos de dissolução unilateral”.

Mas, se de um lado os novos e avançados códigos indicavam os caminhos para a emancipação da mulher e para a construção efetiva de uma sociedade justa e igualitária, de outro lado esses novos pactos instituídos enfrentavam um duplo problema. Os bolcheviques, e não se trata apenas dos quadros do momento stalinista, enxergavam o aborto como questão de saúde pública antes de qualquer outra possibilidade, e não colocavam a questão da independência da mulher no que diz respeito à definição do seu papel na sociedade e ao controle do seu corpo. Entre os homens, mas especialmente entre as mulheres, a prática poderia estar ligada à sobrevivência, dado que as condições de vida na Rússia pós-revolucionária eram muito difíceis, e a responsabilidade de educar filhos assustava muito, considerando-se que as promessas em lei relativas à responsabilidade da sociedade e do Estado com as crianças não se cumpriam na prática. Poderia, em meio a tantas transformações, à fome e à Guerra Civil, a família transformar-se em uma unidade de afetos? Poderia deixar de ser uma unidade econômica? Recorria-se ao aborto exatamente para evitar a responsabilidade familiar de criação dos filhos, já que não se cumpria a promessa da responsabilidade pública pelas crianças.

Rosa Luxemburgo, em registros de quando foi detida (Foto: Livraria do congresso de Washington)

Para os setores conservadores do bolchevismo, herdeiros talvez dos tradicionalismos das rússias do século 19, ou quem sabe premidos pelas urgências de garantir as conquistas sociais que viam como resultado da revolução, o epidêmico número de crianças abandonadas, de abortos e de divórcios na Rússia era sinal de que a legislação permissiva, prenunciadora do fim da unidade familiar tradicional, deveria ser alterada. Derrotadas as oposições a Stálin, mantidas as mulheres revolucionárias em “afastamentos brancos”, como foi o caso do deslocamento de Kollontai para serviços diplomáticos, os soviéticos conheceriam novo Código de Família em 1936. Se é verdade que foram mantidas as conquistas da mulher no que diz respeito à sua presença no espaço público em atividades remuneradas igualmente em relação às dos homens, é também inequívoco que a unidade familiar de base monogâmica e heterossexual voltava a ser fundamental no fortalecimento da nova sociedade, no enfrentamento da pobreza e na inclusão social das crianças. Abortos seriam proibidos e divórcios desencorajados. A nova Rússia seria celebrada em cartões-postais.

Tamanho retrocesso poderia ser explicado apenas pelos conservadorismos stalinistas? Seriam decisões premidas pela circunstância? A maioria das mulheres russas era analfabeta e não tinha qualificação profissional, a maior parte já era mãe e trazia a responsabilidade de criar seus filhos em meio ao turbilhão da revolução que lhes oferecia a liberdade sem, no entanto, oferecer os meios de sobrevivência. A família voltaria a ser refúgio, a união livre fabulada por Kollontai e ainda presente em muitas pautas feministas, assim como a possibilidade de divórcio permitido em lei, e a igualdade de gênero no âmbito da família se perderiam no turbilhão das circunstâncias e da revolução. Se houve conservadorismo stalinista e se houve circunstâncias de sobrevivência que marcaram a relevância da família na construção do socialismo, há que se lembrar, também, que a burocratização da governação bolchevique, pouco afeita a muitas liberdades incontroláveis, já se desenhava para muitos críticos no momento mesmo em que os bolcheviques publicitavam suas ações e justificavam suas decisões.

Aleksandra Kokorekin (1906-1959), ‘A chamado do partido’, de 1954. A artista passa a se dedicar à produção de cartazes políticos a partir dos anos 1930, quando também faz uma série bastante conhecida sobre prática de esportes e inaugura sua primeira exposição (Reprodução)

Rosa Luxemburgo escreveu sobre os caminhos da Revolução Russa em 1918, dialogava especialmente com Lênin e Trótski. Afirmando que os bolcheviques se constituíam em herdeiros históricos dos niveladores ingleses e dos jacobinos franceses, a quem de fato Wollstonecraft se dirigia quando escreveu a Talleyrand, Luxemburgo, no entanto, destacava a maior dificuldade da tarefa a ser cumprida por eles. Um de seus argumentos sobrelevava a impossibilidade de construir uma sociedade igualitária desprezando a liberdade de imprensa e de reunião, o voto universal e o reconhecimento das relações vivas entre eleitos e eleitorado. O conjunto de instituições democráticas, ao contrário de se constituírem em peso a ser desconstruído, deveria ser apropriado pelas massas, de modo a garantir uma vida pública sadia com pluralidade de associação e manifestação. A frase da autora, já bastante repetida, “liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente”, talvez tenha sido guardada por Kollontai, mas não viria mais a público, foi apenas contingente em um processo revolucionário que se pretendeu finalizador da luta pela liberdade dos trabalhadores e da humanidade.

Assim, a “tarefa infinda” de libertação das mulheres, no apelo de Kollontai, parecia mesmo inacabada, e talvez interminável, e reverberava, sem dúvida, os três suicídios de mulheres relatados por Marx a partir das memórias do diretor dos Arquivos da Polícia de Paris, Jacques Peuchet, em 1846, ou a dócil personagem de Dostoiévski que se jogara da janela na narrativa fantástica de 1876. Mas acima de tudo, a autobiografia da militante permite observar os retrocessos que se evidenciariam mais fortemente no governo de Stálin, e que redundariam na derrota da Oposição de Esquerda liderada por Trótski (1879-1940) e à qual se juntara, levando-a da vanguarda militante para o refúgio forçado na diplomacia. Os longos quase 150 anos que separavam os processos revolucionários do final do século 18 e os do início do século 20, que vão aqui apenas sumariados, pareciam ter sido de poucas conquistas, e os escritos de Kollontai trazem alguma melancolia, mesmo que levemente enturvecidas, ou mesmo sublimadas, pelas vitórias de 1917, ou pelas afirmações de Lênin (1870-1924) sobre a importância de cumprir etapas na libertação dos trabalhadores, priorizando a libertação econômica em detrimento das liberdades de ordem moral e sexual.

Aleksandra Kollontai e os jovens cuidados pelo Estado soviético (Foto: Reprodução)

Como Joana, a personagem de Clarice Lispector que sofria as dores e alegrias de aceitar viver perto do coração selvagem, as mulheres russas que ousaram propor a liberdade moral e sexual com a libertação econômica não puderam encontrar sua redenção, talvez porque para além das questões de gênero, enfrentadas pelas primeiras feministas, existem muitas outras temporalidades e registros definindo o lugar das pessoas nas diferentes sociedades: entre a classe, a raça, a etnia, a idade, o gênero, a cultura, muitos papéis e possibilidades. Se trazemos conosco as lutas de Kollontai, Luxemburgo, Balabánova e Zetkin, que elas sejam amplificadas pelos registros e experiências de Elza Soares, Maria Carolina de Jesus, Maria da Penha e Débora Maria Silva. Porque, no fundo, nosso dilema ainda é o mesmo: como tornar livres pessoas premidas pelo mundo das necessidades? Como transformar em republicanas pessoas marcadas pela barbárie da pobreza?

Problemas a  resolver por nós que trazemos uma Joana perto do coração selvagem. E longe demais da República.

Ana Nemi é professora de História Contemporânea na Unifesp

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