Fala dos confins

Fala dos confins

O lugar da literatura na obra de Foucault

Peter Pál Pelbart

Seria preciso invocar o nome de Maurice Blanchot para lembrar a voz quase inaudível que marcou, de maneira inconfundível, toda uma geração de pensadores, entre os quais se incluem Foucault, Deleuze e Derrida. Blanchot, a cantora Josefina da filosofia francesa do pós-guerra… Na novela Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos, de Kafka, o povo de camundongos tem grande admiração por Josefina e até sente que precisa de sua voz para reunir-se, mas não compreende o que nela é tão especial e nem sequer se é especial – o seu canto mais parece um chiado, ou mesmo um silêncio. Pode ser que sua glória resida, afinal, neste gracioso e indecifrável mistério: talvez ela jamais tivesse cantado, mas à sua maneira, com o seu “nada de rendimento”, livrava o povo das “cadeias da existência cotidiana”, como afirmaram Deleuze e Guattari.

Blanchot chamou a atenção para esta situação paradoxal em Kafka: nunca sabemos se estamos presos dentro da existência cotidiana (e “nos voltamos desesperadamente para fora dela”) ou se dela estamos excluídos (por isso “em vão nela buscamos sólidos apoios”). Fronteira invisível e sempre deslocada, entre a vida e a morte, entre sair e entrar, entre ansiar pela comunidade ou dela apartar-se na solidão. Kafka o descreveu na forma de um exílio: “Agora já sou cidadão nesse outro mundo que tem com o mundo habitual a mesma relação que o deserto com as terras cultivadas”. Mas Blanchot adverte para o sentido desse desterro, que não cabe considerar como uma fuga: esse outro mundo em que Kafka mora não é um além-mundo, sequer é outro mundo, mas o outro de todo e qualquer mundo. Para o artista ou o poeta, conclui ele, talvez nem existam dois mundos, como queria Kafka, mas mundo algum, nem sequer um único mundo, e apenas o fora no seu escoamento eterno..

A antimatéria do mundo

Foucault não ficou indiferente a essa exterioridade. O autor de História da loucura confessa, na primeira entrevista concedida após sua publicação, em 1961, que seu livro responde a duas influências principais. Por um lado, seu interesse pela presença da loucura na literatura – Blanchot, Bataille, Roussel –, por outro, a ideia de estrutura tal como Dumézil a trabalhou. Mais do que os romances escritos por Blanchot (Thomas l’Obscur, Aminadab, L’Arrêt de mort, Le Très-Haut etc), talvez seja preciso evocar a leitura sedutora que ele propôs de autores que tiveram com a loucura uma proximidade extrema, tais como Hölderlin, Sade, Lautréamont, Nietzsche, Artaud, em suma, toda essa linhagem que comparece no fim da História da loucura. Com efeito, nesses ensaios, Blanchot ressalta uma dimensão à qual Foucault, mas igualmente muitos de seus contemporâneos, não ficarão indiferentes: a vizinhança necessária entre palavra e silêncio, escritura e morte, obra e erosão, literatura e desmoronamento, experiência de desamparo e colapso do autor. Como diz Blanchot em Le livre à venir: “O que é primeiro não é a plenitude do ser, é a fenda e a fissura, a erosão e o esgarçamento, a intermitência e a privação mordente: o ser não é o ser, é a falta de ser, a falta vivente que torna a vida desfalecente, inapreensível e inexprimível”. Blanchot redescobre na literatura um espaço rarefeito que põe em xeque a soberania do sujeito. O que fala no escritor é que “ele não é mais ele mesmo, ele já não é ninguém”: não o universal, mas o anônimo, o neutro, o fora. A obra como essa experiência que arruína toda experiência, que se coloca aquém da obra, “o aquém onde, do ser, nada é feito, onde nada se realiza, a profundidade da inoperância do ser”. Experiência insólita, que desapossa o sujeito de si e do mundo, do ser e da presença, da consciência e da verdade, da unidade e da totalidade – experiência dos limites, experiência-limite, dirá Bataille.

Todo esse leque temático já está presente no prefácio original à História da loucura, posteriormente abandonado. Ali Foucault faz referência a uma linguagem originária, “muito frustra”, em que razão e não-razão se falam ainda, por meio dessas “palavras imperfeitas, sem sintaxe fixa, um pouco balbuciantes”. Por meio delas, diz ele, os limites de uma cultura são questionados para aquém de sua dialética triunfante. Aquém da história, a ausência de história, um murmúrio de fundo, o vazio, o vão, o nada, resíduo, rugas. Aquém da obra, a ausência de obra, aquém do sentido, o não-sentido. Aquém da razão, a desrazão. Experiência trágica encoberta pelo surgimento da loucura enquanto fato social, objeto de exclusão, de internamento e de intervenção. Como fazer para que a desrazão, na sua alteridade irredutível, na sua “estrutura trágica”, interrogue o nascimento da própria racionalidade psiquiátrica que a reduziu ao silêncio ao convertê-la em loucura?

 Em todo caso, lembremos os dois termos do título original da edição de 1961, Folie et déraison, histoire de la folie à l’âge classique. Para além dos mal-entendidos líricos que o binômio Loucura e Desrazão, ulteriormente suprimido, suscitou, ele continua a nos intrigar. No seu ensaio sobre esse livro, Blanchot se pergunta se no espaço que se abre entre loucura e desrazão a literatura e a arte poderiam acolher essas experiências-limite e, assim, “preparar, para além da cultura, uma relação com aquilo que a cultura rejeita: fala dos confins, fora da escrita”. Ao que Foucault responde, nesse diálogo que eu reconstruo a meu modo, com o exemplo Blanchot. Nele prima o esquecimento não-dialético, a proliferação em direção a uma exterioridade nua, a linguagem como murmúrio incessante destituindo a fonte subjetiva de enunciação bem como a verdade do enunciado, a emergência de um anônimo, livre de qualquer centro ou pátria, capaz de ecoar a morte de Deus e do homem. “Ali onde ‘isso fala’, o homem não existe mais.” Contra a dialética humanista, que por meio da alienação e da reconciliação promete o homem ao homem, Blanchot teria exprimido o esboço de outra “escolha original” que emerge em nossa cultura. De toda forma, se a linguagem não é, para Foucault, “nem a verdade nem o tempo, nem a eternidade nem o homem, mas a forma sempre desfeita do fora”, entende-se por que ele pôde acrescentar, fazendo eco a Kafka e a Blanchot, que a escritura não é parte do mundo, mas sua “antimatéria”.

A parte do fogo

Já podemos avançar uma hipótese mais geral. Se nesse primeiro momento de seu trajeto Foucault acredita na literatura é porque acredita na sua exterioridade. E se lhe interessa a linguagem da loucura é porque nela está em jogo essa mesma exterioridade. Desse ponto de vista, a escritura e a loucura estariam no mesmo plano, tendo em vista seu caráter não-circulatório, a inutilidade de sua função, o caráter de autorreferência que lhes é próprio. Mas, também, seu poder transgressivo – “a fala absolutamente anárquica, a fala sem instituição, a fala profundamente marginal que cruza e mina todos os outros discursos”. A literatura e a loucura pertenceriam ao que Blanchot chamou de A parte do fogo, aquilo que uma cultura reduz à destruição e às cinzas, aquilo com o que ela não pode conviver, aquilo de que ela faz um incêndio eterno.

Porém, no momento mesmo em que explicita esse lugar da literatura, Foucault também já se pergunta se a época em que o ato de escrever bastava para exprimir uma contestação em relação à sociedade moderna não estaria ficando para trás. Ao reaver o espaço de circulação social e de consumo, talvez a escritura, recuperada pelo sistema, tenha sido vencida pela burguesia e pela sociedade capitalista, deixando de ficar “de fora”, não mais conservando sua exterioridade. E indaga: para passar para o outro lado, para incendiar-se e consumir-se, para entrar num espaço irredutível ao nosso e num lugar que não fizesse parte da sociedade, será que agora não seria preciso fazer outra coisa que não literatura? E novamente evoca Blanchot: se hoje descobrimos que devemos sair da literatura, abandonando-a a seu “magro destino histórico” fixado pela sociedade burguesa, foi Blanchot quem nos indicou o caminho. Aquele que mais esteve impregnado de literatura, mas sob um modo de exterioridade, é aquele que nos obriga a abandoná-la no momento em que ela se torna essa interioridade confortável em que nos comunicamos e nos reconhecemos.

Perguntamo-nos se Foucault não teria, por meio do caso “literatura” e “loucura”, esboçado um diagnóstico mais geral, referente ao estatuto da própria exterioridade em nossa cultura. Toni Negri e Michael Hardt tentaram mostrar, recentemente, que o capitalismo mundial integrado assumiu a forma do Império, ao abolir toda exterioridade, devorando suas fronteiras mais longínquas, englobando a totalidade do planeta, mas também seus enclaves até há pouco invioláveis, acrescentaria Jameson, como a Natureza e o próprio Inconsciente. Talvez esse diagnóstico tão cruel quanto precoce de Foucault, e sua realização imperial planetária, lancem luz sobre nossa claustrofobia contemporânea. É o mundo sem fora, é o capitalismo sem exterior, é o pensamento sem exterioridade – diante do qual o fascínio pela loucura como bolsão de exterioridade, predominante há algumas décadas, soa hoje completamente ultrapassado.

Mudança de perspectiva

O que terá feito Foucault mudar tão radicalmente de perspectiva? Certamente o trabalho sobre as prisões, a nova problematização do poder e, consequentemente, o entendimento retrospectivo de que a “loucura não é menos um efeito de poder que a não-loucura”, de que ela é, “segundo uma espiral indefinida, uma resposta tática à tática que a investe”, e que talvez não caiba supervalorizar o papel do manicômio e de suas muralhas, já que ele deve ser entendido desde fora, isto é, como uma das peças de uma estratégia positiva “mais ampla e exterior” que, por sua vez, está na origem de uma tecnologia da psique.

Depois dessa nova perspectiva aberta pelo período genealógico, em que “sempre se está no interior”, o que terá restado da exterioridade? Não podemos seguir os meandros desse destino ao longo de seu trajeto teórico, e ficaremos num único exemplo inteiramente esclarecedor, o da experiência-limite já na última fase de sua obra. Em 1980, ao evocar essa experiência pela qual o sujeito se arrebata a si mesmo, levado ao seu próprio aniquilamento ou dissolução, tema caro aos anos 1960, Foucault já não a associa à experimentação da exterioridade de uma cultura, como anteriormente – a sua parte do fogo –, mas a uma experiência pessoal e teórica, pela qual seria possível pensar diferentemente. Se a literatura ou a loucura já não constituem uma exterioridade absoluta (pois tudo é interior), a experiência-limite é preservada e valorizada enquanto uma operação sobre si mesmo. Não experiência vivida, explica ele, mas o invivível para o qual é preciso fabricar-se. Não mais a transgressão de uma fronteira ou um interdito (mesmo se os nomes de Bataille, Blanchot e Nietzsche retornam), mas demolição e refabricação de um si. O fora ganha uma surpreendente imanência subjetiva.

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