Testamentos de um exílio enigmático
Livro de Edward W. Said descreve o “estilo tardio” como o gesto paradoxal de recusa à maturidade e à complacência estética
Eduardo Socha
A apatia quase protocolar de boa parte dos intelectuais contemporâneos em relação à música de vanguarda é compreensível até certo ponto. Razões internas à própria história da música, como o encapsulamento formal da linguagem em torno de si própria (ocorrido principalmente a partir da atonalidade) e a cooptação da música popular pela indústria do entretenimento explicam apenas de maneira parcial essa indiferença.
Afinal, no cinema, no teatro, na literatura ou na pintura, o século 20 também testemunhou uma espinhosa e difícil evolução em seus respectivos modos de expressão. Entretanto, ao contrário do que acontece com a música, a apatia (ou o desconforto) aqui tende a não existir. Se nomes como Godard, Beckett, Joyce e Pollock transitam livremente pela vida letrada como notórias figuras de transgressão em seus domínios, esse trânsito parece bloqueado para artistas igualmente fundamentais da cultura ocidental como Alban Berg e György Ligeti.
No contexto nacional, Gilberto Mendes detectou o fenômeno com bastante precisão: “Se você perguntar a um intelectual brasileiro quais são seus artistas preferidos, ele responderá: Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi, Bergman, Glauber Rocha… e Caetano Veloso, Chico Buarque. Nem mesmo Villa-Lobos ou Stravinsky vão passar pela cabeça dele. A música erudita de nosso tempo não existe para a classe culta brasileira”. Tal indiferença generalizada, diga-se de passagem, não se restringe ao caso brasileiro. Adorno já procurava expor as razões estruturais para o divórcio entre a produção da vanguarda musical e sua recepção no sistema da cultura.
Para o elitismo renitente e corrosivo de Adorno, todavia, seriam precisamente o interesse e as análises de obras musicais que forneceriam o estofo a reflexões filosóficas consistentes, de modo que a música, em vez de ser reduzida ao mero divertissement, converte-se em solo fértil de conhecimento. Se a franqueza perturbadora e quase obscena, o refinamento acalorado, as frases desconcertantes e o alcance crítico da escrita de Adorno não encontraram precedentes na história da filosofia, isso se deve em boa parte à sua relação com a música.
Evasão do tempo
A coleção de ensaios, lançada agora no Brasil, do crítico de origem palestina Edward W. Said (1935-2003) apenas confirma a centralidade da reflexão musical adorniana para além do domínio exclusivamente musical; a começar já pela expressão que dá título ao livro – “estilo tardio” é um conceito desenvolvido por Adorno no pequeno ensaio sobre as obras do terceiro período de Beethoven (as cinco últimas sonatas para piano, os seis últimos quartetos, a Missa solemnis e a Nona sinfonia).
Said, que foi professor de literatura comparada em Columbia (Nova York) e pianista competente, tornou-se conhecido pelo engajamento a favor da causa palestina e pelo livro Orientalismos, no qual discutia a imagem caricatural do Oriente forjada secularmente pela cultura ocidental. Em Estilo tardio, porém, a referência política aparece de maneira transversal – na realidade, aparece com feições episódicas no ensaio sobre o escritor francês Jean Genet, em que se apresenta a relação com o Oriente Médio e a política árabe.
Publicado originalmente em 2006, três anos depois da morte de Said, o livro de sete longos ensaios examina o caráter de obras tardias de artistas tão diferentes como Thomas Mann, Jean Genet, Konstantinos Kaváfis, Glenn Gould, Luchino Visconti, além do próprio Adorno, o interlocutor “saturado de cultura” que permanece implícito ao longo do livro.
Seria necessário esclarecer aquilo que, para Said, não é o “estilo tardio” desses pensadores e artistas: não é o coroamento resignado de uma vida de produção intensa destinada a finalmente encarar a proximidade da morte, não é a consequência madura de um pensamento satisfeito consigo próprio, nem o acordo subjetivo com as normas sociais e estéticas estabelecidas de sua época.
Ao contrário, é antes um tipo de postura criativa que, afastada das tradições e intolerante ao “tom afável ou oficial” de época, abandona o preceito da expressividade e inibe toda possibilidade de síntese. As obras tardias, contraditórias e não reconciliadas com as obras anteriores “constituem uma forma de exílio”, como defende Said, um exílio radical que obriga à evasão do tempo.
Mas, se artistas como Strauss, Gould e Lampedusa “transitam na contramão dos grandes códigos totalizantes da cultural ocidental e da difusão cultural”, isso não significa dizer que o estilo tardio corresponda a uma rebeldia cega contra todas as convenções. Pois há casos, como os de Beethoven e Strauss, em que o estilo tardio é justamente perturbador por sua adesão quase primitiva às convenções: convenções e fórmulas prontas transformam-se nesses casos em “representação nua delas mesmas”. Como se estivessem livres do controle do compositor, como se o compositor abandonasse a obra pela metade e deixasse o clichê falar por si, a mais vulgar retórica musical emerge de forma arbitrária.
Said exemplifica com o tema inicial da Sonata nº 31 opus 111, uma das últimas de Beethoven. O tema, apresentado de maneira “desajeitada”, de escrita imperfeita, recebe um acompanhamento insistente e “rasgadamente primitivo”, e portanto incompreensível na pena rigorosa de Beethoven. Dando a impressão de ser um “material não processado”, contrastava com a força do desenvolvimento temático e a clareza irresoluta do compositor da Quinta sinfonia.
O elitismo de Adorno
Seria esse “descuido” o sintoma de uma intervenção psicológica provocada pela iminência da morte? Não, pois a morte, no estilo tardio assim como na arte, aparece apenas “como refração, como ironia” ou alegoria – a obra em si nunca morre. O estilo tardio não é grito de morte, não é o distanciamento desesperado do mundo, o protesto de um não que seria reiterado na história da arte. Se fosse apenas isso, o estilo tardio não passaria de uma obviedade desinteressante. Há algo de construtivo e inédito no gesto tardio que permanece em aberto, como um enigma para a posteridade.
O desvelo crítico de Said procura mapear as diferentes formas de exílio do estilo tardio, mas não se propõe a fazer disso uma “teoria geral”. A ópera Ariadne auf Naxos, de Richard Strauss, a releitura das Variações Goldberg por Glenn Gould, o poema A cidade, de Kaváfis, o romance O leopardo, de Lampedusa, são obras que possuem o denominador comum da intransigência; no entanto, o conceito mesmo de intransigência padece de um contínuo deslocamento semântico, que Said não hesita em acompanhar com erudição e coloquialidade.
Em que pesem os ensaios sobre Genet, Kaváfis, Lampedusa e Visconti (na capa da edição feita pela Companhia das Letras aparece estranhamente também “Samuel Beckett”, nem sequer mencionado nos ensaios do livro!), o centro de gravidade da obra está mesmo na música (a julgar pelas considerações exaustivas a respeito de Mozart,
Beethoven, Britten, Strauss e Gould).
Também pelo veio da música (em especial a de Arnold Schoenberg), surgem as páginas, provavelmente as melhores do livro, dedicadas à prosa e ao estilo da ensaística de Adorno. Nelas, encontramos as coordenadas necessárias para entender o incômodo que ainda hoje sentimos ao ler Adorno, não apenas por seu estilo exigente (cuja dificuldade é popularmente exagarada), nem pelo “diletantismo inspirado” que pressupõe os privilégios de uma sólida formação cultural, mas, sobretudo, pelo “pendor miniaturista para o detalhe cruel: ele procura e acha a última mácula, a ser contemplada com um risinho de satisfação pedante”, independentemente do assunto a ser tratado.
Adorno, profundo conhecedor de palavras e sons, não realizava concessões didáticas nem permitia que questões técnicas travassem seu argumento. Nisso residia talvez o maior protesto de seu estilo tardio: diante das esperanças ilusórias de uma sociedade crecentemente administrada, resta a solenidade intransigente como característica do pensamento autêntico.
Estilo tardio
Edward W. Said
Trad.: Samuel Titan Jr.
Companhia das Letras
194 págs.
R$ 59