Deus no pensamento de Bergson
A religião entre a intuição e a instituição
Franklin Leopoldo e Silva
O que habitualmente chamamos de condição humana é basicamente determinado, segundo Bergson, pela natureza. A partir da aceitação das linhas gerais da teoria da evolução, Bergson afirma que a natureza teria seguido dois caminhos paralelos com a mesma intenção de desenvolver e preservar a vida. De um lado, o instinto, que se caracteriza pela estrutura fixa no interior da qual o animal se comporta de modo relativamente imutável, cumprindo os requisitos de sobrevivência prescritos pela natureza; de outro, a inteligência, capacidade humana dotada de flexibilidade para que o homem possa se adaptar às situações fabricando para tanto meios de sobrevivência cada vez mais aprimorados.
É importante notar que o mesmo objetivo é realizado por via de dois percursos diferentes e de dois resultados distintos, até porque tudo deriva da mesma origem, a Vida, a princípio indiferenciada e que, no itinerário evolutivo, se teria bifurcado em duas linhagens. Devido a essa origem comum, cada uma dessas formações vitais guarda em si algo da outra, submerso e camuflado pelas características que se impuseram de maneira predominante. À origem comum, corresponde o mesmo princípio orientador das ações da vida, em ambos os casos: sobrevivência e preservação, o que faz com que, no ser humano, a inteligência esteja quase totalmente voltada para a satisfação das necessidades práticas da vida individual e coletiva.
Isso significa, simplesmente, que cada organismo desenvolve o esforço necessário para persistir na existência e, que no caso do homem, a inteligência é o instrumento para a realização dessa tarefa. Para tanto são produzidos os utensílios materiais e as formas imateriais de sustentação da vida: entre essas últimas, destaca-se a tendência para a sociabilidade, uma vez que a vida em comum facilita a realização dos trabalhos necessários à manutenção de todos. A sociedade é, em princípio, uma organização fechada, formada por hábitos e regras (tanto explícitas quanto implícitas), que a inteligência sistematiza e que se apresenta aos indivíduos como obrigações sociais e morais a serem cumpridas por todos em benefício de cada um.
Mas esse perfil objetivo da organização social não basta para que o indivíduo venha a fazer a experiência do equilíbrio entre -egoísmo e solidariedade, requisitos da vida social. A tendência natural a sobreviver individualmente é mais forte do que o raciocínio que me faria entender que é do meu interesse considerar o interesse dos outros. Esse relativo desprendimento só aparece motivado por uma outra atividade: a função fabuladora, pela qual é incutida no indivíduo a neces-sidade de certas ações que ultrapassam a esfera exclusiva da vida individual. Histórias acerca da origem da coletividade, de deuses protetores que podem premiar ou punir, normas cuja origem se perde na tradição, mas que, por isso mesmo, devem ser respeitadas etc. Note-se que tudo isso, embora não diga respeito diretamente ao interesse individual, é absolutamente necessário para a preservação organizada da vida coletiva, impedindo que esta se dissolva na fragmentação dos interesses individuais. Esse patamar de experiência vital, pelo qual a função fabuladora é responsável, chama-se religião.
Vista dessa forma, a religião cumpre uma finalidade análoga à da sociedade no que concerne à coesão dos indivíduos, e ela se situa, por isso, num nível natural. Trata-se de uma organização fechada de costumes, normas, símbolos e rituais destinados a sustentar a integridade do grupo, por via da comunidade de crenças geradoras de comportamentos. É, ainda, a intenção da natureza que prevalece no interesse da manutenção da Vida numa escala maior do que a individualidade. Nesse sentido, as obrigações morais socialmente instituídas e a instituição das religiões cumprem funções análogas e complementares.
Coincidência com a criação
Mas há em Bergson uma maneira de conceber a possibilidade de transcender essa significação imanente e utilitária da religiosidade. Como a inteligência guarda resquícios de sua integração comum com o instinto no passado longínquo do processo de Vida, mantém-se em torno da inteligência e de sua função pragmática uma franja de possibilidades ou de virtualidades que dizem respeito ao Todo, por oposição ao direcionamento estrito da intenção utilitária. A fabulação já o indica, pela possibilidade de o indivíduo extrapolar os limites de sua própria sobrevivência. Mas, agora, já não se trata mais de sair de si para chegar ao grupo, e sim de abrir-se para a totalidade através de uma via completamente distinta das linhas de raciocínio próprias da inteligência. É como se o pensamento, nesse caso, atingisse uma liberdade que o faz superar as prescrições da natureza, comunicando-se com uma dimensão que não concerne à utilidade imediata da persistência da vida.
A evolução, tal como a ciência, a considera enquanto processo objetivo de formação dos seres vivos, e indica para o metafísico a dimensão essencial da realidade como incessante movimento de criação. Esse élan que percorre tudo, formando e transformando, é o modo como deveríamos conceber o ser, se o interpretássemos como ato e mobilidade, e não como estabilidade das formas. A totalidade, portanto, não é uma idéia nem uma realidade fechada em si mesma, mas um processo aberto e interminável, isto é, o infinito como movimento. Se pudéssemos romper as malhas da inteligência que nos mantém dentro de uma realidade estrutural e calculável, atingiríamos, por intuição, esse movimento absoluto em que o que entendemos por ser se revela devir ou vir-a-ser. Passaríamos, então, da organização fechada, que naturalmente caracteriza a sociedade e a religião, a uma abertura indefinida que, no limite, seria a coincidência com o processo criador. E essa realização plena da liberdade não seria um ato subjetivo: seria justamente o modo de transcender a subjetividade.
Essa transcendência não significa -necessariamente ir ao encontro de uma entidade superior, princípio ou razão de ser de tudo que existe. Seria antes passar da particularidade fechada à totalidade aberta, na qual de fato já estamos, mas na qual não nos sentimos, porque as conveniências da vida nos impõem a segmentação da realidade e a divisão rígida entre sujeito e objeto, de acordo com as mediações da inteligência. Abandonadas essas mediações, entraríamos em contato imediato com algo que ultrapassa infinitamente o espaço de nossa relação pragmática com o mundo.
Esse contato não é cognitivo, embora o conhecimento possa dele fazer parte – mas sempre como um subsídio. A dimensão religiosa em que esse contato se estabelece de forma privilegiada é designado por Bergson como Amor. Claro que no uso desse termo estão implicadas todas as ressonâncias teológicas que Bergson não desenvolve. Sem nos atermos a essa temática, podemos, no entanto, assinalar alguns aspectos que nos podem ajudar a entender esse outro aspecto da religiosidade.
Religião aberta
A realidade, como vimos, é criação, o que significa que na sua essência ela é puro processo e movimento. As formas criadas são vestígios desse processo porque a imobilidade é algo que deriva do movimento. Habitualmente, falar em criação implica falar em criador – e é nesse ponto que se colocaria, no contexto bergsoniano, a questão de Deus. Mas o que há de original em Bergson é justamente a idéia de que a criação como processo e movimento deveria nos eximir de identificar o “ser” criador, o que seria remeter o processo a uma entidade e o tempo à eternidade. O que haveria de divino na criação seria, então, o próprio processo. A metáfora do élan, portanto, remete menos a um espírito do que à espiritualidade, entendida como ação criadora.
Uma religião “aberta”, diz Bergson n’ As duas fontes da moral e da religião, seria aproximadamente a atitude implicada na intuição pela qual se poderia coincidir com a ação criadora no que ela tem de divino. Com o que, propriamente, o místico coincide? Se admitirmos que o Amor poderia ser a designação aproximada da relação absolutamente intrínseca entre criação e criatura, seria com essa dimensão ético-religiosa que a intuição mística coincidiria. Essa coincidência se revela e se propaga na relação de amor que o místico mantém com a humanidade, mas que é conseqüência do amor a Deus e do amor de Deus – entendendo-se aqui que “Deus” é algo como a súmula do processo criador. O místico coincide com a totalidade naquilo em que ela age criadoramente, e essa ação o penetra “como o fogo avermelha o ferro”, isto é, a Verdade se faz Amor. “O amor que o consome (ao místico) não é o amor de um homem por Deus; é o amor de Deus por todos os homens.” Por isso, o místico não é apenas aquele que conhece, mas, sobretudo, aquele que age. Seu ideal seria que a totalidade agisse nele e por ele numa infinita expansão de Amor. A diferença do místico em relação aos outros homens é que, nele, a finitude não limita a totalidade, mas de alguma forma a expressa – com todos os entraves que se colocam entre uma intuição sobre-humana e a expressão humana.
Assim, vemos quanto essa dimensão “aberta” da religiosidade ultrapassa a organização fechada das instituições sociais e religiosas. Diante do princípio universal da fraternidade, diz Bergson, inclinamo-nos com respeito; mas não o abraçamos com paixão. Por isso, seria até o caso de se perguntar se essa “abertura” para o divino ainda deveria ser chamada de religião, tão incompatível ela se mostra com a primeira acepção do termo, a de instituição fechada. Justifica-se, no entanto, a manutenção da mesma palavra por dois motivos. Em primeiro lugar, a intuição mística é rara e, quando ocorre, de certa forma é inapreensível mesmo para o místico. Em segundo lugar, porque as reli-giões instituídas só conservam um certo vigor na relação com o divino na medida em que ainda puderem respirar o odor que a intuição mística nelas deixa como um vestígio.
De algum modo, o que o homem entende e pratica como religião pela via da produção simbólica está muito aquém das possibilidades intuitivas de contato com o absoluto; de outro lado, a religião possível nos indica de alguma forma que não estamos definitivamente encerrados nos limites de nossa natureza: podemos, como faz o místico, romper com a humanidade em si mesma para reencontrá-la em Deus.
Franklin Leopoldo e Silva, professor de Filosofia da USP e autor de Bergson: intuição e discurso filosófico (Loyola, 1994)
(1) Comentário
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A necessidade, em Bergson, de excluir o Deus Criador e considerar a criação como processo decorre da incapacidade da história da Academia de Filosofia (diferente e menor que a história do Pensamento mundial), em conceituar Deus como imanência e transcendência simultaneamente, daí que não pode o Absoluto (Deus )ser um ser, pois que, neste caso, necessariamente, teria de haver um outro em relação a este ser. Recomenda-se a leitura de Huberto Rodhen, Pietro Ubaldi, Gilson freire e outros monistas cósmicos.