Caminhos cruzados Luis Fernando Verissimo

Caminhos cruzados Luis Fernando Verissimo

Luis Fernando Verissimo fala sobre a presença da literatura norte-americana em Erico e afirma: “O fato de ser ele um escritor popular atrapalhou a avaliação crítica de sua obra”

Os familiares de nomes consagrados da literatura não raro sabem mais sobre os direitos autorais do que sobre as qualidades literárias do parente ilustre. Com Erico Verissimo ocorre exatamente o oposto: por diversos motivos, seu filho Luis Fernando é uma das pessoas mais indicadas para falar sobre sua obra.

Um dos autores mais vendidos e elogiados do país, ele conhece bem o dilema vivido por Erico entre a notoriedade e o reconhecimento da crítica. Até hoje morador de Porto Alegre, não apenas tem familiaridade com a história do local em que se passam os livros do pai como é capaz de enxergar em perspectiva a particularidade da produção literária fora do eixo Rio – São Paulo. Crítico contumaz dos desmandos do governo e dono de uma escrita enxuta e coloquial, pode ainda falar com propriedade sobre outros dois traços da obra paterna: a sensibilidade social e a defesa de uma comunicação direta com o leitor.

Na entrevista abaixo (realizada por e-mail quando Verissimo se encontrava em Paris), o mais conhecido escritor gaúcho da atualidade vale-se desses atributos para discorrer – sempre brevemente, como é de seu feitio – sobre as influências literárias, a relação com o modernismo e as particularidades do “épico-antiépico” O tempo e o vento, obra máxima de um dos mais populares escritores brasileiros.

CULT – No livro Erico Verissimo: o escritor e seu tempo, o crítico Flávio Loureiro Chaves afirma que Verissimo contribuiu para a consolidação do romance urbano no Brasil, tendo, nesse aspecto, papel pioneiro com relação aos autores modernistas. Nesse sentido, ele seria mais “urbano” que “regionalista”?
Luis Fernando Verissimo –
Não sei até que ponto a influência foi dos paulistas ou de americanos, como Dos Passos, e ingleses, como Aldous Huxley. Foi principalmente uma literatura urbana em contraste com o regionalismo nordestino vigente na época, mas nos primeiros romances ainda é um urbanismo fortemente marcado pela experiência rural, um urbanismo de primeira geração.

CULT – De que modo o senhor situa a obra de Verissimo em relação ao modernismo literário no Brasil? Há, em sua opinião, diferenças significativas entre o modernismo gaúcho e o paulista?
L. F. V. –
Não foi uma obra deliberadamente revolucionária, como a do modernismo paulista, mas foi nova na experimentação com formas de narrativas não-usuais, na época, e no seu caráter urbano. Acho que o modernismo paulista é uma tentativa de refletir a experiência paulista, da industrialização e da dinamização da produção vivida na cidade, que se modificava, e como tal está mais perto do futurismo italiano, enquanto o  modernismo no resto do Brasil não tem essa característica, é mais formal e universal.

CULT – Erico Verissimo conviveu em Porto Alegre com Augusto Meyer, Mario Quintana e Theodomiro Tostes, dentre diversas outras figuras de porte da cultura brasileira. Alguns críticos, por sinal, já chamaram a atenção para a proximidade entre a linguagem poética de Quintana e o estilo empregado por Erico em Clarissa. Em sua opinião, esse convívio exerceu alguma influência sobre sua obra?
L. F. V. –
O convívio, não sei, e também não sei se Quintana já possuía uma obra poética que pudesse ser chamada de influente na época. Acho que o lirismo de Clarissa não tem origem local.

CULT – Em seu livro 1930: o modernismo e a crítica, João Luís Lafetá defende que um traço marcante da produção modernista nos anos 30 foi o predomínio de um “projeto ideológico” em oposição à década anterior, na qual teria prevalecido um “projeto estético”. O senhor acredita que a obra praticada por Verissimo nos anos 30 de algum modo participa desse projeto ideológico?
L. F. V. –
Não acredito que o autor estivesse consciente de participar de um projeto, mas acho que o humanismo de sua obra, desde o começo, é um compromisso ideológico, mesmo que o próprio autor não o identificasse como tal.

CULT – O senhor considera que o termo “regionalismo” possa ser aplicado a Verissimo? Em que medida retratar as especificidades do Rio Grande do Sul era um programa que fazia parte do projeto literário do autor?
L. F. V. –
Ele quis fazer, e fez, uma trilogia que não podia ser mais regional, na medida em que era a história da região, sem cair no regionalismo. Na sua forma e na sua invenção, O tempo e o vento é a obra mais “moderna” do autor.

CULT – Edgar Allan Poe, Villiers de L’Isle Adam e Henrik Ibsen são apontados como influências importantes para a obra de Verissimo. O senhor identifica essas influências?
L. F. V. –
De Ibsen sim, na construção psicológica de personagens. Dos outros, confesso que não.

CULT – Em 1933, Erico Verissimo traduziu o livro Contraponto, de Aldous Huxley. Em 1935, em seu Caminhos cruzados, empregou uma “técnica de simultaneidade” que foi apontada pela crítica como sendo inspirada pelo autor inglês.
L. F. V. –
A influência é óbvia e o autor não a escondeu. Foi uma das suas muitas experiências com formas de narrativa.

CULT – Verissimo é comumente apontado como um dos primeiros autores brasileiros a se inspirar na literatura anglo-saxônica, e em detrimento da francesa, referência mais comum para os escritores do período. A que o senhor atribui esse interesse pela produção literária de língua inglesa?
L. F. V. –
Não sei qual foi a origem do interesse do meu pai pela literatura anglo-saxônica, em detrimento de outras, embora ele também lesse bastante os franceses e os portugueses; mas existiu e se refletiu na maneira informal, menos empolada ou “preciosista” de escrever que caracterizou sua obra desde o começo.

CULT – Outros autores apontados como influências marcantes são os norte-americanos Sinclair Lewis e John dos Passos. Este último, de quem o escritor foi amigo pessoal, já foi apontado como inspirador de O tempo e o vento, por sua trilogia U.S.A. O senhor identifica semelhança entre os dois projetos?
L. F. V. –
Dos Passos, certamente, foi uma influência, mas acho que O tempo e o vento supera o U.S.A., por ser menos esquemático e mais cálido, se é que cabe o termo. No sentido de mais humano, envolvente e verdadeiro.

CULT – O senhor concorda com a afirmação de que, com O tempo e o vento, Erico pretendeu fazer um “épico realista”, à maneira norte-americana?
L. F. V. –
Não sei se cabe o “à maneira norte-americana”. Ele fez um romance histórico como nunca se fez outro no Brasil e como não existem outros no mundo, que eu saiba.

CULT – Alguns críticos consideram que O tempo e o vento não pode ser concebido como uma epopéia. Nesse sentido, a história do Rio Grande do Sul seria vista sob o ângulo de uma personagem que a interpreta criticamente, o que contraria o acordo entre o indivíduo e seu meio, e, portanto, vai contra o espírito da epopéia. O senhor concorda com esse tipo de interpretação?
L. F. V. –
O ineditismo da trilogia é justamente esse, de ser um épico antiépico, uma odisséia autocrítica, um mito desmitificador. O terceiro volume reflete sobre o primeiro, no que no fim é uma reflexão sobre o heróico e suas mentiras e as falsidades da história. A trilogia termina com Floriano Cambará escrevendo a primeira frase do primeiro volume, o começo de sua própria história do Rio Grande do Sul, e é óbvio que ele vai escrever um O tempo e o vento diferente.

CULT – Wilson Martins considera O Arquipélago pior que O Continente, pois nele haveria, segundo o crítico, carência de ação e excesso verbal.
L. F. V. –
Acho que a idéia era essa, o primeiro volume é a lenda, o terceiro volume é uma reflexão sobre a lenda. Saímos do mundo do mito e entramos no mundo das palavras, da análise e da razão.

CULT – Em sua opinião, qual a posição que Erico ocupa hoje no cânone da literatura nacional? O senhor considera que sua obra esteja passando por um processo de revalorização?
L. F. V. –
Acho que sim. Como O tempo e o vento merece uma reavaliação, a primeira parte da obra, muitas vezes chamada de ingênua, merece uma releitura, com mais atenção às técnicas de narrativa.

CULT – O senhor considera-se influenciado pela obra de seu pai?
L. F. V. –
Eu também procuro escrever informalmente, com a preocupação de ser claro, e acho que aprendi com o seu humanismo e a sua sensibilidade social.

CULT – Houve um momento em que ele foi mais lido do que celebrado pela crítica. Hoje há uma inversão?
L. F. V. –
O fato de ele ser um escritor popular, acho eu, atrapalhou um pouco a avaliação crítica, mas isso nunca o preocupou. Hoje seus livros vendem pouco, mas regularmente, e o relançamento da obra por nova editora deve atrair leitores que não a conheciam. Se junto com essa redescoberta virá uma reavaliação crítica, não sei. Espero que sim.

Flavio Moura
professor de Teoria do Jornalismo nas Faculdades de Campinas e editor da revista Novos Estudos, do Cebrap

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