Ela judia; ele, nazista

Ela judia; ele, nazista

Talvez a melhor definição para o estado da relação teórica e afetiva de Hannah Arendt e Martin Heidegger esteja contida em uma pequena nota, na qual ela dizia que havia “permanecido fiel e infiel, ambas as coisas com amor”

Uma das relações emocionalmente mais controversas entre intelectuais definitivos para o pensamento e a história do século passado foi a dos filósofos Martin Heidegger e Hannah Arendt. Os dois se conheceram na Universidade de Mar-burg, em 1924, quando ela era uma jovem estudante de 18 anos, e ele, um professor de destaque. Um dos pensadores mais influentes do século 20, Heidegger ficou marcado também por sua ligação com o regime nazista, enquanto Arendt, judia, dedicou boa parte de sua importante obra ao estudo de regimes totalitários. Para André Duarte, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná e autor de O pensamento à sombra da ruptura (Paz e Terra), no qual analisa o pensamento arendtiano, apesar da importância de Heidegger para Arendt, é um erro mostrá-la como alguém intelectualmente dependente.

CULT – Em Origens do totalitarismo, Arendt confronta Heidegger, uma vez que temas importantes no livro são o anti-semitismo (Heidegger foi acusado de perseguir alunos e professores judeus enquanto fora reitor na Universidade de Freiburg) e a comparação do nazismo com o comunismo stalinista?
André Duarte –
Não, Heidegger não é o alvo de Origens do totalitarismo, pois o que está em questão ali é a dura tarefa de compreender aquilo que Arendt denominou como o “mal absoluto” de nosso tempo, como um fenômeno de ruptura em relação à tradição política, moral e filosófica do Ocidente; em suma, como a novidade radical do presente. A questão decisiva para ela era como compreender o surgimento, no século 20, de uma forma de dominação que não pode ser adequadamente considerada como uma versão mais violenta das ditaduras, tiranias ou despotismos já conhecidos. Quer dizer, o assunto era por si só decisivo e a investigação do anti-semitismo e das identidades estruturais entre o nazismo e o stalinismo se impôs por si própria, sem que ela necessitasse tomar a Heidegger como alvo para um acerto de contas ou confronto. Aliás, fosse esse o caso, ela não teria titubeado em mencioná-lo expressamente. O que não quer dizer que Heidegger, assim como tantos outros intelectuais respeitáveis da antiga Alemanha de Weimar, que rápida e entusiasticamente aderiram ao novo regime, não sejam implicitamente mencionados em certas passagens do livro. Por exemplo, quando Arendt descreve a estranha e temporária aliança que se formou entre a intelectualidade alemã, em seu repúdio vanguardista contra os princípios e valores morais da socie-dade burguesa, denunciados em sua hipocrisia, e os piores e menos respeitáveis elementos daquela mesma sociedade, denominados por ela como a ralé. Quanto à denúncia de que Heidegger odiasse e prejudicasse a alunos e professores judeus, ela é de fato mencionada na última carta que Arendt escreveu a Heidegger, logo depois de assumida a Reitoria da Universidade de Freiburg, em 1933. Heidegger respondeu-lhe ponto por ponto, negando veementemente tais acusações. Depois disso, eles só voltariam a se relacionar a partir de 1949.

CULT – Arendt explora as relações de Heidegger com o nazismo em sua obra ou ela busca referências apenas em seu pensamento e não em suas convicções políticas? Aliás, é possível separar isso em Heidegger? O pensador e autor do adepto do nazismo?
A.D. –
Com relação à segunda pergunta, não creio que seja possível dissociar o pensamento de Heidegger de suas posições políticas: fazê-lo significaria negar-lhe o caráter intrinsecamente situacional e incorrer em erro. Ademais, foi por motivos teóricos que Heidegger assumiu o Reitorado de Freiburg e não por desejo de poder ou por ser um racista convicto. A esse respeito, poucos se recordam de que Jaspers elogiou o discurso do reitorado de Heidegger e a sua própria decisão de assumir o cargo, sob o pretexto de que ao menos assim se preservaria a autonomia da universidade alemã. Contudo, e essa ressalva é fundamental, afirmar que Heidegger assumiu suas posições políticas a partir de certas considerações teóricas não quer dizer que a filosofia de Heidegger seja totalitária! É preciso entender sob quais impulsos propriamente teóricos se operou tal adesão, visto que a distância entre o pensamento heideggeriano e o jargão racista do nazismo é intransponível e apenas a má vontade intelectual não quer percebê-lo. A esse respeito, creio que Hannah Arendt soube como pensar de maneira adequada a natureza teórica desta cegueira que levou ao engajamento político de seu mestre, sem, contudo, rebaixar seu pensamento ao estatuto do inominável.

Passo então à primeira pergunta. Por um lado, o engajamento de Heidegger provocou-lhe reflexões muito sérias, sobretudo no que diz respeito à tensão constitutiva entre filosofia e política que orienta a tradição da filosofia política ocidental desde sua origem, com Platão. Por outro lado, e dado que ela nunca considerou o pensamento de Heidegger como intrinsecamente nazista, isso não lhe impediu de buscar inspiração em certos conceitos de Heidegger a fim de repensar as possibilidades da própria teoria política após a ruptura do fio da tradição. Certamente, o choque e a decepção com o engajamento de Heidegger foram importantes na definição da trajetória mesma de seu pensamento. Até 1933, ela não tinha preocupações intelectuais a respeito da política. Basta recordar que sua tese de doutoramento, defendida em 1929 sob orientação de Jaspers, mas fortemente marcada por categorias heidegge-rianas, versava sobre o “conceito de amor em Santo Agostinho”. O direcionamento de sua vida para a política só ocorreu a partir de 1933 e se deu, primeiramente, por meio da total recusa do meio intelectual e do engajamento na ação direta de resistência ao nazismo. Somente em 1946 Arendt voltaria a discutir questões estritamente filosóficas, ao publicar, já nos Estados Unidos, um texto introdutório sobre pensamento existencial alemão. Nele, ela criticava asperamente o pensamento do Heidegger de Ser e tempo, acusando o conceito de “autenticidade” de solipsista e romântico e contrapunha a ele o pensamento de Jaspers, em sua adesão ao vínculo comunicativo entre os seres humanos.

No entanto, depois do reencontro de ambos, em 1949, Arendt mudou sua avaliação a respeito do pensamento heideggeriano, chegando inclusive a referir-se aos conceitos de “mundo” e do homem como “ser-no-mundo”, de Ser e tempo, como contribuições decisivas para a renovação do pensamento político. Agora, ela avaliava que tais conceitos permitiam iluminar uma estrutura constitutiva da condição humana, o ser-com-outros, em relação à qual a filosofia já não podia mais pretender refugiar-se no isolamento solipsista que perpassa e orienta boa parte da reflexão filosófica política e epistemológica moderna. A mudança, como se vê, é total, e certamente tem que ver com o reencontro e o reatar de laços entre os dois. O que não significa que Arendt se tornasse, daí por diante, uma heideggeriana. Ela já havia percorrido a sós um longo caminho de pensamento, que culminara com a publicação de Origens do totalitarismo, em 1951, para novamente voltar a entregar-se a Heidegger, ainda que apenas teoricamente. Nesse sentido, são incorretas aquelas análises que afirmam a dependência intelectual e afetiva de Arendt em relação a Heidegger, como proposto por Elzbieta Ettinger em um pequeno panfleto que certamente lhe valeu um bom dinheiro, mas nenhum reconhecimento acadêmico. Talvez a melhor definição para o estado da relação teórica e afetiva de Arendt em relação a Heidegger esteja contido em uma pequena nota que Arendt pretendia entregar a Heidegger como dedicatória ao volume de A condição humana, mas não o fez, em que ela dizia que havia “permanecido fiel e infiel” a Heidegger, “ambas as coisas com amor”.

CULT –- Heidegger foi muito censurado por sua ligação com o nazismo. Isso atingiu Arendt de alguma forma? Sua obra foi de alguma maneira criticada por seu relacionamento com Heidegger?
A.D. –
Sim, e com alguma freqüência. É comum encontrar textos nos quais se critica Arendt como discípula de Heidegger, valendo-se daquela estranha forma de argumento que os americanos denominam de “guilty by association”, ou seja, culpa por associação. O raciocínio é mais ou menos o seguinte: Heidegger é um filósofo nazista. Hannah Arendt, a despeito de ser judia, foi sua amante e permaneceu sua discípula confessa. Logo, ela é não apenas afetivamente débil, pois traiu o amor por seu povo para entregar-se duas vezes aos braços do inimigo, mas também uma pensadora cujas teorias estão marcadas pelo elitismo vanguardista da filosofia da existência alemã, devendo, portanto, ser recusada. O caráter caricatural dessa formulação expressa bem o absurdo desse tipo de avaliação da relação intelectual entre dois pensadores originais. Nenhum pensador digno desse nome se deixa simplesmente “influenciar” por outro; aliás, basta pensar seriamente sobre a própria idéia de “influência” teórica – uma troca de fluidos? – para reconhecer sua fragilidade. Pensadores de estatura pensam por si próprios, respondem à provocação e ao apelo do já pensado por outros grandes pensadores, mas jamais se contentam com a posição de discípulo.

CULT – Por que Heidegger nunca deu muita atenção à obra de Arendt? 
A.D. –
Creio que quando ambos se conheceram, entre 1924 e 1925, o pensamento de Heidegger já havia alcançado um ponto de maturidade em vista do qual ele dificilmente viria a ter olhos para o pensamento daqueles que o sucederam no tempo. Assim, Heidegger foi o mestre que pôs a caminho o pensamento de autores tão diferentes e importantes como Arendt, Gadamer, Jonas e Marcuse, para limitar-me apenas a alguns de seus mais famosos alunos, mas nenhuma obra produzida por eles teve impacto no pensar heideggeriano. A questão fundamental do pen-samento de Heidegger, a chamada questão do ser, formulada e reformulada incessantemente ao longo de mais de 60 anos de vida dedicados à tarefa do pensamento, não é uma questão do presente contemporâneo. Ela é extemporânea, ou extraordinária, como o próprio Heidegger o reconhecia; não se encaixa no rol de prioridades e urgências do mundo contemporâneo e sua relação com o tempo não se pauta pelo tempo cronológico e seqüencial dos calendários. Para muitos, a obsessão hei-degge-riana com a questão do ser é incompreensível e mesmo uma aberração idiossincrática: como é que alguém ainda pode levar a sério a formulação de uma ontologia depois de Kant? Entretanto, que a questão do ser tenha sido esquecida e que já não te-nhamos mais olhos e ouvidos para ela, não quer dizer que justamente esse esquecimento não esteja relacionado com certo diagnóstico crítico e contundente a respeito de nosso próprio tempo. Ou seja, no centro desse pensamento que se ocupa não com o eterno ou com o que estaria fora do tempo, mas com o imemorial, se encontra o nosso próprio tempo e a preparação expectante da possibilidade de um novo começo.

CULT – Como Arendt inspirou Heidegger em Ser e tempo?
A.D. –
Essa pergunta não tem como ser respondida. Arendt tinha 18 anos quando se apaixonou por Heidegger. Ele tinha 35 e estava a ponto de tornar-se um clássico do pensamento filosófico ocidental. De um ponto de vista estritamente teórico, é mais do que improvável que a bela aluna pudesse contribuir na gestação da grande obra inacabada que foi Ser e tempo. No entanto, quem conhece o texto sabe da importância conferida por Heidegger às chamadas disposições afetivas, reconsideradas de maneira a desfazer a pronta identificação tradicional entre o humor e o irracional ou o subjetivo. Humores e afetos dizem muito a respeito do ser do existente, dizem como alguém está ou se encontra aqui e agora e, se bem compreendidos, elucidam aspectos onto-ló-gicos fundamentais do próprio existir. Sabe-se a importância que a disposição afetiva da angústia ocupa no pensamento de Heidegger, dos anos 20 até o início dos anos 30. Mas não apenas ela, pois ele também reflete longamente sobre o tédio, bem como menciona, aqui e ali, o caráter desvelador da alegria, do júbilo e do próprio amor. Giorgio Agamben tem um belo texto no qual reflete sobre o modo como Heidegger pensa o amor. Heidegger teria afirmado a Arendt que ela fora a grande paixão de sua vida, a força ins-pi-radora de seu pensamento no momento em que elaborava Ser e tempo. Antes mesmo de se apaixonar por Arendt, Heidegger já se encontrava fascinado pela concretude situada e afetiva do pensamento, que jamais foi para ele uma atividade desencarnada, especulativa. Se a paixão por Arendt se encontra, de algum modo, presente em Ser e tempo, isso só pode ser pensado em um sentido muito difuso, mas não menos interessante. A despeito da frieza conceitual do tratado, tampouco se lhe pode negar ser obra de um pensamento apaixonado.

Fabiano Curi
Jornalista e professor universitário

(3) Comentários

  1. Já li algumas declarações da relação entre Martin Heidegger e Hannah Arendt e pelo visto esses “dois” nunca se largaram.

    Alguém sabe por qual razão a obra Ser e tempo ficou inacabada??

  2. Esclareço que chamei professor ao André Duarte. E ao Professor Fabiano Curi, agradeço a postagem, lindona!

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