Crítica da razão ortodoxa

Crítica da razão ortodoxa
George Orwell na BBC em 1940 (Reprodução)

 

O erro mais comum em re­lação ao romance distópico 1984 é achar que se trata de uma previsão do futuro que não deu certo. Mais errado ainda é não ler 1984, justamente pelo motivo deste ano já ter passado sem que as tais “profecias” tenham se cumprido.

O próprio George Orwell dizia que o livro foi escrito para servir de alerta, não como um relato exato do que viria. Longe de ser um livro datado, 1984 tornou-se um clássico da ficção política. As reflexões do autor, tanto nessa obra como em uma longa carreira jornalística, estão cada vez mais atuais, especialmente quan­do comenta as relações entre linguagem, ideias e poder.

Na verdade, muito do que Orwell mostra no romance foi retirado da realidade mundial em 1948, quando escrevia o livro. Mudando o “8” e o “4” de posição ele chegou ao título do livro, que originariamente deveria ser chamado O último homem na Europa.

Esse homem, o personagem principal do livro, tem o curioso nome Winston Smith. O prenome lembra um dos mais brilhantes indivíduos que marcaram a política britânica e mundial no século 20, o estadista Winston Churchill. O Smith é o Silva dos ingleses.

No mundo de 1984, três grandes estados totalitários vivem em guerra permanente. Um deles (“Oceânia”) inclui o mundo anglo-saxão e as Américas; outro representa a ex-URSS e a Europa continental (“Eurásia”); o terceiro inclui China e países do Oriente (“Lestásia”). O resto, basicamente o Terceiro Mundo, é campo de batalha e conquista dos três.

Winston Smith vive na Pista de Pouso Número 1, antigamente conhecida como Grã-Bre­tanha. Prédios destruídos por bombas, bombardeios constantes, carência generalizada de suprimentos; tudo é uma continuação do clima que Orwell viveu na Londres da Segunda Guerra.

Todo cidadão é permanentemente vigiado por “teletelas”, como hoje acontece em bancos e condomínios e empresas. Apenas os proles vivem em estado “livre” – ou selvagem. O resto da sociedade é constituído pelo partido, por sua vez dividido em duas categorias. No alto dessa pirâmide está o líder supremo, o Grande Irmão, cuja imagem es­tá em toda a parte.

Uma primeira impressão indicaria que o Grande Irmão seria uma caricatura de Josef Stálin, e que seu opositor Gold­stein seria Trotsky. Mas essa identificação já fora feita antes por Orwell, no livro A revolução dos bichos (Animal farm), este sim uma sátira calcada plenamente na Revolução Soviética.

O mundo de 1984 é mais complexo. Toma características presentes nos dois lados da então recém-criada cortina de ferro (expressão, por sinal, criada pelo emérito frasista Churchill) e também na recém-derrotada Alemanha nazista.

Além disso, o livro reflete pelo menos duas décadas de reflexão política, espalhada por colunas de jornal, ensaios e livros anteriores, além da influência de alguns autores e obras – nota­da­mente The iron heel, de Jack London (1909); Nós (We), de Ievguêni Zamiátin (1924); Admirável mundo novo (Brave new world), de Aldous Huxley (1932), e The managerial revo­lution, de James Burnham (1940).

Para Orwell, dotado de um límpido estilo nas suas colunas e ensaios, a linguagem era um instrumento para expressar pensamentos e idéias. Regimes totalitários, ou militantes com idéias do gênero, procuram instru­mentalizar a linguagem para escondê-los ou impedi-los. No livro, essa linguagem chama-se “novilíngua” (ou newspeak).

Tirando uma folha da obra de seu amigo pessoal Arthur Ko­estler – autor de O zero e o infinito (título brasileiro para Dark­ness at noon), sobre os expurgos stalinistas –, Orwell mostra que o Grande Irmão não busca apenas punir fisicamente os des­viantes, mas sim controlar suas cabeças.

Outra noção importante é o pensamento como crime – “thoug­htcrime”, ou “crimi­déia”, na tradução brasileira.

O “duplipensar” (double­think) significa a capacidade de reter na mente duas crenças contraditórias ao mesmo tempo e aceitar ambas.

Longe de ser algo que aconteceria no futuro, essa é a forma tradicional das várias ortodoxias que procuram manter seus fiéis na linha, de fanáticos religiosos a seguidores de partidos políticos ou mesmo correntes filosóficas e acadêmicas.

Winston se revolta, é preso e torturado, física e mentalmente. Seu torturador lembra tanto os comissários soviéticos como os inquisidores católicos. Cristianismo e comunismo causaram e causam sofrimento a bilhões de pessoas. O’Brien, o torturador, tem um típico nome irlandês católico.

“O católico e o comunista são iguais em assumir que um oponente não pode ser ao mesmo tempo honesto e inteligente. Cada um deles tacitamente alega que ‘a verdade’ já foi revelada, e que o herege, se ele não for simplesmente um bobo, está secretamente consciente da ‘verdade’ e meramente a resiste por motivos egoístas”, escreveu ele em 1946.

Em um ensaio de 1946, “Po­litics and the english language”, Orwell, que se definia como “socialista democrático”, comenta que “se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento”.

Basta topar com qualquer “militante” para perceber como o processo é comum. O militante – católico, comunista, islâmico ou defensor das baleias – usa frases feitas, de “efeito”.

“Cada frase dessas anestesia uma parte do seu cérebro”, diz Orwell. Em vez de procurar palavras pelo seu significado e usá-las para uma descrição da realidade, o fiel ortodoxo vai apenas “grudando frases como pedaços de um galinheiro pré-fabricado”.

A “novilíngua” não foi privilégio de nazistas e stalinistas. Ela continua viva hoje em todo o espectro político, da extrema esquerda à extrema direita.

Stálin não matava dissidentes políticos, ele “eliminava elementos socialmente indesejáveis e contra-revolucionários” – o mes­mo que faz ainda hoje o “companheiro” Fidel Castro. Cuba não tem presos políticos; segundo Fidel, só tem “contra-revolucionários”. As tais ditaduras do proletariado tinham todas nomes de democracia – por exemplo, a finada República Democrática Alemã. Comunistas ainda usam eufemismos como “centralismo estatal” para descrever essas ditaduras.

Para os militares americanos, “invasão”, por exemplo, virou “entrada forçada” (forced en­try). O eufemismo “dano cola­teral” – morte de civis pegos no fogo cruzado – é outro exemplo que a imprensa tem divulgado durante os últimos conflitos protagonizados pelos EUA, assim como o famoso “ataque cirúrgico” (cujos “bisturis” são bombas com centenas de quilos de explosivos). E “matar” foi praticamente abolido do pen­ta­go­nês: o correto é “neutralizar” o inimigo, ou “despachá-lo” – por exemplo “varrendo bol­sões de resistência”.

A linguagem interessava particularmente a Orwell porque ela é um instrumento de poder.

No mundo acadêmico, com seus jogos de micropoder próprios, é comum se usar linguagem obscura. Professores universitários escondem sua mediocridade por trás de textos incompreensíveis.

“O grande inimigo da linguagem clara é a insinceridade. Quanto há um hiato entre os objetivos reais e os declarados de alguém, ele como que instintivamente se volta para longas palavras e idiomas exaustos, como um polvo espirrando tinta”, dizia Orwell.

O clássico exemplo acadêmico é o caso Sokal–Bricmont, e é extremamente esclarecedor ver quem ainda os critica – em geral, representantes do que Or­well chamava de “ortodoxias malcheirosas”.

O físico Alan Sokal, da Universidade de Nova York, e seu colega Jean Bricmont, físico da Universidade de Louvain, Bélgica, procuraram mostrar como se publica qualquer besteira na área de humanidades.

Os dois são autores do livro Imposturas intelectuais, de 1997, que surgiu de uma peça pregada por Sokal. Ele publicou, na revista americana de estudos culturais Social Text, “uma paródia repleta de citações sem sentido, mas infelizmente autênticas, a respeito da física e da matemática, extraídas de obras de eminentes intelectuais franceses e americanos”, nas palavras de ambos. A revista engoliu o texto, e depois teve de admitir que tinha publicado uma grande bobagem incompreensível.

A revista merecidamente ganhou em 1996 o prêmio Ig Nobel (o antiprêmio Nobel, trocadilho com a palavra ignóbil), por “avidamente publicarem pesquisa que eles não conseguiam entender, que o autor disse que era sem sentido, e que alegava que a realidade não existia”.

Essa mania de achar que não existe realidade, de que tudo é “construído socialmente”, tornou-se uma praga acadêmica. Construção, desconstrução, invenção, alteridade, pós-moderno; ganha um doce o autor de uma tese que não inclua uma destas palavras.

Orwell ficava horrorizado com a maneira como a história era reescrita pelos militantes, e como estes obedecem cegamente a mudanças de 180 graus nas políticas de seus partidos. A esquerda era contra a guerra em 1939, depois que Stálin e Hitler decidiram por um pacto de não-agressão. Comunistas e socialistas tornaram-se militaristas extremados depois que Hitler invadiu a URSS em 1941.

“Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado” é um dos reveladores slo­gans do partido de 1984.

Ele ficaria particularmente horrorizado com as pragas acadêmicas do multiculturalismo e do “politicamente correto”. Nos EUA, as tendências chegaram a um ponto até mesmo cômico, mas que infelizmente não é apenas uma piada de péssimo gosto. Na tentativa de criar “modelos de conduta”, heróis e inspiração para a luta por seus direitos civis, acadêmicos negros dos EUA criaram novos mitos – o de que Cleópatra era negra, ou de que a civilização grega é caudatária da egípcia, que por sua vez seria negra. Negros americanos antes usavam o termo “colored”, passaram a usar “black”; e agora se denominam afro-americanos ou africano-americanos.

Mais uma vez é uma tentativa de negar o real, a ideia de que mudar o nome de algo mudaria automaticamente a discriminação, um curioso mundo de faz-de-conta.

Orwell mostra um mundo em guerra permanente em 1984. Nada de novo nisso, já que desde o final da Segunda Guerra os conflitos continuam se multiplicando e são endêmicos em algumas regiões da África. Mas Orwell criticava o pacifismo inconsequente. Para ele, não existe nenhum guerra na qual não importa qual lado ganhe – “quase sempre um lado representa mais ou menos o progresso, o outro lado mais ou me­nos o reacionarismo”.

Em 1941, ele escreveu: “Na medida em que dificulta o esforço de guerra britânico, o pacifismo britânico está do lado dos nazistas, e o pacifismo alemão, se ele existe, está do lado da Grã-Bretanha e da União Soviética. Uma vez que os pacifistas têm mais liberdade de ação em países onde sobrevivem traços de democracia, o pacifismo pode agir mais efetivamente contra a democracia do que a favor dela. Objetivamente, o pacifista é pró-nazista.”

RICARDO BONALUME NETO é jornalista, repórter da Folha de S.Paulo e autor de George Orwell: A busca da decência (Brasiliense) e A nossa Segunda Guerra – Os brasileiros em combate, 1942-1945 (Expressão e Cultura)


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