O poeta bissexto

O poeta bissexto

Antes de se dedicar ao gênero memorialístico, Pedro Nava manteve um convívio com os poetas modernistas que resultou numa produção esporádica, porém vigorosa, cujo melhor momento é o poema “O defunto”, que prenuncia as atitudes do autor em relação à morte.

 

Às vésperas do centenário do nascimento de Pedro Nava, as suas Memórias vêm despertando um interesse cada vez maior do público, especialmente daquele proveniente dos meios acadêmicos, que não pára de produzir dissertações e teses sobre o escritor mineiro. Como se sabe, Nava publicou seu primeiro livro de memórias, Baú de ossos, em 1972, quando já contava com quase 70 anos de idade. Depois disso, foi lançando quase que sucessivamente os cinco demais volumes, todos muito alentados, naquele mesmo estilo caudaloso que o definiu, mostrando que finalmente deixava correr solta uma verve resultante de vasta experiência represada ao longo do tempo. Somente com as Memórias, sucesso de crítica e de público, Nava foi alçado à categoria de escritor literário propriamente dito.

Entretanto, apesar da consagração tardia, essa não foi sua primeira incursão pela literatura. Antes de se dedicar ao gênero memorialístico, Pedro Nava era conhecido como “poeta bissexto”, ou seja, aquele que faz poesia só de vez em quando. Manuel Bandeira acabou consolidando o epíteto quando lançou a famosa Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos (Zélio Valverde, 1946) incluindo nela alguns textos de Nava. Seus primeiros poemas surgiram ainda na década de 20, quando fazia parte do grupo que introduziu o modernismo em Minas Gerais. Esse grupo era formado, em sua maioria, por rapazes que estudavam em Belo Horizonte e que se tornariam nomes fundamentais para a política e a cultura brasileiras: Drummond, Emílio Moura, João Alphonsus, Milton Campos, Abgar Renault, Cyro dos Anjos, dentre outros.

O ponto de encontro dos rapazes era na famosa Rua da Bahia, mais especificamente na Livraria Alves e no Café e Confeitaria Estrela, daí a roda ter ficado conhecida como Grupo do Estrela. De início, seus escritos oscilavam entre as escolas do final do século XIX e tendências modernizantes que já se manifestavam em Minas. Mas, sem dúvida, um momento fundamental para a definição dos rumos do grupo foi o seu encontro com a caravana de expoentes paulistas do modernismo, que visitava Belo Horizonte na emblemática viagem “de descobrimento do Brasil”. Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e D. Olívia Guedes Penteado, acompanhados do poeta Blaise Cendrars, haviam começado seu itinerário pelo Rio e passariam também pelas cidades históricas mineiras. Esta viagem, como se sabe, contribuiu em muito para consolidar no movimento o interesse pelo nosso passado e pelas culturas que tomaram parte no processo de formação do Brasil, mas que estavam então praticamente ignorados.

O diálogo dos rapazes de Belo Horizonte com os paulistas os levaram a definir com mais clareza a postura em relação ao modernismo. No ano seguinte, lançaram A Revista, em cujo número de estréia Drummond declara de modo categórico a posição nacionalista de seus idealizado­res, muito embora, no fundo, ele e outros integrantes do grupo alimentassem reservas quanto à proposta. (Veja-se, por exemplo, o artigo “O homem do pau-brasil” – publicado em A Noite, 14/12/1925, e reeditado pelo IEB em Brasil: 1º Tempo Modernista –, em que Drummond considera que o primitivismo de Oswald recai em mero exotismo.)

Nesse contexto, Pedro Nava era um dos membros mais atuantes do grupo mineiro. Participava ativamente das discussões sobre literatura e política regadas a cerveja no Café Estrela e mostrava pendor para as artes visuais, transformando-se no desenhista do grupo. Além disso, também escrevia alguns poemas. Entusiasmado com o clima eufórico despertado pelos últimos acontecimentos, estava imbuído do ideário nacionalista, fazendo basicamente poesia de programa. Mais tarde, renegaria essa pequena produção: “O que fiz é ruim porque passou por dentro de mim, ou melhor: o espírito baixou algumas vezes mas o cavalo do santo é que não prestava” (entrevista ao Diário Carioca, em 1953, citada em entrevista a José Márcio Mendonça para a revista Status, em janeiro de 1977). Em meio aos modismos, o poeta moço experimentou as diferentes linhas nacionalistas. Procurou descrever a exuberância plástica da paisagem brasileira inspirando-se em Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho, passando por tendência que daria origem ao Verdeamare­lismo. Entretanto, sua vocação dionisíaca o aproxima de Mário e Oswald, e acaba ousando mais na assimilação dos componentes populares, negros e mestiços da civilização brasileira. Abraça a idéia central do Pau-Brasil ao mostrar, com humor e irreverência, a devoração ritual dos valores europeus e acadêmicos por nossa cultura miscigenada, conforme se vê nessa parte do poema “Tijuco”:

 II – Música

 “Violão e sons oblongos no dia longo.
Os minuetos de Vercélhes
têm outro som dançados na corte do
[Tijuco.
O violão põe ritmos mestiços,
põe coleios longos,
requebros bruscos e
sinuosidades pérfidas
no minueto de Chica da Silva

O minueto é lundum,
é jongo, é cateretê,
na côrte mulata do Tijuco.”
A Revista, n.º 1, 1925

 Dentre os integrantes da caravana paulista, o Grupo do Estrela se ligaria particularmente a Mário de Andrade, que na época já exercia o papel de orientar jovens artistas através das cartas. Nava torna-se verdadeiro discípulo de Mário, de quem absorve idéias, posturas e soluções poéticas. Esse foi um dos motivos de sua rejeição aos poemas de mocidade. De qualquer forma, inspirando-se no mentor, o poeta adere à expressão das manifestações telúricas de nosso inconsciente. Salvo algumas exceções, Mário se entusiasmava bastante com os poemas de Nava. Embora nunca tenha se referido de modo claro aos motivos que o levaram a admirar o poeta, isso provavelmente se devia à desenvoltura deste em incorporar as “coisas brasileiras” à criação, fato que cor­respondia aos ideais de Mário na época. (Conferir a apreciação dos poemas e dos desenhos de Nava por Mário, além da concepção modernista deste à época em Correspondente contumaz – Cartas de Mário de Andrade a Pedro Nava, Nova Fronteira. Ver também as cartas de Mário a Drummond: A lição do amigo, editora Record, p. 61.)

Nava escreveu poesia nacionalista de 1925 a 1928. Passada a fase combativa, a literatura tomava rumos mais exigentes, procurando abordar os problemas sociopolíticos do país. O primitivismo esgotou-se em si mesmo, o Grupo do Estrela se dispersou e Nava deu sinais de que abandonaria a poesia, pois passou a dedicar quase todo o tempo à profissão na qual acabara de se formar.

Após um período considerável, quando já era médico no Oeste pau­lista, em 1932, surge um primeiro registro de que o poeta não havia morrido em si: “Mestre Aurélio entre as rosas”, uma homenagem a seu professor de farmacologia da faculdade, Aurélio Pires. No entanto, Na­va não se torna mais que um bissexto. A sua nova – e pequena – produção é escrita, basicamente, nas décadas 30 e 40.

Um fato que o estimulou a continuar fazendo poesia foi, sem dúvida, a amizade, já no Rio de Janeiro, com intelectuais e artistas como Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes e Rodrigo Melo Franco de Andrade, com os quais passou a se reunir em encontros literários. Assim, seus textos se destinavam especialmente a tais ocasiões; até mesmo em alguns deles, o poeta se dirige de modo explícito aos companheiros. Aliás, o próprio Nava diria depois: “Toda poesia que fiz foi mais por influência do grupo em que eu andava, das amizades literárias, do que propriamente por necessidade poética” (entrevista a José Márcio Mendonça). Como de­pois renegou o que escreveu, uma parcela desses poemas permane­ ceria inédita enquanto o autor viveu. (Posteriormente, Monique Le Moing reuniu quase todos os poemas em sua biografia sobre Nava, A solidão povoada, da editora Nova Fronteira. No entanto, uma edição crítica desses textos ainda está por ser feita.)

De fato, esses textos possuem valor irregular. Se por um lado Nava prenuncia, já nessa época, o estilo exuberante, “barroco”, que apareceria muito tempo depois nas Memórias e seria aclamado pela crítica, por outro lado, tal estilo é prejudicado pelo exagero, pela retórica, ficando muito aquém do poder de evocação expresso na obra da maturidade. Além disso, o poeta se perde quando em meio a indagações cósmicas:

 “Ai! meu apelo de agonia sobre as
[águas hiperbólicas…
Túmido do amor espantoso das?
[águas vivas,
e da cólera, da poesia, do patético e
[da agonia
destes séculos de agonia…
[…]
Ai! vazios de vós, amigos meus!
Porque onde estais, que não me
[ouvis?”
“Canto do afogado”, junho de 1940

Mas apesar das fraquezas, o poeta bissexto impressionou muita gente. Manuel Bandeira e Vinícius se entusiasmaram com o humor sinistro de “O defunto”. (Conferir a apresentação de Manuel Bandeira à Antologia dos poetas bissextos. Ver também crônicas do mesmo autor em Poesia e prosa, Aguilar, 1958, vol. II, pp. 1.285-1.300.)

Este, sem dúvida, é o seu melhor poema e vem interessando também à crítica especializada, que o considera verdadeiro prenúncio das atitudes do autor em relação à morte, um dos temas mais pungentes de toda a sua obra.

Pode-se dizer que essa nova fase assinala grandes diferenças em relação aos seus textos dos anos 20: Nava deixa de lado o programa combativo, o nacionalismo pitoresco, muito embora tenha permanecido modernista nos versos livres e coloquiais que são sua marca, na blague e na irreverência.

Entretanto, essa produção bissexta é essencialmente autobiográfica, confessional. Além da circunstância exterior que fazia Nava escrever de vez em quando – a leitura para os amigos –, pode-se dizer que o “caráter bissexto” dos seus poemas se devia, também, ao fato de estes surgirem somente naquelas ocasiões em que precisava “expurgar” algo de si. Com efeito, se o autor se revela através da poesia, é possível encontrar nela as mesmas inquietudes que, muito tempo depois, estariam presentes nas Memórias, que são, basicamente, a ênfase na memória na recuperação do mundo perdido e a perplexidade em relação à morte. Como não será possível neste momento deter-me nos poemas, vou me limitar a mostrar apenas esse segundo aspecto na poesia.

De modo geral, a narrativa na­veana se ajusta às características comumente atribuídas ao gênero ao qual pertence, e seus objetivos podem ser assim resumidos: à medida que Nava ia envelhecendo e suas atividades produtivas cessavam, decidiu escrever uma narrativa na qual deseja ardentemente recuperar seu passado, buscando reconhecer a si próprio através de tudo o que viveu, reconstruindo a sua importância e acertando as contas consigo mesmo e com o outro. (Segundo Georges Gusdorf – em Mémoire et personne, PUF, p. 250 e 256 –, o papel da memória visa não apenas conservar os acontecimentos importantes de nossa existência, como também “compor uma imagem do que somos através do retrato do que fomos”.)

Por sua vez, o presente, para o narrador, é sempre tempo de sofrimento, hora de se defrontar com os próprios fantasmas, com o medo e a culpa, como se vê no capítulo de abertura de Galo-das-trevas, “Jardim da Glória à beira-mar plantado”. A angústia e a inquietação que o levam a se afastar do presente se devem, sobretudo, à idéia de morte próxima, com a qual o narrador trava uma luta sem trégua. De modo geral, re­cons­tituir o tempo pregresso lhe dá uma sensação de plenitude, apesar de momentânea, uma vez que é ilusória a volta ao passado e a morte se impõe a todo momento como o único destino certo. Dessa forma, as Memórias podem ser lidas, segundo Davi Arrigucci Jr. (“Móbile da memória”, em Enigma e comentário, Companhia das Letras), como uma vasta elegia, na qual o narrador volta e meia reitera sua impotência diante do inevitável e lamenta incessantemente a ausência dos entes queridos e o desaparecimento dos lugares onde viveu. Ademais, essas ausências vêm lembrá-lo sempre de sua própria morte, configurando, a propósito, o Memento mori, motivo popularizado por ocasião do declínio da Idade Média, que alerta sobre a finitude humana. Esse sentimento do vazio provocado pela perda está presente no poeta bissexto:

“O teu corpo fabuloso que destruíste
Destroçando com a tua
Minha vida que te pertencia,
já faz muitos anos
que descansa em paz,
no carneiro 11.514
da quadra nº 4
do cemitério de São João Batista
[…]
Mas todos os dias,
hora por hora,
no fundo da cova
de silêncio e treva
em que me lançaste,
clamo por ti”
“Nameless here for evermore”, 1941.

Contudo, as atitudes naveanas diante da questão não se limitam a essa melancolia causada pela perda. Há também um certo comportamento mórbido, que ressalta os horrores da morte, o seu lado macabro, como a descrição detalhada da decomposição do cadáver, além da ên­fase em uma estética do sinistro que acompanha o corpo no funeral. Pontuando as Memórias como um todo, tais atitudes visam, igualmente, alertar para o Memento mori, com a diferença que possuem a evidente intenção de chocar.

A ênfase no macabro se encontra em “O defunto”. Segundo Na­va, foi expelido “de um só jato”, tendo sido gestado a partir de várias experiências suas com relação à morte. No texto, o poeta di­ta instruções aos seus amigos sobre a preparação do próprio corpo para o velório. Em primeiro lugar, ordena que suas pompas fúnebres sejam de “roxo pano” para, em seguida, exigir que seu corpo seja despido parte por parte, da cara à genitália (versos 12-52). Com essas medidas, pretende despertar nos amigos “a incerteza, o pavor, o pasmo”, levando a todos a idéia de que, um dia, eles também estarão dentro de um esquife.

Ao se demorar nas mãos, entretanto, o poeta passa a se referir a atos transgressores que praticou ou que não lograram realização: o sexo ilícito, furtos e assassinatos (versos 26-35). Por se re­­portar a tais infrações, é fácil perceber que o anseio em expor as partes do corpo de modo tão desbragado corresponde, figurativamente, à necessidade de se auto-revelar. Joaquim Aguiar observou – em Espaços da memó­ria: Um estudo sobre Pedro Nava (Edusp) – que o defunto, na verdade, é uma figuração do poeta “vi­vo”, um disfarce que usa como instrumento para poder se confessar. Após o poeta ordenar o seu des­­nu­damento, as medidas seguintes deverão zelar por vesti-lo. Suas roupas deverão refletir luxo e ostentação (versos 62-74). Portanto, nesse poema a morte é encenação e espetáculo, constituindo um pretexto para a auto-revelação.

Enfim, somente uma análise mais detida dos poemas daria conta de deslindar aspectos cruciais da obra naveana. Em todo o caso, se o poeta Nava realmente não vingou, limitando-se a apenas alguns momentos notáveis, a sua poesia encerra questões-chave que iriam convergir mais tarde para estru­turar a narrativa das Me­mórias. A poesia bissexta de Nava constitui, assim, via de acesso privilegiada para a devida compreensão de sua obra definitiva.

Rosana Tokimatsu
mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP

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