A desolação da guerra: sobre a revista paranaense “O Cenáculo”

A desolação da guerra: sobre a revista paranaense “O Cenáculo”

 

I. Aflição e estafa

Desde pelo menos 2014, vivemos sob o bombardeio de informações infelizes, em que uma agrava a outra na exacerbação das moléstias contemporâneas.

Manifestações que reivindicavam melhoria da qualidade de vida se transformaram em antipetismo. O antipetismo levou ao golpe, o golpe levou à ascensão da extrema-direita. No poder, ela realizou o maior desmonte das instituições sociais já visto, com o recrudescimento da desigualdade.

A soma de pandemia mais desmonte institucional, por sua vez, está deteriorando os frágeis alicerces de saúde, educação e economia. A inflação não para, o poder de compra diminui, a miséria se prolifera ainda mais no tecido social.

Como se não bastasse, nações inauguram uma guerra de implicações mundiais que vai elevar o preço do petróleo, logo, da gasolina, a qual, por sua vez, neste momento, nunca esteve tão cara.

A ameaça nuclear ressurge como nunca, seja por causa das provocações mútuas entre os imperialismos, seja devido a uma guerra onde as usinas nucleares são território privilegiado de disputa bélica.

A guerra cultural das redes sociais, que já era simultaneamente incansável e cansativa, agora se reflete no epicentro de um conflito geopolítico mundial, que multiplica injeções unilaterais de desinformação. Já nos encontramos num novo estágio da pós-verdade.

O espectador desse circo de horrores alterna entre angústia e fadiga, aflição e estafa, massacres e pesares, agressão e solidariedade, notícias pavorosas e memes divertidos.

A singularidade monstruosa de nosso momento histórico, contudo, não deve nos impedir de reagir a sua excentricidade: olhar para trás e buscar no passado a instrução que não está nem nele nem no presente, mas no embate entre os dois.

Nossa alternância entre catástrofe e luto tem um antecedente semelhante, mesmo que bem diferente, na expressão literária de uma das publicações mais importantes da belle époque brasileira: a revista paranaense O Cenáculo.

II. Revista O Cenáculo

No mês de centenário da semana de 22 tivemos vários eventos para discutir a visibilização de outras localidades nacionais. Do mesmo modo que o modernismo, o simbolismo se espalhou pelo Brasil inteiro ao produzir dezenas de revistas dignas de atenção. A mais importante entre as primeiras delas, O Cenáculo, vigorou mensalmente entre abril de 1895 e junho de 1897.

Praticamente todos os poucos estudos sobre o periódico estão ligados à história do Paraná. Os cenaculistas são o primeiro grupo intelectual bem articulado do estado.

A guerra civil da Revolução Federalista ocorreu entre fevereiro de 1893 e agosto de 1895, porém não há nenhuma menção a ela nos números concomitantes a este período, provavelmente para não melindrar os adversários. Por outro lado, o tom predominante dos poemas é afetadamente tétrico, com menções constantes à cova, sepultura e morte.

Nos estudos, há muita menção à questão da formação da identidade paranaense, contudo, não há quase nenhuma análise propriamente literária da produção. Para um olhar distanciado, a ligação entre a guerra em curso (que contabilizou em torno de dez mil mortos) e a atmosfera sepulcral é patente.

 

III. Cavaleiros do apocalipse

Os editores da revista O Cenáculo são “quatro sacerdotes”: “Levitas do Verso” e “Pontificadores da Arte”, segundo o colaborador mais frequente da revista, Leôncio Correia (nono fascículo, dezembro de 1895). Dario Vellozo é o fundador e o agregador, pois convidava seus três amigos para se refugiarem no chamado Retiro saudoso, nos arredores de Curitiba, lugar de abrigo das animadas reuniões do grupo. Sua produção poética, editorial e intelectual foi abundante e prolífica. No último ano da revista, Dario se tornou o único editor.

Silveira Neto era filho de operários, sendo o mais pobre, aquele que enfrentou uma série de dificuldades de inserção social, mas que, ao longo de sua carreira, foi o mais reconhecido.

Julio Pernetta era uma personalidade dupla: por um lado, o mais maldito do trio, pois escrevia poemas em prosa amargos e sarcásticos, por outro, pesquisava a cultura popular paranaense e escrevia contos sobre o caboclo do sul.

Antonio Braga era o menos talentoso e, diferentemente de abraçar o simbolismo como os outros, manteve-se parnasiano; porém, mesmo assim, seus poemas são tão sinistros quanto os de seus amigos.

Em um poema de Silveira Neto intitulado “Missa negra” (quarto fascículo, junho de 1895), um monge que “dialogava aos astros do infinito” relata uma “febre”, sintoma da “nevrose e a loucura em meo craneo”.

Num sonho, o poeta se encontra dentro de um templo com “puras almas brancas” em prece, formando um coro, “um canto de tristezas”: “e a prece ia, a gemer, de alma em alma echoando”.

O retrato do poeta como monge melancólico é constante na revista. No espaço estrelado ele recorda um sonho assombroso num lugar sagrado e num momento ritualístico coral, em que um coletivo de almas preenche o imenso recinto com ressonâncias recíprocas.

A introdução musical atmosférica prepara a entrada de uma “mulher que continha a sua alma captiva,/ No doudo mysticismo atro de monja histérica” e, diante dessa visão dolorosa, que confunde a mística feminina com histeria (mistura rica de sentidos entre o campo religioso e o psicológico), há vários versos dramáticos e logopaicos de alto impacto:

Porque a existência humana em lagrimas se funde?
Para que tanta dor que expressal-a não ouso?
Nascemos a chorar e o respeito que infunde
O sepulchro annuncia o primeiro repouso.

A impossibilidade de expressar a dor vem do excesso de desilusão, da fusão da existência com o lamento, do sentido de existir com o sossego da sepultura.

A treva é a dor da Luz; n’ essa hora o riso dorme
A noite penetrava o silente universo,
Como n’um craneo immenso uma loucura enorme.

A definição poética da treva como tormento de seu oposto, a luz, e emudecimento do riso, num silêncio que se expande na noite, é comparável ao agigantamento redundante da demência no “crânio”, aqui sendo sua imagem cadavérica metonímica. A histeria da monja e a loucura do monge se irmanam na inexpressividade impotente da angústia existencial.

 

IV. Badaladas mortuárias

Um poema de vários cantos que se prolonga em diferentes fascículos do ano de 1895, de Dario Vellozo, nomeado “Alma penitente”, transita na mesma direção:

A inditosa Innocencia soffredora
Morde o pó das desgraças da existência…
E ha sempre a chufa para a peccadora,
E falta sempre o pão para a Indigencia!

(quinto fascículo, agosto de 1895)

Curioso momento de crítica social entremeado na queixa patética: o inocente pena no desamparo, a pecadora apanha na zombaria, o pobre carece de alimento. As três vítimas da crueldade motivam a revolta nevrótica do poeta.

Mais adiante, a injustiça se resolve na melancolia tumular: o “espectro da Saudade” está sempre “Monologando á beira dos sepulcros,/ Ha sempre um echo de infelicidade/ Nos corações mais castos e mais pulchros”, onde, mais uma vez, a dor lutuosa reverbera por dentro da intimidade dos imaculados que perambulam no espaço funéreo.

Antonio Braga, numa recolha de aforismos chamada Miserere – que,  na liturgia católica, é uma prece por perdão – também exibe seus achados melopeicos e logopaicos: “o soffrimento é a elegia do Ser”.

A sentença antecede um dito lírico que, na mesma atmosfera dos poemas anteriores, congrega nevrose, musicalidade sagrada, spleen, introversão e ambiente fúnebre: “A extranha muzica nêvrotica do sentimento amargurado foi ouvida pelos morosos echos da solidão, que a repetiram lentamente como soturnas badaladas de um bronze mortuario” (também no quinto fascículo). A música da nevrose (ideia extravagante) está na tristeza do poeta, que soa como um gongo numa cerimônia funerária oriental, sendo “bronze” sua metonímia.

Nota-se que geralmente as cenas se revezam entre queixas revoltosas e solenidades pavorosas. O poema em prosa de Julio Pernetta, “Litania da morte”, suplica a ela que o escute, isto é, mais uma atmosfera lúgubre dentro do registro acústico:

Morte, morte piedosa, consoladora dos afflictos, irmã de caridade dos que soffrem, ouve, escuta […] este requiem de afflicções que passa soluçante por meos lábios enfebrecidos n’um tropel angustioso de desespero.

As imagens dos cenaculistas transportam sempre uma carga concentrada de complexidade: a morte não é entendida como a anunciadora da desgraça, ao contrário, ela é, dentro de uma lógica suicidária, consoladora. O rumorejar do desesperado sussurra o “réquiem” lamuriante que deseja ser atendido pela eminência encerradora da existência.

 

V. Ecos de antanho

A febre dos monges poetas e nevróticos monologa no cemitério o seu canto fúnebre. Este se patenteia nos títulos das obras: “Missa negra”, de Silveira Netto, “Miserere”, de Antonio Braga e “Litania da morte”, de Julio Pernetta;  já a repercussão acústica e afetiva da angústia comparece na intenção confessional de “Alma penitente”, de Dario Vellozo.

A obsessão pela atmosfera soturna não deve ser compreendida como capricho de escritores periféricos de copiar a temática decadentista francesa. Ao contrário, ela comprova que o não dito da guerra em curso é ostentado na revista pela onipresença cênica da ficcionalização dos ritos fúnebres.

Em sua época e contexto, os paranaenses experimentaram um excesso de funerais que foram notoriamente incorporados em sua poética.

Hoje, em tempos de pandemia, ao contrário, vivenciamos missas presenciais esvaziadas e grande número de condolências nos anúncios de falecimento das postagens em redes sociais, lugar de atividade incansável e cansativa.

O excesso de suspiros amargurados do passado, que tanto remoeram o pesar, ecoa, quase imperceptivelmente, na ausência de trabalho de luto do presente. A presença do sepulcro de ontem reverbera no seu apagamento digital de hoje.

Para ler a revista, clique aqui.

 

Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.


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