Chuang Tzu e a borboleta em macondo

Chuang Tzu e a borboleta em macondo

É muito raro encontrar, entre os novos autores de ficção no Brasil, alguém que cite o nome de García Márquez no rol de suas “influências”, ainda que ele seja imensamente querido por seus leitores brasileiros

Conta a lenda que o sábio taoísta Chuang Tzu, ao dormir, sonhou ser uma borboleta, mas ao acordar se perguntou: será que eu era antes Chuang Tzu sonhando ser uma borboleta ou sou agora uma borboleta adormecida, sonhando ser Chuang Tzu?

Gustavo Bernardo interpreta essa indecisão do sábio “como um testemunho da indizibilidade do real, ou como um atestado da sua instabilidade” (A ficção cética. São Paulo: Annablume, 2004. p. 17). Dito de outro modo: a dúvida de Chuang Tzu nos lembra de que não somos capazes de delimitar, com segurança, aquilo a que arbitrariamente nos habituamos a chamar de “mundo real”. Será que essa suposta tangibilidade do cotidiano, com sua pletora de informações, ruídos e acontecimentos é tão confiável assim? Ou pelo menos: será que é o que parece?

Creio que a dúvida de Chuang Tzu nos remete à experiência da ficção – da leitura e da escrita da obra de ficção. E possivelmente o “atestado de instabilidade” do real que essa dúvida parece conceder fala, também, do nosso trânsito pelo território da literatura.

Aqui me lembro de Frau Frida, a mulher que, no conto de Gabriel García Márquez, se aluga para sonhar. Basicamente, sua tarefa era ouvir os sonhos das pessoas, no café da manhã, e decidir “o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa.” (Doze contos peregrinos. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 95). Sua capacidade de comunicação com o mundo mágico acaba por torná-la rica. A ficção se oferece a nós como uma espécie de Frau Frida, sonhadora de aluguel, capaz de nos reconciliar com essa “indizibilidade” e essa instabilidade do real. É como se por meio da leitura e da escrita da ficção recuperássemos o assombro dos antigos diante do primeiro eclipse, ou a curiosidade que tínhamos quando, ainda no berço, examinávamos nossas próprias mãos.

Gustavo Bernardo nos lembra ainda de que “a existência do discurso ficcional explicita a dúvida crucial que sentimos quanto à realidade da realidade. Essa dúvida é equivalente à dúvida que o espelho nos provoca, em especial se nos demorarmos muito tempo à sua frente. Porque suspeita do real, a ficção produz sobre ele uma nova perspectiva e, conseqüentemente, uma segunda realidade” (op. cit., p. 23).

No conto de García Márquez, Frau Frida se aluga para interpretar sonhos: ou seja, para que o trânsito que todos experimentamos por esse território nebuloso e noturno redunde em “realidade”. O que faz dela uma mulher admirada e rica é a capacidade de “acertar” na interpretação dos sonhos – a capacidade de torná-los úteis. Mas, parafraseando Leminski e Manoel de Barros, a literatura é um “inutensílio”. Isso é precisamente o que lhe confere leveza e lhe dá o passaporte para transitar nesse universo dos sonhos, nesse território onde Frau Frida reinava com tanta propriedade até morrer convenientemente alçada, dentro de seu carro, por uma onda gigante, e espetada, veículo e tudo, num muro.

A gênese da coletânea de contos que iclui “Me alugo para sonhar,” Doze contos peregrinos, é relatada no prólogo por García Márquez, numa espécie de décimo-terceiro conto. Ali, ele nos diz que inicialmente pensara no livro como “uma coleção de contos curtos, baseados em fatos jornalísticos, mas redimidos de sua condição mortal pelas astúcias da poesia” (p. 10). Redimidos de sua condição mortal: redimidos de seu excesso de realidade, talvez, e prontos a se alugar para sonhar?

García Márquez, como é sabido, tem no engajamento político o norte de toda sua ficção, que se oferece a leituras dessa ordem sem que assome no horizonte o fantasma daquilo que Umberto Eco denominou “superinterpretação” (basicamente, encontrar no texto algo que ele não oferece). O discurso do autor colombiano ao receber o Prêmio Nobel, em 1982, é prova cabal disso. Mas podemos supor, aliás sem nenhuma originalidade, que toda ficção é política desde que fale à imaginação, desde que problematize e “complexifique” o mundo, comprometa a sensação de estarmos circundados por “verdades,” questione a visão reificada que temos de nós mesmos e das coisas. E tal ficção há de tocar mais fundo quanto mais possa extrapolar questões específicas a uma nacionalidade ou a um momento histórico para tocar naquilo que é essencialmente humano, e assim pertinente a todos. Se esse pressuposto está correto, toda boa ficção, mesmo que não se queira explicitamente “engajada,” desempenha uma função política e social – tão mais valiosa, quem sabe, quanto mais livre de compromissos esteja para simplesmente… imaginar.

Nesse sentido, podemos nos perguntar se o que há de mais interessante na obra do Nobel colombiano não é justamente o seu hábil manejo da imaginação, que ofusca as alegorias de cunho político. Lembro-me de quanto a obra de nosso vizinho argentino Julio Cortázar foi valorizada por seu engajamento, por sua postura de esquerda, enquanto a de seu conterrâneo Borges recebia a crítica de ser direitista. Ora, parece óbvio dizer que uma leitura política da obra de Cortázar e sobretudo da obra de Borges é empobrecedora – é fechar o foco num ângulo pequenino quando temos os cento e oitenta graus do horizonte ao nosso dispor. Quando a ficção problematiza o mundo e desestabiliza nossa primeira e mais óbvia leitura da realidade, está propondo perguntas, que serão mais fecundas quanto mais pudermos mantê-las e conviver com elas, sem ceder à tentação de oferecer-lhes respostas (o que equivaleria, talvez, a simplesmente substituir um juízo por outro).

Se posso fazer um parêntese autobiográfico, foi aquela “desatada imaginação” que “ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia”, como nos é descrita a imaginação de José Arcadio Buendía pelo narrador de Cem anos de solidão, que me encantou quando li esse romance, aos quinze anos de idade (Trad. Eliane Zagury. 3a ed. Rio de Janeiro: Ed. Sabiá, 1969. p. 8). E que provavelmente ecoava em minha memória de leitora quando escrevi meu primeiro livro, aos vinte e seis – um romance que flerta em vários momentos com o real maravilhoso.

A leitura, como sabemos, não é uma atividade inocente. Somos como aquele personagem do conto de Cortázar, “Continuidade dos parques”, que é vítima do que lê, que se torna cúmplice, por meio do ato mesmo da leitura, de seu assassino. A leitura nos compromete e nos marca de forma imponderável e, muitas vezes, irrecuperável. Assim, a leitura epifânica dos quinze anos dificilmente há de se repetir mais tarde. Para tirar a questão a limpo, apanho Cem anos de solidão na estante e releio as quarenta primeiras páginas. De imediato percebo que aquilo que me seduziu há dezenove anos e aquilo que me seduz hoje, em minha experiência de leitora, são coisas diversas. Por exemplo, já não me atenho às aparições de Prudencio Aguilar depois de morto, nem ao tapete voador conduzido por um cigano. Ao mesmo tempo, a experiência amorosa do jovem José Arcadio Buendía com Pilar Tenrera, entre o gozo, o mistério e o terror, me atinge com uma beleza quase insuportável.

São, naturalmente, formas diversas de enfrentar o desafio da escrita de ficção. O real maravilhoso de García Márquez, com aquilo que tem de pitoresco, talvez nos soe hoje como um estilo demasiadamente marcado. Macondo acabou, quem sabe, por se tornar uma caricatura de si mesmo – em certa medida, e guardadas todas as diferenças, como a Bahia de Jorge Amado, não coincidentemente outro autor de uma obra norteada pela temática política e social e igualmente cotado, quando ainda em vida, para receber o Nobel.

É muito raro encontrar, entre os novos autores de ficção no Brasil, alguém que cite o nome de García Márquez no rol de suas “influências,” ainda que ele seja imensamente querido por seus leitores brasileiros. Pessoalmente, a presença do real maravilhoso ou do compromisso político por demais evidente na obra do autor colombiano me encanta bem menos, hoje, do que aquilo que ela reflete de belo e pequenino, ou do que os momentos em que pára na estação anterior ao domínio do maravilhoso, do sobrenatural, e se contenta com o fantástico apenas – para recorrer à distinção de Todorov – como, por exemplo, nos inesquecíveis contos peregrinos “O verão feliz da Senhora Forbes” ou “Tramontana”, que deixam uma porção de perguntas sem resposta no ar.

No meu caso específico, essa “desatada imaginação” parece ter hoje menos pressa. Foi Santa Teresa de Jesus, recentemente citada por Rosa Montero, quem definiu a imaginação como a “louca da casa” – aquela que normalmente fica trancada numa água-furtada, mas cuja presença paira pelos outros cômodos feito uma sombra. Sem dúvida é ela, essa louca da casa, com tudo o que tem de assustador, de estranho e de imponderável, que nos redime de uma existência rasteira – de uma realidade ao mesmo tempo excessiva e insuficiente. Mas talvez em dados momentos a louca fique um pouco mais silenciosa, menos interessada em tapetes voadores e mais sensível à primeira experiência sexual do jovem Buendía, por exemplo, com tudo o que também tem de (um outro) maravilhoso.

Ao mesmo tempo, não há dúvidas de que o tapete voador está lá, em nossa memória de leitores e leitoras, junto com Blimunda, Brás Cubas, Riobaldo e Diadorim, Frau Frida, o Padre Amaro e mais uma galeria de nomes ilustres ou não. A presença desses “fantasmas” naquilo que escrevemos independe de nossa vontade consciente, por mais que selecionemos um elenco de autores que desejamos ter em nossa genealogia. A experiência da leitura, repito, nunca é inocente, nem livre de riscos.

O compromisso realista assumido por uma parte dos atuais ficcionistas brasileiros, outro lado dessa moeda, parece confundir a exatidão com “retratos que se pretendem mais reais do que a própria realidade,” como sintetizou Flávio Carneiro numa resenha (“Uma galeria de inesquecíveis criaturas.” Jornal do Brasil, Caderno Idéias, 06/11/04, p. 6). Paralelamente, nesta celebrada diversidade de estilos que verificamos, mesmo que a mídia centre suas atenções no que alguns estudiosos vêm chamando de “neo-realismo,” é bom notar que freqüentemente nos deparamos com autores que reiteram a velha dúvida de Chuang Tzu. Será que vivo? Será que sonho? O que é exatamente isso a que dou o nome de real? Onde ficam as fronteiras deste mundo, e onde se separam luz e sombra, loucura e sanidade, verdade e ficção?

Entre os romances-reportagem de um lado e as narrativas que recuperam certo estranhamento diante do mundo de outro (mais próximo do fantástico de Borges e Cortázar do que do real maravilhoso de García Márquez), nessa corda bamba, é sempre viva a esperança de que nossa literatura possa ultrapassar a categoria de bandeira política ou psicanálise de bolso e se faça sobretudo um necessário testemunho da complexidade da vida.

Adriana Lisboa
escritora, autora de Sinfonia em brancoUm beijo de colombina (ambos pela Editora Rocco)

Bibliografia Básica

OBRAS de Gabriel García Márquez
(editadas no Brasil)

Folhas mortas
Ninguém escreve ao coronel
Cem anos de solidão
Doze contos peregrinos
O general em seu labirinto
O amor nos tempos do cólera
A aventura de Miguel Littin clandestino no Chile
Cheiro de goiaba: conversas com Plinio Apuleyo Mendoza
Como contar um conto
Crônica de uma morte anunciada
Do amor e outros demônios
O enterro do Diabo: a revoada
Entre amigos
• Os funerais da Mamãe Grande
A má hora (o veneno da madrugada)
A incrível e triste história da cândida Erêndira e sua avó desalmada
Olhos de cão azul
O outono do patriarca
Relato de um náufrago
Textos do Caribe – Volumes 1 e 2
Oficina de roteiro de Gabriel García Márquez: me alugo para sonhar
Notícias de um seqüestro
Viver para contá-las (memórias) A Editora Record detém os direitos da obra do escritor para o mercado brasileiro.

Último livro lançado:

Memoria de mis putas tristes. Ed. Espasa Calpe, 2004. Sem previsão de lançamento para o mercado brasileiro.

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