10 de agosto, o passado à nossa frente
Para forçar os deputados a recuar a legislação eleitoral em 25 anos, o presidente quis intimidar os parlamentares com tanques de 50 anos, alegoria do Brasil bolsonarista: arrota força e poder, mas entrega gambiarra e ferrugem (Foto: Reprodução)
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O mundo inteiro está no século 21, mas nós, deste torturado país, transcorremos o último dia 10 de agosto em algum lugar do passado. Ou em algum pesadelo difícil de esquecer. A pauta do dia, no Congresso e na vida pública nacional, era o retorno ao voto impresso com contagem manual, agora repaginados como “voto auditável” com “apuração pública”. Tratava-se de um convite para regressar à era em que não havia eleição nesse país sem que houvesse acusações e ocorrência de fraudes, situação que qualquer brasileiro que foi às urnas antes de 1996 conhece muito bem.
Tudo isso porque o atual mandatário da nação, cada vez mais consciente de que o acaso que o elegeu presidente da República em 2018 é uma possibilidade cada vez mais remota, resolveu que era preciso desqualificar de antemão o jogo que ele provavelmente perderá.
Então, o país teve que despender as suas melhores energias políticas, por alguns meses, para acompanhar uma fraude narrativa sobre fraudes eleitorais – sem prova alguma, apesar de tantos recursos à disposição do acusador -, espalhadas por ninguém menos que o próprio presidente da República. Em seguida teve que lidar com nada menos do que um Projeto de Emenda Constitucional que o presidente e a sua turma excogitaram para evitar uma fantasiada fraude futura. No caso, a fraude que ainda não aconteceu, mas que ele garante que acontecerá, deveria paradoxalmente ser evitada por meio de processo eleitoral que, sabidamente, foi o mais fraudulento da nossa curta história republicana.
E mesmo depois que a tresloucada ideia, já desmascarada como cortina de fumaça e devaneio de um monarca paranoico, foi derrotada em Comissão do Congresso, os presidentes da República e da Câmara, em simbiose fisiológica intensa, forçaram a ida da PEC ao plenário para que a totalidade dos deputados se dedicasse a votar a quimera de interesse de Bolsonaro, e sem interesse algum para a nação.
O país morre ou definha, de Covid-19 e desemprego, mas tudo de que nos ocupamos, por iniciativa de Sua Excelência, é de desacreditar uma das melhores instituições brasileiras, o nosso avançadíssimo, eficiente e até aqui comprovadamente seguro processo eleitoral. Passamos dias de aflição e suspense até esperar que a Câmara dos Deputados votasse se era melhor ir para frente ou voltar 25 anos atrás, apenas porque o Mandatário precisa desqualificar o processo eleitoral ante uma iminente derrota. O presidente, seus caprichos e delírios são o umbigo da vida pública brasileira.
Mas essa foi apenas a forma como terminou este dia singular. A manhã começou com a confirmação de rumores dos dias anteriores, de que o presidente da República e o seu ministro da Defesa promoveriam um desfile de tanques em frente ao Congresso Nacional, enquanto este se preparava para votar a Emenda Constitucional sobre o voto impresso. A medida, por si só, já era espantosa, extravagante e incompatível com um regime democrático, e só poderia provir justo dessas duas mentes que não podem ser acusadas de ter um fiapo de convicção democrática, uma migalha de compreensão da vida pública republicana. Mas como não há qualquer ideia péssima que o presidente e a sua turma não possam piorar, a parada de carros armados foi um constrangedor desfile de veículos caindo aos pedaços, sucatas sustentadas por arame e durepox.
Pois é. Para forçar os deputados a recuar a legislação eleitoral em 25 anos, achou o presidente por bem intimidar os parlamentares com tanques idosos de 50 anos, alegoria perfeita do Brasil bolsonarista, que arrota força e poder, mas entrega gambiarra e ferrugem.
Acha, pouco? Pois tem mais. Naquela mesma manhã, o ministro da Educação recebeu do fracassado e inepto Ministério da Saúde uma condecoração – a mesma que foi oferecida à esposa do mandatário da nação – por “feitos notáveis”, mas não notados por qualquer pessoa, em prol da saúde dos brasileiros. Neste ato, o ministro da Educação de um país que forma 20 vezes menos engenheiros do que a Coreia do Sul discursa ao público declarando que o problema das universidades brasileiras é que formam engenheiros demais, quando deveriam formar apenas os filhos dos ricos que já têm emprego para dar aos filhotes, e não os filhos de pobres, condenados a dirigir Uber. A universidade deveria ser mesmo para poucos, disse o condecorado ministro, sugerindo, conforme o padrão deste governo, que a gente deveria evoluir para trás, desta vez até o modelo das universidades medievais, que só formavam os filhos das classes dominantes. Evoluir para trás, porque o passado é mais seguro, deveria ser o lema do bolsonarismo.
Findo o fatídico dia, me pus a perguntar: como pode, uma nação de 200 milhões de habitantes, uma das maiores economias do mundo, ter decidido, democraticamente, que queria ser governada pela ralé moral e intelectual da extrema-direita, que se prova todo dia estúpida, perversa e nociva? Como foi possível que este país estivesse tão fora de si ao ponto de resolver fazer uma piada de extremo mau gosto consigo mesmo?
O roteirista do filme “Brasil, 10 de agosto de 2021” veio direto da dramaturgia sadomasoquista para escrever scripts para a política nacional. Que imaginação, meus amigos e que prazer na dor! Se eu não anotar isso agora, daqui a semanas vamos achar esse dia inverossímil e inacreditável. Um dia que o bolsonarismo propôs explicitamente ao país que o melhor futuro que podemos ter é voltar para trás.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
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