#AgoraÉQueSãoElas!
Helena Vieira, travesti, transfeminista e pesquisadora em Teoria Queer na Unilab
Nesta semana, como forma de amplificar a mobilização feminista em curso e acentuar o protagonismo das mulheres nas lutas políticas de nosso tempo, estas ocuparão o espaço tradicional de homens nas suas colunas, blogs, revistas e outras mídias.
Não se trata de mera “concessão de migalhas” ou de “apropriação de protagonismo”, como alguns disseram para desqualificar de antemão a campanha.
O que se busca não é celebrar a “generosidade” ou “sensibilidade” de homens que cederam um dia seus espaços de privilégio, mas justamente colocar o foco na denúncia e na visibilização das desigualdades que estruturam as relações de gênero em nosso país. E a voz e a representação diminutas das mulheres nos veículos de comunicação é apenas uma das manifestações dessa injustiça estrutural que precisa ser combatida.
Com esse compromisso de apoio às lutas feministas, que não começa e não termina com essa campanha, é que aderi e convidei a Helena Vieira, travesti, transfeminista e pesquisadora em Teoria Queer na Unilab para ocupar esta coluna. Além da militância no feminismo, ela também tem uma rica experiência política e acadêmica na discussão de questões LGBTs:
Travestis e pessoas trans: vozes que devem ganhar o mundo
Não poderia começar este texto de outra maneira que não seja me afirmando, políticamente como uma travesti e também como uma mulher, sim, para alguns isso pode parecer complicado, mas é assim que me localizo no mundo.
Afirmar-me como travesti é um ato de subversão a uma identidade que no imaginário popular é marcada por estigmas de “ falsificação da feminilidade”, de “ promiscuidade”, de “ perversão”, de “ doenças”, de “ prostituição”. Nos tomam, no mais das vezes, como essencialmente dadas a condições marginais e subumanas, como se não existisse nenhuma outra possibilidade de “ ser”.
Esse imaginário, desconsidera que 90 % das travestis e mulheres trans no Brasil vivem na prostituição , que a maioria de nós é obrigada a deixar a escola, por não suportar um ambiente hostil, expulsivo, violento e transfóbico, desconsideram que nossa expectativa de vida está em torno dos 38 anos de idade, que somos expulsas de casa e desprezadas no mercado de trabalho, desconsideram que quando nos colocamos no mundo enquanto pessoas trans ou travestis, seremos tratadas no limite da monstruosidade, da abjeção, da negação da nossa humanidade.
Certa vez, enquanto dava uma formação para estudantes de Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC, um aluno me disse: “ Eu vi uma travesti apenas uma vez, mas foi pelo vidro do carro. Ela se prostituia”, outro me disse “ Você é a primeira travesti que eu vejo assim, de dia”, outro ainda “ Havia travestis que se prositituiam perto da minha casa. Eu sempre tive medo delas”. Essas falas, me preocuparam, eu perguntei a eles: “ Onde vocês acham que nós estávamos, que seus olhares jamais nos atingiram? “. Não havia resposta, mas a verdade era clara: estávamos, e ainda estamos, invisibilizadas, vagando pela noite como vampiros que sabem que se sair a luz do dia serão feridos de todas as formas, no nosso caso, pela violência do mundo que rejeita a diferença, que rejeita a multiplicidade das experiências e subjetividades.
Nossa entrada no mundo dos “ normais”, aqueles que vivem sob a batuta das normas de gênero, da estética utópica do masculino e do feminino, não é suportada, inicialmente, porque nossa existência confunde o que foi aprendido e construído ao longo dos séculos, nossa existência neste mundo, é de tal forma abjeta, que: ou querem nos aniquilar, pelo suicídio e pela violência transfóbica, ou querem apagar nossa existência através da expulsão, da negação, da rejeição.
Tem circulado pela internet recentemente, que há privilégio em ser uma pessoa trans, jamais entendi tal afirmação, uma vez que não vejo privilégio em conviver com o desamor: tanto da família, quanto dos amores românticos, que também nos são negados, afinal, pensam que não somos humanas, que somos seres superficiais, máquinas perversas de sexo e satisfação do fetiche daqueles que vagam pela noite em busca de nossos corpos. Não há privilégio em temer violência e abuso cada vez que estando na rua, pensamos em ir ao banheiro, ou em saber que apenas recentemente o Brasil teve a primeira travesti a concluir um doutorado, e hoje, são apenas duas.
E é neste sentido, de toda a experiência de agressão e violência que vivemos que a luta das pessoas trans e travestis é importante, e é vital para a construção de um mundo de justiça social, é neste sentido que o transfeminismo precisa seguir marchando e conquistando espaços, porque é doloroso passar a vida sem poder ouvir e ver pessoas como nós, foi assim minha adolescência, jamais soube o que era todo aquele desconforto que sentia com meu corpo, com minha identidade. Descobri através da internet, e das vozes que estão ecoando recentemente que sim, nós podemos ser pessoas trans e que não há absolutamente nada de errado nisso.
Não há conquista de direitos, em uma democracia, sem que haja organização, luta e pressão. Parafraseando Hannah Arendt, nestes tempos sombrios de fascismo, fundamentalismo e conservadorismo é importante que as vozes de pessoas trans e travestis ecoem pelas ruas, pelas universidades, pelas redes, pelos lares, pelas bancas de jornal, por todos os espaços. É preciso ocupar cada milímetro que nos foi negado ao longo da história.