Rafiki: alegria não é luxo por aqui
Sheila Munyiva (Ziki) e Samantha Mugatsia (Kena) em cena de Rafiki, de Wanuri Kahiu (Foto: Divulgação)
Tribadismo é uma panaceia ancestral e vale a pena
uma panaceia ancestral e vale a pena
[do poema “intimacy no luxury”, de Cheryl Clarke]
Rafiki, termo em suaíli que significa “amigue”, deu nome ao segundo longa-metragem da diretora Wanuri Kahiu, co-fundadora do movimento AfroBubbleGum, cujas premissas apontam para a importância da arte em benefício da arte e da imaginação, evidenciando a importância de narrativas que não passem necessariamente pelo crivo da dor e da denúncia. O primeiro longa queniano a ser exibido no Festival de Cannes, que veio para a 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e compôs a Mostra de Cinemas Africanos no CineSesc, carrega um título que remete à amizade entre duas mulheres e abriga uma história de amor em um país que condena “práticas homossexuais” com pena de reclusão de até 14 anos.
O enredo do longa foi baseado no conto “Jambula Tree”, da escritora ugandense Monica Arac de Nyeko, com suas personagens Anyango e Sanyu. O título do filme e ambas as histórias encontram facilmente proximidades por aqui. Digo, quantas vezes não chamamos um afeto de “amiga” por alguma imposição externa em determinados espaços? Embora, sim, sejamos amigas e companheiras, essa palavra é usada muitas vezes pra encobrir a outra parte da história, aquela que precisa ser omitida dos outros, que nos livra do julgamento social e da vergonha de nossos pais. E embora a lei teórica e muito seletivamente (pois sabemos a quem serve) não alcance o nosso amor, a reclusão ainda existe, assim como o linchamento físico, social ou psicológico, a exclusão, a solidão.
Mas Rafiki também me fez pensar em sonhos. Anyango e Sanyu naquele galho proibido no alto da mangueira, Kena e Ziki no telhado de um prédio dizendo uma pra outra que poderiam ser qualquer coisa. A grandiosidade dos sonhos, o ato grandioso de sonhar e compartilhar desejos. Kena diz que sonha em ser enfermeira. Ziki rebate, afirmando que ela pode ser médica, que pode o que ela quiser ser. Eu já estive aí, pensei. Nesta mesma cena. Nós já estivemos, lembra? Quando tentavam nos dizer tudo o que a gente podia e devia ser, quando tudo o que por nós se vislumbrava adiante era um futuro borrado, incompleto. Um futuro sem sonhos. Uma vida sem possibilidades, sem as nossas possibilidades.
Após assistir ao filme, além de lembrar de mim mesma porque, pensei, as personagens poderiam ser sapatões pretas de qualquer comunidade periférica daqui, me peguei pensando em algumas vozes. Pensei em Noir Blue: deslocamentos de uma dança (2018), um curta de Ana Pi em que a artista desvenda ancestralidades ancoradas em África, já começando pela tripulação do avião, toda composta por pessoas negras, e passando por sua experiência de se ver pertencente a nenhum lugar específico do continente, mas a todos. Pensei, então, em negritude. O que é ser negrx aqui, pra mim, pra gente? O que significa o desejo de Ziki de viajar pra um lugar em que as pessoas provavelmente nunca viram uma africana? Desejo de ser e se encontrar em qualquer lugar, e que não seja na condição de outra.
Lembrei de Sokari Ekine, escritora nigeriana cujo artigo “Narrativas contestadoras da África queer” (2013) ajuda a elucidar a noção essencialista de uma “africanidade autêntica” que apoia a ideia de que a homossexualidade seria algo “não-africano”, num discurso fundamentalista que afirma que as iniciativas ocidentais em prol das identidades queer em África são imperialistas. Por outro lado, há também uma narrativa que taxa o continente como um lugar de “homofobia obsessiva”, alvo de interesse por parte de ativistas LGBTQI brancos ocidentais que “espetacularizam a homofobia africana como sendo um fenômeno geográfico único, sem conexão com a história local e global e essencialmente inerente à cultura africana”, numa tentativa de universalizar forçosamente o queer a partir de um viés da branquitude europeia e estadunidense, quando não impor controle variado de poder se utilizando do assistencialismo pró-LGBTQI como fachada, movidos pela premissa absurda de “salvar os africanos da África”.
Ekine, denunciando a imposição de uma “narrativa ocidental sobre as lutas queer africanas”, encontra seu eco decolonial no “cuírlombismo literário”, conceito cunhado em uma “tradução-retomada” por Tatiana Nascimento, numa aproximação de nossa linguagem própria, e que dá nome a um artigo seu recentemente editado, Cuírlombismo literário: poesia negra lgbtqi desorbitando o paradigma da dor (n-1, 2019), que já abre da seguinte forma:
“a negritude LGBTQI+ enfrenta estereótipos que taxam homossexualidades/dissidências sexuais de ‘praga branca’, contaminando os viris povos negros ‘africanos’ […] pela via da colonização. consequentemente, orientações sexuais, identidades de gênero, prática de sexo-afeto que são, efetivamente, negramente ancestrais y documentadas por exemplo em mitos fundacionais (como os itans) são ditas embranquecimento/colonização.”
Na escrita-potência de Tatiana encontramos também reflexões que nos fazem retomar justamente o AfroBubbleGum de Wanuri Kahiu: “o racismo tem tentado, secularmente, nos calar ao proferir discursos ‘autorizados’ sobre nós. quer nos roubar o direito à existência plena, complexa, diversa. mas somos seres complexos. não só máquinas de resistência e denúncia”.
Rafiki, que me remeteu a todas essas e a muitas outras vozes, que tanto me fez lembrar origens ancestrais quanto futuros possíveis de invenção e reinvenção, desperta (e é fruto de) muita coragem e realização imaginativa. Com suas cores vibrantes e texturas tão táteis que não remetem a outra coisa senão ao riso, sua narrativa não nos fala de redenção diante de uma sociedade que nos invisibiliza e pune de formas variadas, negando o reconhecimento de nossos afetos e existências, pois, como Kena e Ziki, não precisamos sucumbir às narrativas de dor e denúncia para criar e encontrar esses futuros possíveis. Trata-se antes de uma narrativa conduzida por e condutora de vida, de vidas que possuem suas ambiguidades, enfrentamentos, dúvidas como outra qualquer. E com alegria. Pois a alegria, como bem disse Wanuri Kahiu, é política.
CECÍLIA FLORESTA afrodescende, é escritora, candomblezeira e sapatão. Ganha a vida editando livros. Pesquisa narrativas, poéticas ancestrais iorubás e seus desdobramentos na diáspora negra contemporânea, lesbianidades e literaturas insurgentes. Tem editados os poemas crus (Patuá, 2016) e a zine genealogia (Móri Zines, 2019).