Beatriz Sarlo: Por trás das máscaras da modernidade

Beatriz Sarlo: Por trás das máscaras da modernidade
A escritora e crítica literária argentina Beatriz Sarlo (Divulgação)

 

O Quarteto para Cordas N° 2, do norte-americano Morton Feldman, dura quase cinco horas e meia. Foi executado pelo Quarteto Pellegrini no Teatro Municipal San Martín, da cidade de Buenos Aires, em novembro de 2001, para um público de pouco mais de cem pessoas. Entre elas estava a crítica Beatriz Sarlo, que no número 78 da revista Punto de Vista, dirigida por ela, publicava o ensaio “La Extensión”. Nesse trabalho, ela analisa experiências que fogem do “padrão médio do gosto”, como a leitura ininterrupta do livro Moby Dick, de Herman Melville, realizada pelos atores Emilio García Wehbi e Luis Cano no Espaço Callejón, de Buenos Aires, da noite do sábado 20 ao final do domingo 21 de dezembro de 2003. Tudo isso desemboca na defesa do romance El Pasado, do argentino Alan Pauls, atacado por um crítico espanhol por se tratar de um livro “demasiado extenso”: 551 páginas. Segundo Sarlo, “a duração fora dos padrões é uma ruptura com os formatos da convenção e essa ruptura é estética”.

Esse é um exemplo da agudeza do olhar de Beatriz Sarlo. Professora de literatura argentina na Universidade de Buenos Aires até o ano de 2003 – quando se aposentou após entender que encerrara um ciclo –, a escritora, com mais de uma dezena de livros, muitos deles publicados no Brasil, faz parte hoje do time dos grandes nomes dos estudos culturais no mundo. Bolsista de universidades inglesas, ela se reconhece discípula da vertente britânica dos estudos culturais (fez cursos com Raymond Williams e Richard Owen), mas é notável a influência de Barthes, também reconhecida por ela (na introdução de seu último livro, La Ciudad Vista, ela declara: “Não teria escrito o que escrevi se não tivesse lido Roland Barthes e não o seguisse lendo”).

Para além da literatura 

Professora visitante das universidades de Columbia, Berkeley, Maryland e Minnesota, fellow do Wilson Center, em Washington, e Simón Bolívar Professor of Latin American Studies, na Universidade de Cambridge, Beatriz Sarlo trouxe seu ferramental de crítica literária para as análises que realiza sobre cinema, teatro e as “cenas da vida pós-moderna”: o mito da juventude, a cultura shopping center, a crença popular num “santo das causas perdidas”, os catadores de papel, a televisão, a música pop, tudo passa pelo crivo de seu olhar atento.

Com invejável capacidade de observação, ela desvenda as realidades ocultas por trás das muitas encenações da cultura – seja no comentário contundente que faz de filmes como A Lista de Schindler e A Vida É Bela, seja quando escreve sobre as brigas de vizinhos por causa da presença de travestis em algumas ruas de Buenos Aires. No caso da animosidade contra esse grupo (“Prostitutas, Travestis e Vizinhos”, do livro Tempo Presente), ela ironiza o fato de que os mesmos travestis que fazem sucesso na mídia (quando escreveu o ensaio, o travesti Florencia de la Veja havia se convertido em estrela da TV) não serem aceitos quando se transformam em vizinhos de quarteirão. No caso da película do italiano Roberto Begnini – ganhadora do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1999 –, na contramão de uma crítica mais ligeira, Beatriz crava fundo sua análise (“A Família das Vítimas”, do mesmo Tempo Presente): “Não se pode pensar as relações entre arte, história e política a partir desse filme. A Vida É Bela ordena a seu público como deve se emocionar. Sobretudo, encarrega-se de mantê-lo emocionado do começo ao fim, para que nunca surja a possibilidade de pensar que coisa (verdadeiramente monstruosa) estamos vendo. Película de entretenimento em seu sentido mais forte, porque se distrai daquilo que diz contar, o campo de concentração, para contar a história de uma mitomania privada”.

Quando a entrevistei em julho de 2004, no despojado escritório em que editava a revista Punto de Vista, na Calle Talcahuano, a poucos passos da famosa Avenida Corrientes, ela contou: “Agora, trabalho em uma pesquisa que tem a ver com os dilemas que a noção de memória coloca, sobretudo após as ditaduras da América Latina dos anos 1960. Entendo que há hoje uma inflação de memória, que se confia que a construção da verdade é uma construção no sujeito e é preciso revisar esse ponto. Penso que a memória não tem uma força tão grande como parece ganhar nos discursos contemporâneos”.

Esse ensaio sobre a memória, resultado da estadia, em 2003, no Wissenschaftskolleg zu Berlin (Instituto de Estudos Avançados de Berlim), foi publicado no livro Tiempo Pasado: Cultura de la Memoria y Giro Subjetivo (Buenos Aires, Siglo XXI, 2005), editado aqui dois anos depois pela Companhia das Letras (Tempo Passado: Cultura da Memória e Guinada Subjetiva). Como em seu trabalho anterior, La Pasión y la Excepción, em que analisava o fenômeno Eva Perón (Sarlo recorre a revistas, analisa fotos e comete detalhadas descrições das roupas, da cútis e da beleza dessa mulher que marcou indelevelmente o imaginário argentino) e os montoneros (sob a ótica quase missionária desses guerrilheiros), no estudo sobre a memória ela se detém em apuradas observações. Como ao comentar os livros do italiano Primo Levi: ele utilizou a ficção como modo de abordar os horrores que vivera nos campos de concentração de Auschwitz, evitando escrever na forma de depoimento. Transformou suas lembranças em matéria de ficção para buscar o distanciamento e evitar as distorções da memória. Em contraponto, Sarlo apresenta a tese de doutorado de Pilar Calveiro, prisioneira-desaparecida da ditadura militar argentina que optou por se separar do relato de “sua” experiência para, no doutorado realizado no México, sistematizar os relatos de outros.

Beatriz encerra o primeiro capítulo de Tempo Passado com uma citação da norte-americana Susan Sontag: “Talvez se dê mais valor à memória e menos à reflexão. É mais importante entender que recordar, se bem que para entender é preciso, também, recordar”. (Algo oportuno, no Brasil de hoje, quando se rediscute a lei da anistia.)

Sobre o Brasil 

Naquela entrevista de 2004, Beatriz falou sobre nosso país: “Do ponto de vista da pesquisa e da universidade, a Argentina investe pouco, caso se olhe para o Brasil. Não se pode comparar o que temos aqui com o dinheiro de que dispõe a universidade brasileira. No Brasil a universidade teve continuidade durante a ditadura, poucos professores foram expulsos, se comparados com a verdadeira limpeza que se procedeu aqui. (…) Na Argentina, a universidade foi desmantelada e não houve nem há hoje uma política de investir em pesquisa, como no Brasil. E isso é uma das bases de uma política cultural séria. Só depois vamos sentar e discutir o que fazer com o cinema, com o teatro. Mas o fato de a Argentina ter retrocedido não quer dizer que não haja bons filmes ou teatro experimental.

De fato, é provável que o movimento teatral argentino seja hoje dos mais interessantes do mundo. Os diretores reclamam da falta de orçamento, mas não há crise na experimentação. A crise se vê nas crianças que ficam fora da escola, ou na escola que não pode educar os alunos que tem sob seus cuidados. Aí é que está a urgência que pede uma forte intervenção. Fora disso sobra a estupidez. Que a Argentina não possa resolver o problema de sua Biblioteca Nacional é simplesmente estupidez, não é problema de crise econômica, mas da falta de bons administradores culturais. A Biblioteca Nacional é um problema que se arrasta há 40 anos. Seu tesouro, livros raros, incunábulos e primeiras edições, ninguém sabe ao certo quantos e quais são, pois foram desaparecendo, não foram digitalizados nem fichados. Demorou quase 30 anos para mudar-se de um edifício para o outro… Isso se contar a um brasileiro ele não vai acreditar, pois vocês são capazes de fundar uma cidade em dez anos e a Argentina leva 30 para construir uma biblioteca”.

Em abril de 2008, ao chegar ao 90° número e 30 anos ininterruptos, a revista Punto de Vista foi fechada por Sarlo, por também entender que completara um ciclo. “Durante 30 anos, Punto de Vista foi a maior e mais constante influência em minha vida. Outros poderão discutir se foi uma revista influente: sobre mim, não tenho dúvidas”, escreveu no editorial em que anunciava o fim da publicação.

(1) Comentário

  1. Já li e citei o seu livro “Cenas da Vida Pós-Moderna”. Apenas por esta pequena obra pode-se dizer que trata-se de uma escritora realmente com um olhar singular e coerente frente às características das contantes mudanças em nosso cotidiano. Quem sabe a revista Cult não a convide para participar do II Congresso de Jornalismo Cultural!

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