O ministro que caiu para cima
O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta fala à imprensa após demissão (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Enfim, depois de mil promessas, anúncios e bravatas o presidente Bolsonaro consegue as autorizações necessárias para se livrar do ministro da Saúde, que já havia demitido de coração há duas semanas. Na verdade, o ministro é quem parece ter perdido a paciência com o presidente da República. Com 76% medidos de apoio popular à sua permanência, uma equipe coesa e fiel no ministério, aprovação e defesa da ala militar que tem ascendência sobre Bolsonaro e até tendo se tornado o queridinho de uma ala bolsonarista que se declarava da “linha que segue Mandetta”, poderia ter ficado na sua, aumentado ainda mais o seu capital político e até, quem sabe, saído dessa crise como o grande herói das fileiras bolsonaristas. Ainda mais ante a inépcia de Sérgio Moro e Paulo Guedes, seus concorrentes direto no primeiro escalão, de que ninguém mais fala durante a crise da Covid-19, a não ser mal.
Mandetta, contudo, parece ter-se fartado de Bolsonaro, que se comporta como uma espécie de monarca absoluto fraco e paranoico, que vê sombras e conspirações dentro do próprio governo, e não hesita em degolar uns tantos que em seu delírio persecutório parecem querer tomar o seu trono. Desde a fritura a que sobreviveu na semana passada, Mandetta parece ter resolvido bancar a narrativa da própria queda, antes que os bolsonaristas o fizessem. Da entrevista ao Fantástico no domingo ficou rodando nas redes sociais a sonora em que ele reclama que em um momento tão delicado a população “não sabe se escuta o ministro ou o presidente”. Em coletiva esta semana, voltou à mesma tese: “Claramente há um descompasso entre o Ministério da Saúde [e a presidência]”.
Em entrevista à revista Veja, já na iminência da demissão, não contemporizou e reiterou que Bolsonaro causa problemas à estratégia do Ministério da Saúde. “Você vai, conversa, parece que está tudo acertado e, em seguida, o camarada muda o discurso de novo. Já chega, né?”, afirmou. E deu a entender que estava farto de repetir diariamente ao chefe de governo não haver até agora comprovação científica de que a cloroquina seja eficaz no tratamento de pacientes da Covid-19 em geral. E rematou: “O vírus se impõe. O vírus não negocia com ninguém. Não negociou com o Trump, não vai negociar com nenhum governo”.
O que foi demais para um presidente de ego tão delicado e tão grande pavor de sombras palacianas, que já o queria demitir por ciúmes de uma dupla de cantores sertanejos. Isso mesmo. O fato deu-se na semana anterior, dia 4 de abril, quando um vídeo do ministro da Saúde foi exibido na live dos cantores sertanejos Jorge e Mateus. No dia seguinte, na famosa hora da bravata na saída do palácio, Bolsonaro deu recibo do recalque sentido, declarando que certas pessoas em seu governo “eram pessoas normais, mas, de repente, viraram estrelas”. E garantiu aos seus fiéis adoradores que a sua caneta iria funcionar, para demitir. Se o presidente não é capaz de gerenciar a própria sofrência ao ver os seus sertanejos flertando com o seu ministro da Saúde, imagine se poderia suportar um ministro que em vez colaborar na guerra cultural contra os comunistas, esquerdistas e chineses, cuida de redução de danos em uma tragédia sanitária que apavora o mundo.
Provavelmente Mandetta tenha sonhado ser, nesta crise, uma espécie de Posto Ipiranga da área de Saúde, alegoria inventada pelo próprio Bolsonaro para designar o titular de uma área sobre a qual o presidente confessa profunda ignorância, e que delega inteiramente a um terceiro com todos os conhecimento e recursos necessários para resolver autonomamente os problemas. Mas, não. Da alegoria do Posto Ipiranga restou apenas que Bolsonaro é, de fato, extremamente ignorante em questões de Saúde, mas não esteve disposto em momento algum a confiar no seu ministro para aconselhar a presidência nas medidas a serem tomadas na epidemia ou para formular e executar as melhores políticas públicas para esta situação.
Por outro lado, para falar a verdade, a demissão foi uma questão de coerência. O ministro da Educação de Bolsonaro é sabidamente um ignorante, o Chanceler vive de provocar brigas e semear picuinhas com outras nações, o ministro da Justiça tem um vasto conjunto de certificações de que ativamente participou de conluios para burlar a dita cuja Justiça, o do Meio Ambiente é o inimigo mais feroz do objeto que dá nome à sua pasta, a ministra da Mulher é uma machista clássica, como é que em tal circo de espelhos distorcidos teríamos um ministro da Saúde que cuida da Saúde? Não tem nem cabimento. Fora! Tchau, querido.
E o problema, evidentemente, não tem a ver com o fato de este ser um governo conservador ou de direita. O sisudo The Washington Post gastou um editorial no início da semana para falar sobre a tragédia de se ter Bolsonaro como líder de um país durante a pandemia. O título é “Líderes arriscam vidas ao minimizar o coronavírus. Bolsonaro é o pior”. E conclui simplesmente que, “de longe o caso mais grave de mal condução é o do presidente brasileiro Jair Bolsonaro”. Por fim, nos humilha dizendo, que mesmo Trump não sendo grande coisa, poderia “fazer um grande favor ao Brasil, ligando para Bolsonaro, que tem sido um aliado político”, exortando-o a mudar de posição sobre a gravidade da pandemia. Pois é.
Em suma, vendo os exemplos de Merkel e até de Trump é claro que o problema de Bolsonaro não é ser de direita ou conservador, mas ser ignorante, incompetente, paranoico e histérico. É de caráter e de cognição, não de ideologia.
E quanto à queda do ministro da Saúde, qual o resumo da ópera? É simples: Mandetta cai para cima; demitido, fica politicamente maior do que empregado e ainda se livra da responsabilidade pela tragédia anunciada que será causada pela falta de respiradores, leitos de UTI e testes. Quanto a Bolsonaro, as sinfonias de panelas que se seguiram ao anúncio da queda de Mandetta dizem bastante sobre as suas perdas. Além disso, para manter a sua base de apoio entre comerciantes e empresários, que querem o fim do isolamento, sacrificou o apoio da sua base na área de Saúde, na linha de frente da pandemia, e na elite que viaja, de onde vieram os primeiros infectados e mortos pelo vírus. E quanto ao Brasil? Bem, o Brasil escolheu se dar mal em 2018, coitado, e agora uma das contas está chegando. Vai ter que pagá-la. Na democracia, nós somos o resultado das nossas escolhas.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)