Confirmada na Flip, Leïla Slimani explora tabus da maternidade em ‘Canção de ninar’

Confirmada na Flip, Leïla Slimani explora tabus da maternidade em ‘Canção de ninar’
A escritora franco-marroquina Leïla Slimani, que vem ao Brasil em julho para a 16º edição da Flip (Foto:Martin Bureau/AFP/Divulgação)

 

Logo na primeira linha, o narrador é seco: o bebê está morto. Não há escapatória nem perdão para Louise, a babá, encontrada ao lado do corpo da criança após tentar suicídio. A cena que abre o romance Canção de ninar (2016), da franco-marroquina Leïla Slimani, é fria e distante, mas a intenção não é o sensacionalismo: em suas páginas, a autora tece uma narrativa realista sobre a culpa ligada à maternidade, as relações contraditórias de poder entre mulheres, a solidão urbana, imigração e desigualdade social.

Segundo romance de Slimani, autora confirmada na Flip 2018, Canção de ninar pode ser considerado um fenômeno: no primeiro ano de circulação na França, vendeu 600 mil cópias, foi traduzido para 18 línguas e deve ganhar uma adaptação para o cinema em breve, sob direção da francesa Maïwenn Le Besco (Meu reiPolissia). Inspirado no caso real de uma babá dominicana de Nova York, que confessou ter assassinado as crianças de que tomava conta, o romance levou o Goncourt em 2016, prêmio que já agraciou nomes como Marcel Proust, Simone de Beauvoir e Marguerite Duras. No Brasil, a obra foi em março pelo selo Tusquets da editora Planeta.

“As pessoas me perguntaram por que eu escolhi um tema tão chocante quanto o assassinato de crianças. Mas eu não estava escrevendo especificamente sobre isso. Estava escrevendo sobre a maternidade e todos os sentimentos contraditórios em volta dela: o medo de não dar conta, a culpa, a solidão, a idealização”, diz à CULT Slimani, cujo sucesso foi tanto que o presidente da França, Emmanuel Macron, chegou a cogitá-la para o Ministério da Cultura – um convite que ela, educadamente, declinou: “Prezo demais pela minha liberdade”.  

O romance conta a história do casal Paul e Myriam que, ansiosos por quebrar a tediosa rotina familiar que se instalou com a chegada de dois filhos, contratam Louise, uma babá nos moldes de Mary Poppins. Depois de abrir com o homicídio das crianças, o enredo retorna à contratação de Louise e, a partir dele, constrói aos poucos uma tensão insuportável, que empilha contradições de classe, raça e gênero – e se expande à medida que a babá, solitária e miserável, enlouquece entre a periferia e a parte nobre de Paris -, até chegar ao final trágico que o leitor, indefeso, já conhece.

Mãe de uma menina e de um menino, Slimani conta que, em Canção de ninar, quis escrever sobre a maternidade de forma real e “sem medo de abordar tabus”. “Sempre me disseram que, quando eu fosse mãe, ficaria completamente cheia de amor e felicidade, e que não me sentiria sozinha nunca. Era, claro, uma grossa mentira, algo que, como mulheres, fomos treinadas para pensar”, explica. Ela, assim como a personagem Myriam, se viu presa em casa durante alguns anos após dar à luz, “culpada demais para trabalhar, cansada demais para curtir os filhos”.

“Sou mulher e sou mãe. Quando as pessoas imaginam minha vida, elas pensam que tudo está perfeito, porque estou cumprindo ‘meu papel’ e, de quebra, consigo escrever e trabalhar. O patriarcado se fortalece dessa ideia, de que a função feminina é ter filhos, de que sempre temos que estar felizes com essa condição e de que tudo além disso é algo a mais. Quis desconstruir isso”, afirma.

Escrita livre

Nascida no Marrocos, em 1981, Slimani foi morar na França aos 17 anos, onde estudou Letras no Instituto de Estudos Políticos (Sciences Po). Mais tarde, tornou-se jornalista e trabalhou no semanal Jeune Afrique cobrindo Tunísia e Marrocos – algo que, segundo ela, foi um “treino para se tornar romancista”: “Ali, eu podia observar as pessoas de perto e prestar atenção aos detalhes”. Mas quando, já mãe, foi presa cobrindo a Primavera Árabe na Tunísia, decidiu que era o momento de parar com o jornalismo e focar na escrita ficcional, “um tipo de escrita mais livre, em que é possível falar da alma das pessoas sem o racionalismo e o curto espaço das notícias”.

Por um ano e meio, dedicou-se a um romance sobre a Primavera Árabe, que acabou se mostrando um “fracasso completo”. “Ele foi recusado por todos os editores de Paris”, lembra, dando risada do que, mais tarde, consideraria uma lição valiosa sobre escrita: apesar de ser mulher, muçulmana e marroquina, ela não era obrigada a escrever sob este ponto de vista.

“As pessoas imaginam que, quando um autor é do ‘mundo subdesenvolvido’, ele precisa escrever sobre política ou suas vivências, o que não é real. Me recusei a me amarrar a isso e fui escrever como se espera que os americanos e europeus escrevam: abordando sentimentos, profundidade psicológica e contradições da vida contemporânea”, diz.

Com isso em mente, em 2014 ela conseguiu enfim publicar seu primeiro romance, Dans le jardin de l’ogre (algo como “no jardim do ogro”, que deve chegar ao Brasil no segundo semestre, também pela Planeta), sobre uma ninfomaníaca de meia-idade casada e com um filho já crescido. Dois anos depois, veio Canção de ninar, o Goncourt, a fama súbita, capas de revista e o convite para assumir outro cargo além do ministério: o de representante da língua francesa na Organização Internacional da Francofonia, espécie de porta-voz do governo para assuntos da língua. Dessa vez, Ela aceitou.

Com o título, Slimani tem viajado pelo mundo franco falante, que se estende da França ao Vietnã, do Haiti ao Senegal. Em suas andanças, diz que passou a compreender a função do autor de ficção como algo “de extrema importância em um contexto em que mais vozes não-brancas, não-ocidentais e femininas têm se feito ouvir”: “Não acho que um autor de ficção pode mudar o mundo sozinho, mas os leitores de ficção, juntos, podem”.

Nos próximos anos, Slimani deve lançar outro livro, ainda sem título ou tema, mas que a autora promete ser “tão chocante quanto Canção de ninar“. “Bem, eu preciso esperar que meus livros façam as pessoas pensar, que as incomode e as faça se mover. Do contrário, para quê escrever?”.

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