Impeachment já contra o genocídio social

Impeachment já contra o genocídio social
Jair Bolsonaro e ministros participam de videoconferência com representantes da iniciativa privada (Foto: Isac Nóbrega)

 

Deputados, militantes, intelectuais e personalidades públicas assinaram pedido de impeachment do presidente da República. Vladimir Safatle, Julio Lancellotti, Luis Felipe Miguel, Gregório Duvivier, Zélia Duncan, Silvio Luiz de Almeida, os deputados Fernanda Melchionna, David Miranda e Samia Bomfim, entre outros.

Jair Bolsonaro é uma tragédia brasileira. Enquanto o mundo se alarmava diante de uma catástrofe sanitária e econômica, Bolsonaro dizia que a questão do coronavírus  estava “superdimensionada” e “potencializada” por “interesses econômicos”; que era muito mais “fantasia”, “outras gripes mataram mais do que esta”, era uma “neurose”, não era o que “a mídia propaga”,“não é tudo isso que dizem, até na China está acabando”, “está havendo uma histeria, se a economia afundar o Brasil afunda”; “alguns governadores estão tomando medidas que vão prejudicar e muito a nossa economia”.

E passou da palavra ao gesto. Ignorando as recomendações do seu próprio ministro da Saúde, já sabendo que pessoas de seu entorno portavam o vírus, aglomerou-se diante do palácio, tocou mãos e celulares. Estimulou as manifestações do dia 15 e seus fanáticos seguidores nas ruas diziam que o vírus era uma conspiração comunista.

A atitude custará vidas de brasileiros e é apenas uma das muitas que justificam o pedido de impeachment. Quantas vidas jamais se poderá mensurar. A atitude de um presidente impacta. Retardou a conscientização sobre os riscos, as medidas preventivas que cada um poderia ter tomado, o evitar festas e aglomerações, o sair de casa sem necessidade, o contato com idosos e grupos de risco. Certamente ainda está impactando o percentual de seguidores fanáticos, irracionais e fascistas que são sua base de apoio e alguma parcela do povo.

Ainda há suspeitas, no momento em que escrevo, sobre o real resultado do teste para o coronavírus do presidente, mantido inexplicavelmente sob sigilo. Trump mostrou o dele.  Se portador do vírus, pode ter infectado pessoas no dia 15 de março.

A explicação para a perversidade e irresponsabilidade ele mesmo deu, dispensando qualquer álibi: “Se acabar economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder”.

Evitar a morte de milhares de brasileiros não ocupava a sua mente. Apenas, única e exclusivamente, a questão do poder. O seu interesse político. Em sua mente rasa era possível ignorar o problema para que a economia não sofresse e sua popularidade não se desgastasse.

A monstruosidade egóica desse homem não lhe permitia ver que a epidemia já estava aí, não desapareceria pela negação e que sua popularidade e seu cargo estariam comprometidos pela omissão e não pelas medidas que a emergência exigia. Não lhe permitia ver que se fosse à televisão e rádio em rede nacional alertar a população salvaria seu mandato e daria – possivelmente pela primeira vez em sua vida pública – um mínimo de dignidade à lastimável biografia que ostenta.

Parece óbvio a esta altura que Jair Bolsonaro tem personalidade antissocial. Seus juízos morais somente levam em conta seu interesse imediato. É certo o que ele supõe o beneficia, errado o que ele supõe prejudica. Mente compulsivamente, desprovido de qualquer traço de empatia e incapaz, pela sua mente rasa, de ver até mesmo seu próprio interesse se for mediato.

Já era evidente para parte da sociedade, durante a campanha eleitoral, a personalidade fora do padrão de normalidade de Jair Bolsonaro. Nada pudemos fazer diante do clima golpista, da campanha do ódio, da manipulação dos meios de comunicação, da irresponsabilidade política, do interesse de uma classe dominante perversa, tudo abrindo caminho para a eleição de um fascista e de uma personalidade doentia.

Ter sido capaz de elogiar o mais notório torturador do Brasil perante o Congresso e em rede nacional de televisão não fez diferença. Ou comparar negros a gado. Ou estigmatizar gays. Ou elogiar a ditadura que torturou milhares e assassinou centenas.  Agora vai ficando evidente para até mesmo parte de seus seguidores, para lideranças e personalidades de direita providos de um resquício de sanidade e inteligência, a enrascada e a enormidade do crime que cometeram perante a História do Brasil.

O povo bate panelas. Está agindo antes das lideranças populares, de partidos progressistas e movimentos sociais que, somente agora e ainda timidamente, começam a se incorporar ao clamor popular que se expressa nos panelaços, e pôr-se em dia com ele. Tal como ocorreu no Chile, o povo não leu as análises de conjuntura, que são tantas vezes (usando uma expressão de Pedro Nava) como faróis colocados na traseira de um carro, supondo que padrões sempre se repetem.

O impeachment é um processo jurídico e político. O jurídico está plenamente satisfeito, com crimes de responsabilidade cometidos em série, com o apoio a manifestações que pedem o fechamento do Congresso e outro AI-5, com a conduta de 15 de março que atentou contra os direitos à vida e à saúde. O político está gritando nas janelas e sacadas.

Já não é mais tempo de cálculos políticos e estratégias de médio e longo prazo. O pedido de impeachment neste momento, como observou Vladimir Safatle, tem força civilizadora. Mas mais do que isso. É um imperativo categórico, o que deve ser feito incondicionalmente, que se justifica em si mesmo e não comporta discussões consequencialistas.

No mais, a crise, que se desencadearia lentamente pela política antipopular desse governo, foi precipitada pela pandemia que antecipou seus efeitos, mostrando que a população está desprotegida, sem direitos, precarizada e largada à própria sorte.

Na sexta, 20 de março, o governo cortou o Bolsa Família de 156 mil famílias, 61% do Nordeste, a região mais carente do país, sob pretextos que não convencem. Isto no momento em que os países mais atingidos pela pandemia injetam dinheiro para que não haja um caos econômico e social, para que empregos e renda sejam mantidos.

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PS: O texto acima foi concluído antes da edição da MP 927, de 22 de março de 2020. Aproveitando a síntese do advogado trabalhista Luis Carlos Moro, vejamos: estabelece contrato em favor de uma só parte, cláusulas potestativas, suspende normas de segurança e saúde, permite até 24 horas de trabalho sucessivo, autoriza a suspensão do contrato de trabalho por quatro meses sem salário, período em que considera qualquer pagamento benemerência.

Para cúmulo da barbárie social, quatro meses sem salário. O Reino Unido pagará 80% dos salários. Os EUA, 2 mil dólares por trabalhador.  O governo prepara um genocídio social. O que mais é necessário para que se defenda o país dessa quadrilha de delinquentes políticos (também delinquentes comuns, alguns)?

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O vírus, o ser mais simples da natureza, sequer uma célula, apenas uma capa proteica envolvendo DNA, poderá decretar o fim do neoliberalismo. Como sustentar, diante da fragilidade da existência humana, que é indiferente que os empregos sejam precarizados, que o mercado pode tomar conta de tudo, que não são necessários gastos públicos, que cada um de nós pode viver vidas separadas e “empreendedoras”, que o individualismo é bom para as sociedades, ou que, como disse Margaret Thatcher, nem sequer existe sociedade, mas indivíduos e interesses?

O capitalismo é inadequado diante da fragilidade da condição humana. Toda sociedade de classes, em que uma parcela ínfima detém o controle da propriedade e da renda e deixa a maior parte da humanidade ao azar das contingências da natureza é cruel, irracional e impede que aflore o melhor do humano. O esforço de manter o corpo vivo vai demolindo o espírito e é essa a condição em que vivem 90% da humanidade. Um dia tudo isto será a pré-história dos homens sobre a Terra.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP


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