Clara Charf: evocações da clandestinidade e da militância
Clara Charf, 94, em sua casa no bairro do Bom Retiro, em São Paulo (Foto: Pio Figueiroa/Revista CULT)
Quem abre a porta é Mazé. Ela pede que a reportagem espere alguns minutos, oferece água e café, e vai chamar nossa entrevistada. “Vão te fotografar, Clara. Fica com o casaco. Tem que sair bem na foto.” A senhora de 94 anos aparece na sala algum tempo depois, movimentando-se com a ajuda de um andador. Está de batom cor-de-rosa, blazer vermelho por cima da camiseta de algodão e um lenço branco em volta do pescoço. “Quer dizer que vocês são os fotógrafos da revolução?”, diz, sorrindo.
É ela quem começa a perguntar, sentando-se no sofá com a ajuda da mulher “durona” que cuida dela há nove anos. Depois que algumas quedas a fizeram parar no hospital, sente medo de ficar em pé, perder o equilíbrio e cair. Não tem muita firmeza nas pernas, explica Mazé. Sai de casa só para consultas médicas e tomar sol na calçada, numa rua tranquila do bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Clara continua a perguntar: “Vocês trabalham juntos? De quem foi a ideia de vir aqui? Mas por que precisam de tantas fotos?”.
“Eu fico encabulada porque nunca sei qual é o objetivo real dessas fotos”, explica. “Fiquei clandestina por muitos anos e teve uma época em que eu não falava, não ria. E eu ria muito. Mas o pessoal dizia assim: ‘Tenha cuidado, Clara, se você rir todo mundo vai te reconhecer’. Eu estava completamente amarrada. Não podia rir e nem chorar.”
Também não podia ter endereço fixo, visitar parentes e muito menos usar a identidade verdadeira: Clara Charf, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde os 21 anos, nascida em 1925, filha de um casal de judeus russos que chegara a Maceió fugindo da perseguição antissemita no Leste Europeu. Nos quase 20 anos em que viveu na clandestinidade ao lado do companheiro Carlos Marighella – do governo Dutra à ditadura militar –, Clara foi Vera, Jandira, Marta, Silvia, Nice e tantas outras que nem se lembra. “Você tem que se encobrir. Está de nome trocado, tem que andar como se fosse outra pessoa. Não é brincadeira. Mas a gente está tão convencida de que aquilo é necessário pra sobreviver, que faz tudo.”
Ela retornaria a esse tema muitas vezes ao longo da tarde. É o período que parece ter ficado mais vivo em sua memória. Clara fala daqueles dias com energia de menina. Ri, divaga, suspira, perde-se no pensamento para retomá-lo mais adiante, em um ponto diferente. Mas quando perguntada sobre o assassinato de Marighella, que completa 50 anos no dia 4 de novembro, prefere o silêncio. “Minha filha…” Olha pela janela e desconversa: “Muito difícil restituir tudo”.
A melhor coisa do mundo
Clara Charf e Carlos Marighella ficaram juntos de 1947 a 1969, ano em que o político, escritor e guerrilheiro comunista foi morto em uma emboscada comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Eles se conheceram na sede do Comitê Nacional do Partido Comunista, no Rio de Janeiro, na porta do elevador. O então deputado federal quis saber quem era aquela “branquinha arrumadinha” que andava por ali. Clara trabalhava como aeromoça da Aerovias Brasil e ajudava no leva e traz de correspondências do partido.
“Eu não sabia quem ele era, mas sabia que era um cara legal. Todo mundo gostava muito dele porque era solidário, atencioso. Ele sabia que eu era filha de judeus, que eu gostava muito de música, de ler, de cantar; sabia de uma porção de coisas que o pessoal comentava”, relembra. Não demorou para que engatassem um namoro, o que fez o pai de Clara, Gdal, viajar do Recife até o Rio para levá-la de volta para casa. Ele não admitia que a filha se relacionasse com um “preto, vermelho e gói”. “A única coisa que eu sabia era que não podia namorar cristão, tinha que ter cuidado para não me apaixonar. Mas nunca me apaixonei erradamente.”
Clara voltou, receosa de que o pai pudesse fazer algo para prejudicar o Partido Comunista. Já no Recife, Gdal queimou roupas e documentos da filha para evitar uma fuga, mas ela fugiu mesmo assim, com um vestido da melhor amiga no corpo. Em 1948, foi morar com Marighella no Méier. No ano seguinte, após a cassação dos mandatos de todos os parlamentares do PCB, no governo do general Eurico Gaspar Dutra, o casal se mudou para uma rua operária no Ipiranga, em São Paulo, para ocupar cargos no partido. Ela, coordenadora do Movimento Feminino Paulista do PCB; ele, primeiro-secretário do Comitê Regional Piratininga.
“Viver com ele era a melhor coisa do mundo. Marighella gostava de contar piada, tinha um comportamento simples, falava sobre qualquer coisa. Era como se não fosse aquele homem perseguido de que todo mundo falava mal. Todo mundo não, a polícia”, corrige-se. “Lobinho e Chapeuzinho” era como eles se chamavam no cotidiano, a sós. Ela o ajudava a melhorar o inglês antes de uma viagem à China, em 1953, para conhecer a Revolução Comunista. Ele lia em voz alta trechos de notícias, poesia e teoria política enquanto Clara passava roupa. Ele também cuidava da louça, da roupa e de outras tarefas domésticas que envolvessem água. O trabalho doméstico era dividido.
“Ele achava que todo mundo era igual e tinha os mesmos direitos. Foi um estudante brilhante, era muito inteligente. Todo mundo gostava demais dele. As mulheres, especialmente. O pessoal me dizia, ‘Você não tem ciúmes do Marighella?’. Eu tinha!”, confessa. De acordo com a biografia Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras), de Mário Magalhães, ele viveu histórias com outras mulheres durante os 22 anos de união com Clara, mas os casos nunca separaram o casal.
Em 1957, com Juscelino Kubitschek, puderam sair da ilegalidade. Alugaram um apartamento no Catete com a identidade verdadeira – pela primeira e última vez. Viveram ali até 1964, quando irrompeu o golpe militar. “Eu não sabia o que podia acontecer. Aí ele foi preso… eu sofri muito com a vida dele. Não gostei nunca de nenhum outro homem. Sabe o que é não gostar nunca mais?” Em maio de 1964, Marighella foi baleado três vezes em um cinema no Rio e, em seguida, preso por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Ganhou a liberdade apenas no ano seguinte e, com o progressivo endurecimento do regime, tornou-se o maior inimigo dos militares.
Clara permaneceu ali. Vivendo escondida, mudando-se às pressas, deixando recados codificados para o marido ao perceber perigo e inventando novas identidades para si. Durante a luta armada, organizava a logística das ações da Ação Libertadora Nacional (ALN). Jamais pensou em abandonar o partido, o companheiro ou a luta. Mas se achava uma “garota” perto de Marighella. “Ele era um cara perigoso para a ditadura porque queria fazer a revolução no Brasil. Eu não era essa pessoa tão perigosa.”
Mas ela mesma já havia sido presa, em 1954, numa manhã de maio, em Campinas, quando desembarcou na cidade, enviada por Diógenes Arruda Câmara, fundador do PCB, para iniciar uma escola de formação política com cursos de três meses para 90 alunos. Foi tomada pela polícia como uma agente soviética internacional porque carregava uma mala cheia de livros de autores marxistas e uma faixa de seda com ideogramas asiáticos. Marighella estava na China. “Sabe que eu pensei que ia ser muito mais duro? Foi duro, mas não tanto quanto eu imaginava…”, diz. Clara foi solta em julho daquele ano.
O meu tempo é outro
No apartamento em que vive hoje na região central de São Paulo, há muitos livros, algumas plantas e pôsteres de Marighella nas paredes. No topo de uma estante, duas fotos chamam a atenção: uma com Nelson Mandela, em 1991, e outra com Lula no hospital das Forças Armadas, em 2010, quando se acidentou em Brasília e o ex-presidente exigiu que ela fosse atendida ali. Não tem nenhum retrato com Marighella. “Se ela tem alguma foto com ele, eu nunca vi”, comenta Mazé. O retrato mais recente, junto com os irmãos Abraão e Sara, parece improvisado: foi impresso em papel comum e grampeado em uma telinha branca de pintura.
“A maioria das fotos o pessoal pegava e guardava para a polícia não ver nunca”, diz Clara. Não ficaram muitos registros daquela época. “O pessoal olha as fotos e diz: ‘Mas a ditadura era isso? Então era ótimo’. Entendeu? Porque quem não viveu época nenhuma de ditadura não entende o que aconteceu no país. Como foi, por que você tem tanto medo ou tanto ódio. É difícil, muito difícil. Mesmo depois que passou aquela época violenta, e que voltou a democracia, era muito difícil as pessoas acreditarem”, lamenta.
Após o assassinato de Marighella, Clara continuou na clandestinidade até 1970. Naquele ano, foi viver em Cuba, onde permaneceu sob identidade falsa trabalhando como tradutora até 1979, quando retornou ao Brasil após a Lei da Anistia. Filiou-se ao então recém-fundado Partido dos Trabalhadores (PT), no qual integrou a Secretaria de Mulheres e a Secretaria de Relações Internacionais. “Quando a gente volta da clandestinidade, ainda carrega restos disso, de que a polícia pode tentar localizar a gente. Aí você meio que se encolhe. Tem cuidado”, diz. “Nunca fui absolutamente livre. Quando você volta já livre, como é que vai viver? Demora pra se acostumar.”
Ainda assim ela continuou participando ativamente da vida política do país. Em 1982, candidatou-se ao cargo de deputada estadual pelo PT, mas não se elegeu. Fez parte do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e, em 2003, aos 78 anos, fundou a Associação Mulheres Pela Paz, organização não governamental que promove ações pela igualdade de gênero, cidadania e direitos humanos. Durante todo esse tempo, não deixou de atuar na preservação da memória de Marighella e de falar sobre os horrores da ditadura.
“Quando veio a democracia, a gente começou a fazer debate, palestra. Eu tinha muita vontade que as pessoas que estavam vivas falassem. E às vezes eu provocava para conversar. Mas percebi que elas não tinham prazer nenhum nisso. Também tinha gente que se orgulhava em contar as barbaridades que aconteceram, e que apesar de tudo sobreviveu.” Ela lembra que nem Marighella gostava de falar sobre as prisões e sessões de tortura: “Se alguém perguntasse, ele falava. Pra mim ele contou milhões de coisas, mas porque eu perguntei muito. E, quando chegou o momento em que achei que era muito desagradável, que era doloroso pra ele, deixei de perguntar”.
E quanto a ela? “Eu sinto… uma certa angústia. Não sei explicar. Eu fico preocupada, me dá aquela agonia.” Mudamos um pouco de assunto, então. Clara Charf parece em paz com as limitações do corpo e da idade. Há muitos anos está afastada das atividades políticas, o que não impede que sinta “muita simpatia pelo pessoal que luta”: “Todos, homens e mulheres. É uma coisa que parece estar dentro de mim”, diz, animada.
Ela continua: “Eu gostava muito de lidar com gente. Gosto muito. Mas uma coisa é lidar com gente, outra coisa é fazer política… Sempre me interessei muito pelo lado humano das pessoas”. Na juventude, foi iniciada na política por Jacob Wolfenson, um amigo da família preso nos anos 1940 por ser comunista. Clara quis saber o que aquela palavra, comunista, significava, ele deu a definição e ela gostou do que ouviu. Passou a se dizer comunista também. Fez muito dali em diante.
“Mas hoje não é tudo o que me propuserem que vou fazer. Isso não acontece. Não dá mais. O meu tempo é outro. É curto”, afirma. “Menina, eu tenho mais de 90 anos! E com a cabeça ainda cheia de minhoca”, ri. Ela fica em silêncio, pensa melhor e diz, antes de se despedir da reportagem: “Eu topo fazer muita coisa ainda. Se alguém aparecer na minha frente e me disser, ‘Vamos fazer isso aqui’, e se eu achar que aquilo vale… eu topo”.
(1) Comentário
Que cabeça boa, legal!