Artaud e Zé Celso, dois momos heresiarcas
“Artaud dizia que se uma época se desinteressa do teatro é porque ele não a representa mais. O teatro de Zé Celso sempre interessou a sua época, sempre a representou. Não somente porque ele sempre aplicou o primário ‘princípio da atualidade’ (que consiste, por exemplo, em colocar o Brasil de 1963 numa peça russa de 1902), mas sobretudo porque, bem mais profundamente, ele sempre situou essa atualidade para além dos acontecimentos, num jogo de tensões capaz de traduzir a vida do seu ponto de vista universal, imenso e livre”.
Ana Helena Camargo de Staal,
Primeiro ato: cadernos, depoimentos, entrevistas (1958-1974).
Pela segunda vez em menos de vinte anos, o diretor José Celso Martinez Corrêa e o elenco do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona abrem as portas do Bixiga para que Antonin Artaud (1896-1948) – vindo não se sabe bem de onde, talvez do asilo de Rodez ou da sede da Radiodifusão Francesa, talvez ainda da Paris feérica da primeira metade do século XX de cuja cena cultural foi um notável errante ou mais simplesmente de sua Marselha natal – saúde o povo de São Paulo e peça passagem. O criador do teatro da crueldade, segundo mostra Zé Celso, está mais louco do que nunca, quer dizer, mais momo do que nunca. Em ambos os casos, não custa nada lembrar, mais poeta do que nunca.
Pra dar um fim no juízo de deus é o nome da peça radiofônica que Fernand Pouey convidou Artaud a conceber, em novembro de 1947, como um quadro do programa A voz dos poetas. A experiência consistiu na articulação de quatro textos, três que já estavam escritos – “Tutuguri, o rito do sol negro”, “A busca da fecalidade” e “A questão se coloca em” –, e uma introdução geral que Artaud escreveu especialmente para a ocasião, com cujo título, inclusive, a iniciativa foi batizada. Gravada entre 22 e 29 de novembro daquele ano, a peça contou com as participações de Maria Casarès, Paule Thévenin e Roger Blin, além do próprio autor, e seria transmitida publicamente em 2 de fevereiro de 1948.
Seria, não fosse o fato de o diretor da Radiodifusão Francesa, Vladimir Porché, ter se assustado com a “obscenidade” dos textos a ponto de interditar a veiculação do trabalho na emissora. Passados alguns dias nos quais personalidades do mundo artístico e jornalistas foram chamados a debater se a obra deveria ser liberada ou não, Pouey chegou a uma solução intermediária, organizando, em 23 de fevereiro, uma transmissão privada da gravação, somente para convidados, no cinema Le Washington – o que naturalmente deixou Artaud, pouquíssimos dias antes de sua morte, em 4 de março de 1948, bastante desolado. (Vale lembrar que, embora o texto tenha sido publicado já no ano da proibição do programa, somente em 1973 este seria transmitido pelo rádio).
Às vésperas de completar sete décadas de existência, Para dar um fim no juízo de deus transforma-se novamente pelas mãos de Zé Celso e do Oficina (a primeira montagem data de 1996) em um ritual mágico, disposto a impelir o espectador a um “estado de vida poética”, cuja poesia – contrariando o mais equivocado dos lirismos – é, a um só tempo, “negra e radiosa”, como desejava o autor de Heliogábalo.
O texto de Artaud está inteiramente preservado, cabendo ao espetáculo converter para a tridimensionalidade do teatro a potência da ambiência sonora – na qual à fala dos atores se mistura uma espessa polifonia de sons, gritos e ruídos – concebida para a transmissão radiofônica. Hoje, a experiência original (disponível no Youtube) está indelevelmente marcada pela pátina do tempo, entretanto, mesmo assim, é possível retirar da audição a primeira camada de idealização do passado e se lançar rumo ao precipício mais fundo que esse legítimo documento do teatro da crueldade ainda é capaz de abrir sob nossos pés. Presas a um registro mecânico de quase sete décadas, as vozes de Artaud e de seus companheiros de empreitada, paradoxalmente, libertam-se e atuam sobre nosso espírito com a mesma impiedade que o fotograma do suplício da Joana d’Arc de Carl Dreyer ainda exerce sobre nós, pois tanto a voz de Artaud como o rosto de Falconetti encarnam o princípio de que “tudo o que age é uma crueldade”.
Zé Celso foi chamado a retirar Artaud do Hades da loucura pelo qual normalmente o condenam a vagar ao ter percebido que o texto radiofônico se configura em uma espécie de “cápsula revolucionária da cultura do corpo humano”, servindo talvez de boia de sentido à qual possamos nos agarrar durante a travessia do “Apocalipse do Crash Global” que, ora, se nos apresenta.
O grande poder de atração que a montagem irradia em direção ao espectador é sua pulsante e polimórfica corporeidade. As palavras de Artaud tomaram corpo no carne dos atores, precipitada, por sua vez, em puro verbo teatral. Após mostrar o parto do multiartista e intelectual francês, concebido como filho da tempestade, o Oficina entroniza Artaud-Marat (Pascoal da Conceição) em um vaso sanitário, de cujo cume ele fala – lendo o jornal do dia – sobre a América dos dominadores, beligerante e capitalista. O monólogo materializa o sêmen de um Artaud púbere, que remete à “prova do líquido seminal ou do esperma” a que os estudantes americanos se submetem “por causa de todas as guerras planetárias”, e acaba convertido na dejeção que o próprio intérprete expele diante de todos. É como se o Oficina precisasse blasfemar contra o teatro psicológico ou metafísico, fazendo uso das extremidades do corpo de seus atores, loucos que falam pelo pênis e pelo ânus, em detrimento (da mesma raiz de “detrito”) dos muitos discursos ajuizados e bem-pensantes que nos últimos tempos têm grassado por aí.
Antes de deixar a cena, Artaud-Marat fala da América dos dominados, os índios que matam o sol para instalar no continente forjado pelo iluminismo francês o reino da noite negra. É o momento então do Xamã Tahahumara (Roderick Himeros) conduzir a dança do Tutuguri, um grande baile ao ar livre que destrói a cruz e tempera a ferradura do cavaleiro nu com sangue humano. Sangue este também produzido em cena pelo corpo do próprio ator. Já na primeira terça parte do espetáculo, então, nós, espectadores-bricoleurs, somos envolvidos pela máquina desejante que constitui a encenação. “O desejo não para de efetuar o acoplamento de fluxos contínuos e de objetos parciais essencialmente fragmentários e fragmentados”, afirmam Deleuze e Guattari. Se, para os autores de O anti-Édipo, “Todo ‘objeto’ supõe a continuidade de um fluxo, e todo fluxo supõe a fragmentação do objeto”, Pra dar um fim no juízo reúne em cena três grandes máquinas-órgãos que interpretam as palavras de Artaud segundo seus próprios fluxos. Isso defeca, isso goza, isso sangra, eis a produção desejante que o restante do espetáculo haverá de consagrar.
Artaud-Monge Massieu (Marcelo Drummond) entra em cena para conduzir a plateia rumo à demanda da santa fecalidade. Sucede a ele a aparição de Artaud-Beatriz Cenci (Camila Mota) cujo discurso opõe a plenitude da consciência ao oco das flatulências, propondo corrosivamente uma espécie de “Peido, logo existo”. Logo depois, é chegada a hora de Artaud-Momo (Zé Celso) presidir o ato de sua própria autópsia, explicando para uma série de Corifeus-Brecht a natureza daquela encenação. “Em princípio para denunciar um certo número de bostas sociais, oficialmente reconhecidas e recomendadas”. Por fim, para defender o corpo sem órgãos e decretar com isso o fim do juízo de deus. O deus-micróbio, o deus-doença, o deus-piolho é o inimigo fundamental. “Sob os órgãos”, uma vez mais Deleuze e Guattari, o corpo humano “sente larvas e vermes repugnantes, e a ação de um Deus que o sabota ou estrangula ao organizá-lo”. É preciso, então, matar esta divindade, “negar o sujeito dos predicados cristãos” (Maurice Blanchot) para reconciliar o homem com a transgressão absoluta, já que “a morte de Deus não nos restitui a um mundo limitado e positivo, mas a um mundo que se desencadeia na experiência do limite, se faz e se desfaz no excesso que a transgride”, conforme pontua Foucault.
Antes de Artaud-Momo tomar a palavra, toda a atmosfera fora conduzida – seja pelo quarteto de Artauds-personagens (Pascoal, Roderick, Marcelo e Camila), seja pelo bando de Artauds-despedaçados (Joana Medeiros, Nash Laila, Daniel Fagundes, Rodrigo Andreolli, Lucas Andrade e Ariel Roche), seja ainda pelos Artauds-audiovisuais que comandam a música (Carina Iglesias e Felipe Massumi), a cenografia (Marília Gallmeister e Carila Matzembacher) e o vídeo (Igor Marotti e Otto Barros) – com o devido senso de descenso que há tantos anos destitui o Oficina do lugar em que ele quer não quer mesmo figurar. Trata-se de um grupo que acredita piamente na força de um teatro rebaixado. Rebaixado de literatices, de bons-mocismos, de racionalidades espúrias e de percepções controladas (ou controladoras).
Cada cena até aqui promoveu, aos olhos dos juízos automáticos, o escândalo, o grotesco e a heresia. Mas depois delas irrompe a figura de Zé Celso para concluir essa experiência-limite, e um clima de sublimidade invade o espaço. Impossível não nos deixarmos enlevar (a emoção também é um fluxo, como atesta a etimologia latina de ex-movere) diante de tão nobre figura, que oferece seu velho corpo em atitude de destemida autópsia. Para dar um fim no juízo de uma arte, de uma cultura e de uma política mórbidas e perversas parece constituir o objetivo final da conversão do Artaud-Momo na sublime figura do Zé Celso-Pharmakós, ambos demiurgos obstinados em fazer a linguagem do teatro copular com a linguagem da própria vida.
Pra dar um fim no juízo de Deus
Onde: Teat(r)o Oficina (Rua Jaceguai, 520, Bixiga, São Paulo).
Quando: de 21 de março a 12 de abril (sábados, às 21h; domingos, às 20h).
Ingressos: R$ 40, inteira; R$ 20, meia e R$ 5, moradores do Bixiga.
Info: (11) 3106-2818.