Dylan e Bowie, o yin e o yang

Dylan e Bowie, o yin e o yang
Bob Dylan e David Bowie em 1985; ambos viveram multiplicidade de estilos em suas longas carreiras (Foto: Ann Clifford)

Dois garotos dos anos 1940, parecidos e diferentes. O norte-americano da remota Duluth, Minnesota, nascido em 1941, seis meses antes do ataque a Pearl Harbor, que empurrou seu país para a carnificina da Segunda Guerra.

O inglês, nascido no pós-guerra, em 1947, em Brixton, um distrito de Londres tão distante das delícias da capital como Duluth o era da tentadora Grande Maçã, Nova York. Ambos com três nomes, que resolveram descartar.

Robert Allen Zimmerman (tinha ainda o nome hebraico de Shabtai Zisel ben Avraham) virou Bob Dylan, tomando emprestado o nome do poeta galês Dylan Thomas. David Robert Jones escolheu ser David Bowie, em homenagem à épica faca do Velho Oeste, cortante como seu humor.

Dois garotos deslocados, para usar a terminologia sociológica dos anos 1950, rebeldes sem causa, estrangeiros (Albert Camus), outsiders (Colin Wilson). Ambos totalmente alienados de seu meio, construíram novas personas para si mesmos.

Dylan escolheu a do músico nômade dos anos da Depressão. Bowie foi mais longe e transfigurou-se num ET. Não por acaso, seu primeiro hit, quinto lugar na parada britânica de singles em 1969, chamou-se Space Oddity (literalmente, “esquisitice espacial”), um esperto trocadilho, em inglês, com “odisseia espacial”.

A poesia pop de Dylan funde vários elementos da experiência humana: o amoroso, o apocalíptico, o político, o social, o surreal. Isso não a impede de ser, por vezes, extremamente autobiográfica.

Uma de suas primeiras canções foi composta para Brigitte Bardot. Na época, todo garoto era apaixonado por BB e Dylan, um garoto normal, queria fazer rock’n’roll como Elvis. Mas algo o puxava para outro tipo de música.

Em Hibbing, para onde a família se mudou quando ele tinha 6 anos – os habitantes locais chamavam a cidade, que vivia da mineração, de “o maior buraco já feito pelo homem”, – Bob passava horas sentado à beira dos trilhos escutando histórias de velhos vagabundos cortando a América em trens fantasmas.

Quando ouviu Woody Guthrie – o cantor folk que entalhou a canivete no violão a frase “Essa máquina mata fascistas” –, Dylan decidiu o que ia fazer: uma fusão do rock que estava nas paradas com a mensagem social e justiceira do folk.

O toque autobiográfico aparece já em “Song to Woody”, de 1962: “I’m seein’ your world of people and things, / Your paupers and peasants and princes and kings” (Estou vendo seu mundo de pessoas e coisas, / Seus pobres, camponeses, príncipes e reis).

Do mesmo ano, “My Life in a Stolen Moment” seria adotada pela mídia como um press release do músico: “Hibbing’s a good ol’ town / I ran away from it when I was 10, 12, 13, 15, 15 ¹/², 17 an’ 18/ I been caught an’ brought back all but once / (…) I started smoking at 11 years old an’ only stopped once to catch my breath” (Hibbing é uma cidade legal / Fugi dela aos 10, 12, 13, 15, 15 ¹/², 17 e 18 anos / Me pegaram e me levaram de volta todas as vezes, menos a última / (…) Comecei a fumar aos 11 anos e só parei uma vez para tomar fôlego).

Lugar e hora errados

Depois de rodar pela cena boêmia do Village de Nova York, Dylan foi descoberto por John Hammond – o mesmo “caçador de talentos” que descobriu Billie Holiday, Count Basie, Aretha Franklin e Bruce Springsteen –, que o contratou para a Columbia. Quando gravou “Blowin’ in the Wind” em 1963, Dylan tornou-se um superastro da noite para o dia.

Enquanto isso, David Bowie, que tinha nascido no lugar errado na hora errada, conhecia as agruras do distrito londrino de Brixton, um gueto de afro-caribenhos onde foram instaladas as famílias brancas que perderam suas casas nos bombardeios da Segunda Guerra.

Filho de um pequeno funcionário de uma instituição de caridade e de uma lanterninha de cinema, que já tinha um filho do casamento anterior, David brigou na escola técnica por causa de uma garota, levou um soco de anel e quase perdeu o olho esquerdo, que nunca ficou totalmente bom.

Atraía acidentes: quebrou a mão e, depois, quebrou um dedo da mesma mão. Pegou um carro para consertar e esqueceu de puxar o freio de mão. O carro passou por cima dele, quebrou suas pernas e quase esmagou sua genitália. Seus azares lembram até o título da canção de Dylan “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)” (Está tudo bem, mãe [só estou sangrando]).

Quando operava o olho no hospital, o meio-irmão, Terry, enlouqueceu e foi internado. Terry era uma espécie de mentor de David, muito ligado nos escritores beat (Kerouac, Ginsberg) e no jazz de vanguarda (Coltrane, Mingus). Bowie embarcou na onda do jazz e ganhou da mãe um saxofone de plástico. Aos 15 anos era a atração do colégio com o grupo George and the Dragons.

Após oscilar entre vários estilos, David viveu uma experiência de “iluminação” ao assistir ao filme de Stanley Kubrick 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Compôs uma paródia, “Space Oddity”, um tema lúgubre que utiliza a viagem ao espaço como uma metáfora da solidão humana.

Lançada em julho de 1969, às vésperas de o homem pisar na Lua pela primeira vez, a canção trouxe fama instantânea a Bowie ao ser usada pela BBC na trilha de seu filme sobre a conquista da Lua, apesar do tom crítico da letra. Com “Space Oddity” nas paradas, Bowie arriscou-se em dois festivais, na Itália e em Malta, conquistando um dos troféus.

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Bowie começou explorando temas espaciais com o seu “sci-fi rock”; nos anos 70, partiu para o rock andrógino (Foto: R. Bamber/Reprodução)

Bissexualidade e drogas

No final de 1969, David começou a viver com uma norte-americana que estudara na Suíça, Mary Angela Barnett, depois Angie, que foi para ele o que Yoko Ono foi para John Lennon. Casaram-se oficialmente em 1970, mas foi uma relação tumultuada, cercada de rumores de bissexualidade e drogas.

Nem o nascimento do filho Zoey, em 1972, dissipou os boatos. Dizem que a bissexualidade de Bowie não passou de uma manobra de marketing de seu empresário. O próprio Bowie já vinha brincando com a androginia, roupas e maquiagens espalhafatosas, na onda do glam rock ou glitter rock – o “rock de plumas e paetês”, do qual era considerado o criador, ao lado do norte-americano Alice Cooper.

Tempos depois, ele ironizou tudo aquilo numa entrevista: “Ainda não decidi que tipo de sexo prefiro – afinal, quantos tipos existem? – porque ainda não explorei essa área a fundo”.

Bowie e Angie separaram-se em 1980, e ele ficou com a guarda de Zoey (depois Joey). Foi viver com o filho às margens plácidas do Lago Léman, na Suíça. Em 1992, Bowie casou-se com a famosa manequim somali Iman, com quem teve uma filha e com quem vive até hoje.

Bob Dylan também teve uma vida sentimental movimentada. Nos primeiros tempos, ele e Joan Baez formavam o Casal 20 da música de protesto, mas o romance terminou em 1965. No final daquele ano, Dylan casou-se com Sara Lownds. Tiveram quatro filhos, um deles Jakob Dylan, hoje com 41 anos, roqueiro de moderado sucesso.

O casamento com Sara durou 12 anos. Em 1986, Dylan casou-se com a cantora de apoio de sua banda, Carolyn Dennis (Carol Dennis), com quem teve uma filha. Esse segundo casamento durou a metade do primeiro. Na verdade, Bob Dylan está casado desde 1988 com a estrada: sua Never Ending Tour (a turnê interminável) completou 23 anos em 7 de junho, com a média espantosa de cem apresentações anuais.

Outra característica comum entre Dylan e Bowie é a multiplicidade de estilos em suas longas carreiras. Dylan começou com o folk acústico, aderiu ao rock “elétrico” em 1965 (para indignação dos fãs), partiu para o discurso político explícito no final dos anos 1960 e antecipou a onda do rock rural em Nashville Skyline (1969), com a participação de Johnny Cash.

No final dos anos 1970, investiu no fundamentalismo cristão (outra decepção para os fãs), com os álbuns Slow Train Coming (1979) e Saved (1980).

A partir daí, partiu para um estilo mais eclético, gravando – em estúdio ou ao vivo – com uma regularidade mantida por poucos de seus pares no cenário do rock. Em 1988, fundou a banda Traveling Wilburys, com George Harrison, Tom Petty, Roy Orbison e Jeff Lynne, uma brincadeira séria que deu certo, com seu multiplatinado Traveling Wilburys Volume 1 chegando ao terceiro lugar entre os álbuns mais vendidos.

A discografia de Dylan compreende 34 álbuns de estúdio, 13 álbuns ao vivo, 58 singles, 9 álbuns da Bootleg Series e 14 antologias.

Bowie começou explorando temas espaciais com o seu “sci-fi rock”, chegando a inventar um alter ego, Ziggy Stardust, protagonista do álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972). A seguir, partiu para o rock andrógino (glam ou glitter rock), que marcou os anos 1970.

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Dylan começou com o folk acústico, aderiu ao rock “elétrico” em 1965 e partiu para o discurso político explícito no final dos anos 1960 (Foto: Jerry Schatzberg/Columbia Records)

Cinema

Assim como Dylan, Bowie prosseguiu na diversidade, experimentando estilos musicais, entre eles o “soul de olhos azuis”, o “industrial”, o “adulto contemporâneo” e o “jungle”, já tendo lançado mais de 20 álbuns.

Como roqueiros de sucesso, era natural que Dylan e Bowie fossem – para usar uma palavra bem anos 1960 – “cooptados” pelo cinema. Em 1973, Dylan atuou no filme Pat Garrett and Billy the Kid, dirigido pelo mestre do neowestern Sam Peckinpah.

Em 1976, o próprio Dylan dirigiu um filme experimental, Renaldo and Clara (na verdade, Robert e Sara), um superlonga-metragem de 292 minutos. Curiosamente, foi o primeiro filme do ator Sam Shepard. Outros “atores”, além de Bob e Sara, foram o poeta beat Allen Ginsberg, as cantoras Joan Baez, Joni Mitchell, Ronee Blakley e Roberta Flack, o cantor-ator Arlo Guthrie (filho do ídolo de Bob, Woody Guthrie).

Participou ainda do filme Harry Dean Stanton, o ator de Paris, Texas. Mais recentemente, atuou no papel de um cantor no ostracismo, com Penélope Cruz, em A Máscara do Anonimato (2003), de Larry Charles, assinando também a trilha sonora. E é o tema principal de dois importantes filmes: No Direction Home – Bob Dylan (2005), de Martin Scorsese, e I’m Not There (Não Estou Lá, 2007), o criativo pseudodocumentário de Todd Haynes.

David Bowie foi ator e mímico antes de se lançar como músico. No palco, fez sucesso na Broadway no papel principal de O Homem Elefante, em 1980.

No cinema, brilhou em O Homem que Caiu na Terra (1976), Apenas um Gigolô (1979), dirigido por David Hemmings, em que contracena com divas como Sydne Rome, Kim Novak, Maria Schell e Marlene Dietrich; Fome de Viver (1983), com Catherine Deneuve e Susan Sarandon; Furyo, (1983), dirigido por Nagisa Oshima.

Foi Pôncio Pilatos em A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese; Andy Warhol em Basquiat (1992), dirigido por Julian Schnabel; e o grande físico Nikola Tesla em O Grande Truque (O Terceiro Passo, 2006), coestrelado por Christian Bale e Hugh Jackman.

Para encerrar, o tributo de um ao outro: em 1971, Bowie compôs uma “Song for Bob Dylan” para seu álbum Hunky Dory. A canção começa assim: “Oh, hear this Robert Zimmerman / I wrote a song for you / About a strange young man called Dylan / With a voice like sand and glue / His words of truthful vengeance / They could pin us to the floor / Brought a few more people on / And put the fear in a whole lot more” (“Ouça só isso, Robert Zimmerman / Eu compus uma canção pra você / Sobre um jovem estranho chamado Dylan / Com uma voz de areia e cola / Sua palavras de vingança justiceira / Podiam nos prender ao chão / E levar o medo a muita gente mais”).


Roberto Muggiati é jornalista

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