Notícias de outras ilhas: Wilson Alves-Bezerra
O poeta Wilson Alves-Bezerra (Foto: Fernanda Castelano Rodrigues)
Wilson Alves-Bezerra (São Paulo, 1977), é poeta, biógrafo e tradutor. É autor de Vertigens (Iluminuras, 2015, Prêmio Jabuti de Poesia – escolha do leitor), O pau do Brasil (Urutau, 2016-20), Vapor barato (Iluminuras, 2018) e Catecismo moreninho (Livraria Orgânica, disco de poemas em streaming, 2020), entre outros.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Louis Aragon, Herberto Helder e Pablo de Rokha, todos decisivos em sua trajetória como poeta. A curadoria da seção é de Tarso de Melo. Abaixo, leia os poemas e o comentário do poeta.
Poesia, para mim, é partilha, imagem e linguagem. Por isso, escolhi para meu Arquipélago três poemas que me foram apresentados em momentos precisos e que foram decisivos para minha trajetória como poeta. Os três são surrealistas e colocam em cena os paradoxos da imagem e os paradoxos da linguagem. O primeiro deles, “As realidades”, de Louis Aragon (1897-1982) chegou em 1993, numa aula de português no último ano do Ensino Médio, em Itapecerica da Serra e a professora – Dirce Garcia– pediu que alguém o lesse em voz alta. Foi minha primeira experiência com o surrealismo e com a leitura de um poema em voz alta: então era possível fazer isso com a linguagem?. “Joelho, salsa, lábios mapa”, do português Herberto Helder (1930-2015) me foi apresentado, lido em voz alta, pelo poeta Claudio Willer, em 2010, em São Carlos, e foi decisivo para a poesia que voltei a escrever desde então – sobretudo nas Vertigens (2015). O chileno Pablo de Rokha (1894-1968) me foi apresentado em Santiago, no Chile, pelo garçom de uma pizzaria, num diálogo que não durou mais de três minutos. Isso foi em agosto de 2015, poucos meses antes de começar a escrever O Pau do Brasil (2016-2020).
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As realidades (fábula)
Louis Aragon
Era uma vez uma realidade
com suas ovelhas de lã real
a filha do rei passou por ali
E as ovelhas baliam que linda que está
A re a re a realidade.
Na noite era uma vez
uma realidade que sofria de insônia
Então chegava a madrinha fada
E realmente levava-a pela mão
a re a re a realidade.
No trono havia uma vez
um velho rei que se aborrecia
e pela noite perdia o seu manto
e por rainha puseram-lhe ao lado
a re a re a realidade.
CAUDA: dade dade a reali
dade dade a realidade
A real a real
idade idade dá a reali
ali
a re a realidade
era uma vez a REALIDADE.
Em Faraco, Carlos Emilio & Moura, Francisco Marto. Língua e Literatura. Volume 3. 2º grau. São Paulo: Ática, 1992, p. 68
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Joelhos, salsa, lábios, mapa
Herberto Helder
Joelhos, salsa, lábios, mapa.
As letras dormiam na noite inclinada, e eram
silveiras bravas. Por elas
escorregava o sono inclinado: mercúrio,
salsa leve.
Unidas as letras nos cotovelos, unidas
dormindo
nos seus frios joelhos de letras.
Por baixo, os mapas redondos com seu
mercúrio leve e a sua
salsa leve inclinada. Bravias
silveiras escorregando nos mapas.
Meus lábios unidos às letras dormindo.
Esse, isso — cabelo quente,
telha molhada.
Fogo, vestido, cidade, areia.
Cantando as mulheres palpitavam às portas,
sonhando com atenção. E eu —
engenheiro móvel — enquanto
a noite sensível.
Martelos batiam borboletas como sons
na cidade de areia.
As letras vergavam num sonho.
Cantando linho agudo na atenção
sensível, vergadas às portas,
mulheres cantavam, palpitando letras
na cidade de areia.
Longe, perto — cabelo
quente, telha molhada.
Mulheres, mercúrio, noite, fábrica.
Através do livro raso, um estupendo k
negro de tanto amor.
E o meu grito, copo de pé através
de frias fábricas.
O radar pontuava a viagem das rosas.
Vírgulas na neve batendo nas rosas.
Ww, tt, aspas, parêntesis sensíveis.
Enquanto através alguém ia gritando
pela noite, pela neve — o seu amor:
cabelo quente, telha molhada.
Engenheiro, letra, grito, aspas.
A terra irada escrevia o seu livro raso.
Enquanto por baixo as letras dos peixes
fazendo som.
Eles vinham sonhando, elas vinham sonhando.
Como vírgulas num mapa — os peixes, as letras
vergavam num sonho.
Martelos batendo som nos peixes.
Por baixo os martelos, por cima o radar,
no meio os peixes, as letras, as rosas.
E dentro de mim as vírgulas grandes —
cor de martelos,
som de rosas.
Esse grito, essa letra — cabelo quente, telha
molhada.
Som, radar, peixe, k.
E um terrível amor — pontapé estupendo,
tempestade de areia.
Então o cabelo respirava como uma tábua
irada. Longe, perto — as silveiras
vergavam ao som de mulheres
cantando vírgulas, peixes e aspas.
Enquanto a visão de um copo de pé e da letra k.
E a minha alegria, fábrica de
cabelo quente, telha molhada.
Copo, muro, livro, tábua.
Então o meu cabelo respirava.
Telhas voavam pelos canais — II, tt, ii — durante
todo o pensamento, e os cabelos
no muro batiam finas estátuas.
Abrindo no escuro, durante toda a neve,
os copos, os vestidos, os mapas.
E dentro de mim, rompendo peixes,
uma noite sensível cor de martelos.
Esse grito, essa vírgula, esse amor, esse
martelo louco
nas borboletas. Então o meu cabelo
respirava — cabelo quente, telha
molhada.
Neve, borboleta, vírgula, estátua.
Na noite sensível
— louco, louco—
loucamente levantava sobre o livro raso
essa letra k.
Elas tinham asas de castiçal na cara.
Enquanto eu
— engenheiro móvel — na fria
fábrica, um copo de pé, um sentimento
de areia. Irado amor em todos
os mapas
— cabelo quente,
telha molhada.
Martelo, sono, rosa, porta.
Eu comia fogo ao pé das cerejas.
Álcool escorrendo num retrato aberto
ao contrário da noite.
E as cerejas dormiam de tão abertas—
líricas e loucas.
E eu, álcool escorrendo
pelas fábricas de neve, abertas.
A cabeça aguda dormia nos ares
de um livro raso
— cabelo
quente, telha molhada.
Cara, retrato, canal, álcool.
Sinistro na mão um peixe levantado
louco, alguém
gritando, ia gritando pela fábrica fora.
Rosas enoveladas vergavam no sono,
enquanto letras com os cabelos
escorrendo num muro.
Extraordinário, pendurado no sono
sinistro, um negro peixe
morria durante a neve inteira.
Com esse peixe, alguém ia gritando:
cabelo quente, telha molhada.
Gritando, cor de martelo, em peixes
com som de rosas:
Castiçal, silveira, linho — e:
porta porta.
Em O corpo o luxo a obra. São Paulo: Iluminuras, 2009, pp. 62-66
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Pablo de Rokha
Eu agarro a sorte e a morte,
assim, pela palavra, pela maquinaria barulhenta da palavra, torno-as
canções sem tempo,
e vou arando de imortalidade o dia grandioso.
Minha carne é violão, meu sangue é toada, e meus ossos são cantos postados.
Percebo o devir mundial como imagem, só como imagem,
sento, penso e expresso em imagens irremediáveis
a lógica matemática dos fenômenos dos fenômenos dos fenômenos;
e minha condição estético-dinâmica cria o universo
ao modo formidável dos espelhos despedaçados.
Homens e máquinas e homens
vivem e morrem em meus poemas acumulados
a forma tremenda do sonho.
Sou gesto, sou violência, sou mundo eloquente;
além do mais, não tenho senso conceitual,
ou ando disperso e móvel por dentro da beleza aquartelada,
o mesmo que o pensamento nas artérias,
e também como Deus, sim, como Deus no alarido do homem sublime;
e entretanto, me vejo vendo-me
com o olhar espetacular da análise.
Pombas de cimento,
caem do meu terno rodante das epopeias.
Não conheço, digo,
não defino, nomeio,
aumento a natureza;
expresso;
atrás, atrás do meu coração, uiva a nebulosa.
Em U. Santiago: LOM, 2001, pp. 11-2, tradução minha