Vozes de Baudelaire na poesia francesa
O poeta francês Charles Baudelaire (Reprodução)
Na encruzilhada entre parnaso e simbolismo, ultra-romantismo e até mesmo um certo naturalismo, Baudelaire parece ter resumido as complexidades estéticas do século 19. Pensar na presença das múltiplas vozes que tecem sua poesia na poesia francesa posterior implica a necessidade de redefinir as principais linhas de sua poética ou, pelo menos, aquelas que puderam ser desenvolvidas pelos poetas que escreveram suas obras tendo-o lido. Tomemos, por ora, apenas duas dessas linhas, uma estética, outra moral, separadas no intuito da análise, mas verdadeiramente indissociáveis: o papel da imaginação e a dualidade moral constitutiva de qualquer situação humana.
A imaginação, à qual se filia o famoso tema das correspondências, alarga os espaços do pensamento através da imagem-em-ação. A imaginação baudelairiana não se reduz a um repertório de exercícios fantasiosos do espírito humano em busca de superar os limites da existência no cotidiano do capitalismo (mesmo se o “Mal” em Baudelaire muitas vezes responde a essa função, leia-se O mau vidraceiro e Espanquemos os pobres, por exemplo), mas ela é o processo da própria criação de imagens – o pensamento, que se faz por imagens, comparações, metáforas. Por isso, é a “rainha das faculdades”. Ela faculta a existência das outras. Aproximando-se de Nietzsche, Baudelaire propõe que toda metáfora é (artisticamente) verdadeira, que toda verdade não pode ser senão (ao menos residualmente) metafórica, e deixa inscrita na memória da poesia francesa essa fulgurante e simples descoberta. Após Baudelaire, nessa linha, temos Mallarmé. “Todo pensamento emite um lance de dados”, escrevia este, referindo-se ao caráter arbitrário do que se chama “pensar”: uma chance, uma aposta de sentido num mundo sem plano transcendente, marcado embora pelo desejo do “Mistério”, teatro espiritual para a encenação da Idéia.
As correspondências, especialmente favoráveis ao desenvolvimento sugestivo e alusivo do poema, derivam da imaginação como fator de integração de realidades diversas. Elas consistem no pressentimento de uma “tenebrosa e profunda unidade,/vasta como a noite e como a claridade”, inspirador de um sistema poético que valoriza os ecos e a fusão, um elemento podendo atravessar o outro, posto que “os perfumes, as cores e os sons se respondem”. São sinestesias, analogias, em suma, imagens da imagem que o homem da modernidade em crise de representação tem do que é pensar, (re)construção da unidade prismática de um todo psíquico segundo novos padrões. Mais do que agrupar certos poetas do fim do século 19 numa “escola” simbolista, é possível apontar uma deriva que se afasta do romantismo, tornado sufocante paradigma do exercício poético, e que vai em direção a uma reformulação do que significa “significar”: o símbolo, en tenda-se um novo agenciamento entre real e ideal, entre literalidade e sentido. Assim, os excêntricos Corbière, mais irônico, e Lautréamont, mais escatológico, bem como Mallarmé e Rimbaud, orbitam num certo espaço “simbolista”, em que a voz baudelairiana das correspondências se faz ouvir, tanto quanto a voz baudelairiana que diz a irredutível ambivalência de tudo o que o homem realiza ou percebe.
A “dupla postulação” fala inicialmente de uma instância teológico-moral, em que o homem oscila e se constitui na tensão entre tendências ascensionais e descensionais, em seu desejo de desconhecido – que é desejo de conhecer-se. A novidade em Baudelaire é que ele não é mais impelido a optar por uma das tendências, podendo transitar entre elas e encontrar sua verdade nesse intervalo. A poesia é o lugar ao mesmo tempo precário e fundamental onde esse desejo vai se alojar. Bem e mal, humanidade e animalidade, criação e destruição, excesso e silenciamento são postulações simultâneas encontradas em Rimbaud, em Lautréamont, em Mallarmé, entre outros. O poema de Baudelaire “A voz”, onde duas vozes se oferecem ao poeta, uma terrena, afeita ao prazer, e outra que propõe a viagem nos sonhos, “além do possível, além do conhecido”, à qual o poeta responde “sim”, somando sua voz a ela, é emblemático dessa polifonia.
No século 20, em busca dessa perspectiva de superação do possível e do conhecido, o surrealismo vai apostar fortemente na imagem que aproxima universos anteriormente tidos como estanques, lembrando a famosa definição de Reverdy. O interesse principal da poesia passa a ser o de estabelecer uma relação paradoxal com o mundo pensado em imagens, que pode transbordar no poema em prosa, gênero posto em evidência por Baudelaire e praticado por Max Jacob e pelo próprio Reverdy, como já o tinha sido por Rimbaud: poética, mais do que uma forma codificada, é a própria apreensão imagética das coisas, a iluminação de um relance em que o poema pensa o mundo e a própria língua, tornada coisa do mundo. Como não ver Ponge prefigurado no “Poema do haxixe”, onde, sob o efeito da droga, o poeta observa o trabalho da imaginação, pelo qual a própria gramática, antes árida, torna-se um meio maravilhoso, do qual as palavras emergem revestidas de carne e osso, “como um dicionário dotado de vida”?
A influência de Baudelaire sobre a poesia francesa, demasiado vasta para ser devidamente apreciada neste espaço, estende-se também à sua herança teórica em pensadores contemporâneos absolutamente afinados com a poesia, como é o caso de Jacques Derrida que, partindo do poema em prosa de Baudelaire “A moeda falsa”, evidencia a ambivalência do capitalismo (o elemento transitório, como no ensaio sobre o pintor Guys, a metade da arte) e do homem (o elemento eterno, a outra metade), na reflexão sobre o dom e sobre a narração, enigma literário no qual a própria literatura se vê presa – e do filósofo mas também e principalmente poeta Michel Deguy – que reitera seu apego a Baudelaire nas formas da comparação, da imaginação, da revelação e da diérese que diz o infinito no finito do verso.
Paula Glenadel é professora de Literaturas Francófonas na UFF, com pós-doutorado em poesia na Université de Paris VIII; autora de A vida espiralada