Votos brancos, nulos ou a política do cínico e do otário

Votos brancos, nulos ou a política do cínico e do otário

Marlene Dumas. “Não me faça perguntas e não te direi mentiras”, pintura com a boca, 1991 (Reprodução)

Cínicos são os que acionam a armadilha da não política, otários são os que caem no elogio da vida sem política

Como professora de filosofia eu me preocupo com o quê as pessoas pensam e falam, com o modo como as pessoas pensam e falam, e também com os resultados práticos desses atos.

Nessa linha, eu gostaria de fazer um comentário sobre um curioso fenômeno da cultura contemporânea. Verificamos que vários políticos discursaram dizendo que não eram políticos e isso foi estranhamente bem recebido pelo público, tanto que alguns até se elegeram no primeiro turno com esse tipo de conversa, que já virou moda entre os que pensam que não fazem política apenas porque falam que não fazem… Então, vamos analisar um pouco o que se passa.

Em primeiro lugar, é bem estranho que alguém fale que não é político justamente durante uma campanha política. Afinal, aquele que está fazendo campanha política está participando de um ato justamente político. Uma campanha não é um ato qualquer, ela é política, extremamente política. Podemos discutir o que é e o que não é política, mas ninguém vai negar que uma campanha em que se disputa um argo político é uma campanha política. Além disso, se alguém está fazendo campanha é porque se candidatou. É impossível evitar que a candidatura seja um ato político. Além disso, se alguém se candidatou é porque está necessariamente filiado a um partido. É óbvio que um partido também é algo político…

Bom, que diabo será que esse indivíduo pensa que está fazendo ao fazer tudo isso e dizer que apesar disso tudo que ele está evidentemente fazendo, ele não é político?

Podemos dizer que uma pessoa que age dessa maneira está mentindo. Mas não é bem isso. Conseguimos perceber que há algo de errado nisso, mas tudo fica muito nebuloso. Não é bem uma mentira e se olhamos com mais cuidado, podemos até dizer que há algo mais interessante acontecendo. Podemos dizer que, na verdade, essa pessoa que diz que não faz política no meio de uma candidatura e de uma campanha políticas, está caindo em uma contradição.

No campo da filosofia que se ocupa em entender os jogos da linguagem, o jeito como falamos e os interesses em jogo, podemos dizer que essa pessoa que fala que não é política enquanto age politicamente está caindo em um tipo de contradição. Chamamos de contradição performativa ou pragmática aquela na qual a pessoa que se pronuncia desdiz ou anula o que fala no ato mesmo de falar. Problema é que nem todo mundo está ligado e percebe esse tipo de coisa.

Mas quem percebe pode sempre se perguntar: por que motivo ou com que objetivo uma pessoa faria uma coisa dessas? O que será que aquele que se contradiz ganha com isso? Ser pego em uma contradição é, para muitos, algo vergonhoso. Mas os que se pronunciam assim em termos de política, não devem sentir vergonha. Não é possível, por outro lado pensam aqueles que percebem, que a pessoa cometa uma contradição dessas apenas porque não raciocinou bem. O que será que está acontecendo, então? Será que esses políticos são burros? Podemos nos perguntar sem medo de sermos ingênuos. Se for burrice, ela não é sem função. Não é uma pura e honesta burrice que seria também perdoável. É bem mais possível que haja alguma vantagem em agir assim…

Portanto, podemos considerar que o sujeito envolvido em atos e ações no amplo campo da política – esse que diz que não é político – não esteja apenas mentindo, e, no fundo, também não esteja apenas se contradizendo. Talvez ele esteja ganhando alguma coisa. No caso, mesmo sem prestar atenção, perceberemos que ele ganha votos. Imaginem aquele sujeito, o prefeito da sua cidade que já se elegeu no primeiro turno ou que se elegerá no segundo, com esse discurso contraditório. Ele usa esse tipo de discurso como uma máscara que cai muito bem na época em que as pessoas tem raiva de política sem perceberem que a própria raiva da política é política. Parece que o candidato em questão fala uma verdade. E o mais estranho é que ele não chega a mentir com força, e nem simplesmente se contradiz com força. E é isso que nos deixa confusos.

No entanto, se ele declarasse com todas as letras seu “lugar de fala”, se ele fosse pego por alguém no seu ato, então, ele explodiria com um homem bomba diante dos olhos de quem os observa. Mas o fato é que o que ele faz impede que seja pego.

Como argumento em favor do cidadão que se pronuncia em sua campanha política como um não político, podemos aceitar que, de fato, as pessoas são outras coisas enquanto são também políticas. Mas não podemos aceitar o fato de que por sermos outras coisas, por termos outras profissões, não sejam por isso também políticos. Tem aquele candidato que é, na verdade, um pastor, um ruralista, um empresário. Se quisermos dizer oportunista e mistificadores também podemos. Mas isso não vem ao caso agora. Para muita gente, “política” em um sentido lato ou estrito, é apenas degrau para alçar postos e cargos para defender interesses seus e de sua classe. Uma pena que os cidadãos esqueçam da importância da política como construção da esfera pública e a deixem nas mãos de quem a usa com fins privados e, nessa linha, contra a ética na política.

Ao efeito de cometer uma contradição e usá-la a seu próprio favor, podemos dar o nome de cinismo. Ora, o cinismo é uma postura, a de quem é completamente verdadeiro. Essa seria uma definição antiga. Até filosófica se lembrarmos dos sábios antigos que praticavam a “parresia”, o ato de falar o que se pensa, doa a quem doer. No entanto, o verdadeiro também é um valor e, como tal, se transforma historicamente.

Vivemos em uma época em que a verdade já não é um valor. O cinismo, portanto, também mudou. Ele é hoje a postura verdadeira sendo que a verdade não tem valor. O verdadeiro sem valor de verdade. Por isso, não se trata de uma simples contradição quando vemos alguém falando tranquilamente uma mentira como se fosse verdade e como se não tivesse mal algum nisso. E é por isso que ficamos confusos e até inertes diante de um cínico. Ele está falando a verdade e mentindo ao mesmo tempo e não está falando a verdade e nem mentindo. O que ele está fazendo então?

Ele está não apenas enganando. Ele está transformando o outro em um otário. Criando a teia de renda negra na qual vai devorar a sua presa.

Os espertos surgem e passam a usar o cinismo como tática de enganação. É a melhor de todas. Ato de linguagem, verbal e performativo, o cinismo é uma postura e o cínico ocupa um lugar especial nela. A verdade está escancarada por ele, mas não será fácil acreditar nela porque o cínico agirá para que não se possa fazer nada contra o que está à mostra. E isso só é possível considerando que acreditar ou não na verdade já não importa.

A dialética do cínico e do otário

Se vocês lembrarem do que em um filósofo como Hegel se chamava de “dialética do senhor e do escravo” teremos uma nova luz sobre a questão. Naquela versão, o poder e a liberdade estavam em jogo na luta entre as partes, a disputa entre quem manda e quem obedece era a luta do desejo que emanciparia o mais forte.

Agora temos a dialética entre o cínico e o otário. Pensem numa relação inevitável depois que a política sofreu um intenso esvaziamento. A qualidade da relação política é que se modificou. Agora o senhor é o cínico e o escravo é o otário. Já não há mais luta pelo poder ou pela liberdade porque o otário, menos do que o escravo, não tem a menor chance. Chance é consciência. Mas ela foi aniquilada. Envenenado por doses altíssimas de programas televisivos, dopado pelos religiosos neoliberais, o otário não é capaz de virar o jogo porque não tem consciência do que fazem com ele. A consciência é só o que liberta do cínico e, no entanto, ela está indisponível. Seria uma espécie de antídoto, mas está em falta no mercado.

Como é possível chegar a isso? Podemos falar de “razão cínica”, mas na prática concreta, o fato é que qualquer pessoa fica sem parâmetro diante de um cínico. Ele acaba com o seu adversário ao colocá-lo na posição de otário. E para colocá-lo lá, basta vestir a máscara do cínico. É automático, pois as pessoas confiam na verdade, ainda que ela não tenha mais valor.

Como o cínico consegue essa façanha de colocar os outros todos nessa posição?

Ajudando a formar otários, preparando o terreno. Todo autoritarismo é solo fértil. Em adubando com indústria cultural e religião do mercado, o fruto é conhecido…

Quem são os otários de nossa época? Há otários em todas as esferas, em todas as profissões e instituições. O otário se forma com uma mídia e uma religião cínicas e manipuladoras, é preparado para acreditar em tudo o que lhe oferecem dentro de um programa de rejeição ao diferente (entendido genericamente como algo estético, ético, cognitivo e político). Ele não se pergunta jamais, porque a dúvida, não sendo útil, não é oferecida pelo sistema cínico como ração.

Cínicos são os que acionam a armadilha da não política, otários são os que caem no elogio da vida sem política. Os otários satisfazem os cínicos. Dialeticamente falando, podem até se tornar cínicos em algum momento. Vai depender do poder que conquistam ou ganham de modo oportunista. O discurso de que a política acabou, de que os políticos são todos corruptos, é o discurso que o otário ganha de presente do cínico. É como se o cínico avisasse que o poder tem dono e que esse dono não é o povo para quem ele fala. Se o povo cai deixa de ser povo e se torna otário.

Todos fazem o que podemos chamar de “política dos sem política”, uns com poder, os cínicos; outros sem poder, os otários. Na posição de pobres coitados políticos (como analfabetos que fingissem saber escrever), negam o que fazem.

O circulo cínico do poder é sustentado por todos os que caem em ideologias espontâneas: pobres neoliberais, por exemplo. Há muitos, mas fiquemos com esse exemplo para a reflexão do momento e exercitemos nossa imaginação para pensar nos demais.

Os nulos, os brancos

Aproveitemos para nos colocar a questão: o mais novo otário do círculo cínico no qual estamos todos envolvidos não seria, nesse momento, aquele que vota nulo ou branco?

Não seria aquele que pensa que lava as mãos, quando na verdade, foi levado a pensar assim? Não percebe ele que tanto quanto os demais acabará por pagar a conta, querendo ou não, terá que responsabilizar-se pela sociedade onde vive. Quem vota nulo e branco pensa que lava as mãos, pensa que é melhor do que quem vota útil, ou quem vota em candidatos mentirosos ou autocontraditórios. Mas infelizmente não faz nada diferente. Comprou o discurso de que a política não vale a pena e pensa que não tem nada a ver com ela.

Ora, todos os nossos atos humanos, só são humanos porque são políticos. Fazemos política consciente ou inconscientemente, o tempo todo, por ação ou omissão. Mais ainda, é claro, quando participamos ativamente das instituições e organizações políticas. Quando pensamos que fazemos algo melhor ao tentar negar a política votando nulo ou em branco, apenas mostramos que esvaziamos a política deixando-a na mão dos poderosos cínicos que se comprazem com esse gesto tonto. Mas não fizemos isso por vontade própria. Fizemos isso movidos por ideias bem empacotadas por quem sabe o poder delas e a todo custo quer evitar a análise e a crítica que poderiam mudar o estado de coisas.

Quem ainda não sabe que a política só vai mudar quando as pessoas começarem a pensar de verdade?

Enquanto isso, uns cospem e outros engolem, com o perdão do apelo ao nojo.

(1) Comentário

  1. Provocação que passa um certo viés, devo me posicionar mesmo que eu não queira qualquer das opções. Ou a alienação é provocada. É doença. A alinação pode ser uma atitude politica. Certo?

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