Você não estava aqui, um filme de Ken Loach

Você não estava aqui, um filme de Ken Loach
Ricky (Kris Hitchen) e sua famíla protagonizam novo filme de Ken Loach, de "Eu, Daniel Blake" (Foto: Divulgação/Vitrine Filmes)

 

O mais novo filme de Ken Loach Você não estava aqui é uma obra relevante para a compreensão de fenômenos do atual mundo do trabalho e da precarização das suas relações. Cada vez mais presente no cenário cotidiano das cidades, os trabalhadores de empresas de tecnologia – cuja face mais direta é chamada aplicativo – se tornam cada vez mais invisíveis para os órgãos públicos e os poderes estabelecidos.

Essa contradição é cruel e sintomática do capitalismo contemporâneo. Quanto mais esses trabalhadores, seja com mochilas nas costas ou conduzindo carros próprios ou alugados, cruzam freneticamente o espaço urbano, mais os poderes estabelecidos fingem não vê-los.

Para tornar mais simpática a imagem dessas empresas – uma vez que em muitos países não apenas a justiça como o poder público tem colocado necessários limites e questionado essa forma de exploração do trabalho -, algumas investem pesado em publicidade, divulgam campanhas contra assédio (o que é importante), mas apenas tangenciam os reais problemas dessa relação parasitária com seus milhões de trabalhadores.

São inúmeros os casos de jornadas exaustivas, desamparo completo em casos de acidentes de trabalho, ausência de programa de qualificação, ausência de equipamentos de segurança para ciclistas e motociclistas que realizam entregas, falta de política de saúde laboral para os motoristas e entregadores, enfim, entre empresa e trabalhador há um fosso profundo que visa unicamente o lucro.

No Legislativo, essas empresas patrocinaram um lobby fortíssimo sobre o Congresso para que se deixasse a regulação normativa para os municípios, local em que é bem mais fácil para essas gigantes do capitalismo negociarem e barganhar com vereadores e prefeitos para que não lhes exijam muitas coisas para licença de atuação e operacionalização.

Lembro que na época desse debate eu trabalhava no Congresso e pude notar que a empresa de aplicativo pagou hospedagem e alimentação para que uma centena de seus motoristas fosse aos gabinetes como “sindicalizados” a falar e “representar” os outros milhões de trabalhadores que lá não estavam. Tristemente, encenavam uma patética tragédia em que o patrão falava por si e por eles, mas os efeitos seriam sentidos apenas em seus próprios corpos.

Voltando ao filme, Ricky (Kris Hitchen) e a sua família travam uma batalha árdua contra as dívidas desde o colapso financeiro de 2008. Após transitar por vários bicos, Ricky se anima com uma oportunidade de recuperar alguma independência com uma furgoneta novinha em folha e a possibilidade de ter o seu “negócio” como motorista de entregas por conta própria. É o chamado “milagre do empreendedorismo”, retórica empregada para fortalecer o ímpeto de ser “seu próprio patrão”, ter liberdade de horários, começar seu negócio e condicionar o retorno financeiro à capacidade pessoal.

O trabalho se torna cada vez pior, mais exaustivo, mais desagregador da família, mais desumano, além de fisicamente e psicologicamente perigoso. Antes se trabalhava para viver, agora se vive para trabalhar, como diria a sabedoria popular. Loach toca com sensibilidade o aprofundamento do desgaste e ruína das relações familiares e expõe as nódoas desse sistema colocando o público para testemunhar uma série de abusos travestidos de realização pessoal e modernização dos valores trabalhistas.

Os sinais de resistência a esse perverso modelo de exploração ainda são tímidos, mas já se vê protestos de entregadores, criação de laços de solidariedade, tentativas de sindicalização e algumas iniciativas legislativas como a do Projeto de Lei nº 5756/19, de autoria do deputado federal Alexandre Padilha. No entanto, em geral, a esquerda está ainda bem distante dessa realidade e do cotidiano de milhões de lares brasileiros afetados por ela. Compreender rapidamente isso pode ser a chave para uma reestruturação e potencialização das forças populares no país.  A demora, por outro lado, aprofundará o seu já grave e profundo alheamento.

Patrick Mariano é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP


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