Vítimas e artífices da crise

Vítimas e artífices da crise

Laurent Cantet realiza leitura sociopolítica das crises contemporâneas, sem desprezar a caracterização psicológica dos personagens

Sérgio Rizzo

A Palma de Ouro de melhor filme concedida no Festival de Cannes do ano passado a
Entre os muros da escola, que chega neste mês ao circuito comercial brasileiro, deu maior visibilidade internacional a uma carreira ainda breve, mas de crescente importância no cenário europeu, a do diretor e roteirista Laurent Cantet, 47 anos, e outros três longas-metragens no currículo: Recursos humanos (1999), A agenda (2001) e Em direção ao sul (2005). Sua obra vem se constituindo, de modo organizado e relativamente silencioso, como um diagnóstico agudo de algumas crises do mundo contemporâneo, sobretudo as que atingem o pensamento eurocêntrico, ou a maneira de encarar a sociedade ocidental a partir do entendimento da Europa como parâmetro de civilização e as ex-colônias como periferia do sistema.

O significado do trabalho para o cidadão comum e o impacto das transformações do capitalismo nas últimas décadas, com ênfase nos embates políticos travados na França durante a década de 1990, estão no centro
Recursos humanos, sobre um jovem recém-formado em Administração que retorna à cidade natal para trabalhar na mesma fábrica da qual o pai é empregado há cerca de 30 anos. Combinam-se dramas de ordem coletiva (o trabalho do jovem consiste em abastecer os gestores com informações que possibilitem fazer cortes no quadro de funcionários) a outros de ordem familiar (pai e filho ocupam posições conflitantes), em leitura sociopolítica que não despreza coordenadas intimistas, baseadas em cuidadosa caracterização psicológica dos personagens.

Olhar muito parecido sobre as corporações e o mundo do trabalho no início do século 21 pode ser encontrado, com variações na estratégia de abordagem, em
O corte (2005), de Costa-Gavras, que radicaliza em chave de humor negro a falta de emprego para todos, e A questão humana (2007), de Nicolas Klotz, que associa características da gestão de uma grande empresa a episódios obscuros de sua história durante o período nazista. O próprio Cantet retomaria a preocupação com os efeitos de aspectos econômicos na vida de trabalhadores em A agenda (no original, L’emploi du temps, ou “o horário”), livremente inspirado na tragédia verídica de Jean-Claude Romand, que matou a família e em seguida tentou se suicidar. O episódio foi reconstituído pelo livro-reportagem O adversário, de Emmanuel Carrère, que deu origem a um filme homônimo, dirigido pela atriz Nicole Garcia e lançado em 2002, pouco depois da adaptação de Cantet.

Diferentemente do que fazem Carrère, Garcia e seus roteiristas, empenhados na compreensão da desordem psicológica que levou Romand (batizado no filme como Jean-Marc Faure e interpretado por Daniel Auteuil) a construir uma carreira fictícia como médico na Organização Mundial da Saúde (OMS) e a viver um curto-circuito mental quando sente que será desmascarado,
A agenda opta por uma leitura socioeconômica da história, concentrada na perda de identidade que o desemprego acarreta em sociedades cujos papéis sociais são definidos, em boa medida, pelo trabalho. Alguém que não consegue se inserir nessa lógica se tornaria uma espécie de bastardo, sem lugar. Assim, o protagonista (Aurélien Recoing) não tem coragem de contar à família que foi despedido e, para ocupar o tempo livre de segunda a sexta-feira longe de casa, passa o dia viajando de carro e “inventa” um emprego.

Ausência de sentido

Embora a crise da educação no mundo contemporâneo seja o tema ostensivo de Entre os muros da escola, é novamente sobre o mundo do trabalho que Cantet se debruça, inspirado na “tragicomédia ordinária de um professor de francês”, o romance Entre les murs, com lançamento no Brasil previsto para este mês, pela Editora Martins (tradução de Marina Ribeiro Leite), simultaneamente à chegada do filme ao país. O autor, François Bégaudeau, 37 anos, se baseou em suas próprias experiências como professor de língua e literatura em uma escola na periferia de Paris para “divisar o discurso por meio dos fatos, as ideias pelos gestos” – e, assim, “apenas documentar o trabalho cotidiano” de um educador hoje na França, de acordo com o material de apresentação da edição francesa.

Cantet recrutou o próprio Bégaudeau – que assina também o roteiro, ao lado do diretor e de Robin Campillo – para interpretar o papel do professor e adotou o princípio de observar a escola como uma espécie de câmera de eco da sociedade. Tudo o que ocorre ali, entre muros, é apenas reverberação do que acontece no entorno. O extraordinário trabalho com os adolescentes que interpretam os alunos, todos usando seus nomes verdadeiros, faz o espectador acreditar que havia câmeras ocultas dentro da sala de aula e em outros ambientes da escola.

Entre os muros da escola já se configura – tanto pelos métodos de realização semidocumentais quanto pelo diagnóstico da escola como instituição em crise profunda – como um dos grandes filmes em torno da relação ensino-aprendizagem e da responsabilidade social que se atribui ao trabalho dos educadores. Duas perguntas-chave ocupam o pano de fundo o tempo todo, embora ninguém as verbalize: por que estudar e por que ensinar em uma sociedade dividida entre poucos “vencedores” (aqueles para os quais haverá fartura material) e muitos “perdedores” (aqueles compelidos a buscar apenas táticas imediatistas de sobrevivência)? Qual o sentido de transmitir valores libertários, produzir conhecimento e desenvolver a cidadania, expressões-chave do processo educacional, em um meio social que oferece mensagens contraditórias sobre a importância de valores libertários, conhecimento e cidadania? 

A rigor, há uma personagem, ao final, que verbaliza, sim, o sentimento jovem de não enxergar o significado do que ocorre cotidianamente “entre os muros da escola”, sobretudo para os filhos de imigrantes que ocupam as carteiras da sala de aula recriada por Cantet e Bégaudeau. É um momento duro para o professor, que ouve no último dia de aula uma declaração expressa de seu fracasso e da escola como instituição; é também um momento difícil para a aluna, que supera o constrangimento de se expor diante do mestre (e, por tabela, da instituição) ao admitir um “pecado”; e, por fim, é um diálogo devastador para o público, ao menos para a parcela que identifica, na escola do filme, a incapacidade de as gerações mais velhas proporcionarem às mais jovens perspectivas razoáveis de futuro. A particularidade dessa instituição em crise está em ser ao mesmo tempo vítima e artífice do estado de coisas.

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