‘Reforçar a visibilidade é uma estratégia de sobrevivência’
A psicóloga, escritora e ativista Jaqueline Gomes de Jesus (Foto: Divulgação)
Em 2004, foi lançada a primeira campanha do Ministério da Saúde voltada para transexuais e travestis: “Travesti e Respeito”. Criada graças à atuação de ativistas ligadas à área da saúde, a campanha pedia pelo fim do preconceito em relação às populações trans, muitas vezes vistas como vetor de doenças sexualmente transmissíveis.
No dia 29 de janeiro daquele ano, um grupo de ativistas se reuniu em frente ao Congresso Nacional para acompanhar o lançamento da campanha. Ali surgiu a ideia de criar, também, uma data para marcar a luta contra o preconceito e a intolerância. Foi assim que surgiu o Dia Nacional da Visibilidade de Transexuais e Travestis, que completa 16 anos nesta quarta (29).
“O movimento trans se destacou muito principalmente no final dos anos 1980 e 1990 por ter buscado mais autonomia frente ao genérico ‘LGBT’, em geral encabeçado por homens gays cisgêneros”, afirma Jaqueline Gomes de Jesus, psicóloga, escritora e ativista. Jaqueline foi a primeira mulher trans a chegar a um doutorado na Universidade de Brasília (UnB), em 2009.
Para ela, avanços significativos foram alcançados nesses últimos 16 anos, principalmente no âmbito da representatividade e do debate público. Mas outras questões, como segurança, emprego, participação política e saúde mental, permanecem urgentes.
“No Brasil, temos uma maior visibilidade fora dos guetos, mas o outro lado da visibilidade é a exposição à violência. Quando você está mais visível, se torna um alvo. Não podemos retroceder na visibilidade, mas é preciso trabalhar também com a questão da segurança.” Leia a entrevista completa abaixo.
CULT: O Dia da Visibilidade Trans completa 16 anos em 2020. De lá pra cá, quais foram os principais avanços?
Jaqueline de Jesus: Enquanto feminista, acho que o pensamento e a ação política feminista dentro do movimento trans, o transfeminismo, se empoderou muito. A visibilidade maior para os homens trans, que eram invisibilizados e estão cada vez mais visíveis. O movimento trans também conseguiu que tanto pessoas transgênero quanto cisgênero questionassem o que se entende por feminilidade, masculinidade, estereótipos de gêneros; o que forma um homem e o que forma uma mulher. Isso já é um avanço, uma mudança cultural importante.
O Supremo Tribunal Federal, em 2018, garantiu o direito de pessoas trans à identidade quando reconheceu que elas podem se reivindicar trans em cartório sem ter que entrar na Justiça, sem a necessidade de um médico ou psicólogo dizer quem elas são, o que é um avanço extraordinário.
Há também o debate sobre representatividade trans, e que se deve ao movimento dos artistas trans, que são excluídos nos meios de comunicação e das artes. As pessoas trans sempre estiveram no meio artístico, mas debater isso permitiu que, hoje, elas fossem protagonistas: só neste ano, umas três novelas da Globo tiveram atrizes trans. Por exemplo, a Nany People tem anos de carreira, mas só ano passado ela teve a chance de fazer um papel grande.
Qual a importância de celebrarmos essa data?
É indispensável. Este governo – e nós não precisamos nem mais medir palavras, pois isso é de conhecimento internacional – é fundamentalista, religioso, com políticas que objetivamente buscam excluir e menosprezar mulheres, negros, LGBTs; que busca estabelecer um moralismo sobre a sociedade. Temos muitos desafios e, mais do que nunca, ter pessoas trans discutindo esses temas é importante.
Há uma estratégia objetiva de apagamento, de epistemicídio – de assassinatos não apenas literais de pessoas trans (o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo), mas também de pensamento. Quando você não vê um grupo social, ou só o vê nas páginas criminais, você reforça o preconceito. Reforçar essa visibilidade, então, é uma estratégia de sobrevivência.
Ao longo dos últimos anos, muito progresso foi feito na discussão pública sobre transsexualidade, mas os números mostram que, de 2014 a 2017, as agressões a pessoas trans no Brasil aumentaram. Por que essa discrepância?
Tem dois lados. Pode ser que o número de casos não tenha necessariamente aumentado, mas as pessoas tenham denunciado mais. Foi o que aconteceu, também, com a implementação da Lei Maria da Penha: mulheres sempre foram agredidas, mas com a lei passaram a denunciar mais – e precisam denunciar mais ainda. Só aí a gente teria o quadro real do que é a violência e o feminicídio no Brasil.
O Brasil é o que mais registra assassinato de transexuais. Mas se você olhar, por exemplo, o Quênia, é um país que tem políticas públicas objetivamente discriminatórias. Mulheres cisgêneras lésbicas têm medo de sair na rua diariamente, mulheres trans também. Na índia, as mulheres trans são muito excluídas, não conseguem ter um lugar pra morar, mas em ambos os lugares não há tanto assassinato.
No Brasil, temos uma maior visibilidade fora dos guetos, mas o outro lado da visibilidade é a exposição à violência. Quando você está mais visível, se torna um alvo. Não podemos retroceder na visibilidade, mas é preciso trabalhar também com a questão da segurança.
Essa violência tem impactos na saúde mental da população trans. Existem aparatos públicos equipados para lidar com essas questões, hoje?
Temos uma rede de saúde mental super precária no Brasil. Isso não é de hoje, sempre existiu um descaso com essa área no país, mas no atual governo temos observado um aumento nos casos de depressão, ansiedade e suicídios consumados da população trans no Brasil. Particularmente, eu acho que tem acontecido um uso tóxico de redes sociais, para fins não muito construtivos, e isso também pode influenciar.
Os dados objetivos que eu coletei foram que, por exemplo, nos últimos dois anos, no Brasil, temos mais casos de ansiedade da população trans do que na maioria dos outros países. As pessoas estão em constante estado de alerta com medo de serem agredidas, violentadas; irem ao hospital, à escola ou ao trabalho e serem discriminadas, demitidas ou expulsas. Isso tem um impacto direto na saúde mental.
Temos que criar redes alternativas de cuidado, trabalhar com parceiros. Não adianta só a pessoa tomar cuidado se não há um coletivo que a apoia, não é suficiente. Os movimentos vão ter que focar muito, agora, em cuidados com a saúde mental, se informar sobre isso e criar relações mais saudáveis, de cuidado e de carinho. Essa é a grande estratégia, porque não dá para contar com os governos que temos.
Um estudo recente da universidade de Harvard mostra que crianças e adolescentes trans que têm acesso a bloqueadores de puberdade têm menor risco de ter pensamentos suicidas na vida adulta do que aqueles que não conseguem o tratamento. Crianças e adolescentes em processos de transição comumente experimentam problemas psíquicos?
Qualquer criança está exposta a danos de saúde mental, porque vivemos num contexto de muita violência, discriminação. Até mesmo as crianças de classes sociais mais elevadas, estão expostas, por exemplo, ao consumismo – cuja lógica também é muito deletéria.
Uma tendência que temos combatido dentro da área de saúde mental é a psiquiatrização da infância – dar Ritalina para uma criança ansiosa ou que tem pouca atenção, como se não a desatenção não fosse uma característica da infância. Existe uma tendência na sociedade neoliberal de querer construir um adulto dentro de uma criança, para que ela já seja produtiva. Isso não é saudável.
Para a criança trans, isso se soma à transfobia, a muitas pessoas negando a existência dela, e isso é muito violento. É extremamente necessário e positivo quando essa criança tem acesso ao bloqueador, junto ao qual vem todo um cuidado de saúde integral. Não é só pelo medicamento em si, é por tudo o que vem junto: uma rede de carinho, apoio familiar, apoio de profissionais, o contato com outras crianças, adolescentes e adultos trans. É isso o que promove saúde.
O tratamento hormonal na infância e na adolescência é um tema ainda polêmico. Como você encara a questão da transição nesse período da vida?
Nenhuma criança é conforme a gênero. Quem é conformado somos nós adultos, que já fomos criados dentro de uma lógica de apartheid de gênero. É bem fácil trabalhar sobre gênero e sexualidade com crianças e adolescentes, porque elas ainda não estão dentro de estereótipos conformados, como nós que crescemos num contexto bem prejudicial a todos em termos de cultura do machismo, do estupro, da violência e da masculinidade tóxica. Para crianças e adolescentes, o fundamental é que eles tenham um espaço de segurança, que eles possam ser quem eles querem ser na escola, na família, com os amigos. É algo que seria bem simples, mas é difícil por causa dos adultos. Temos que trabalhar também com os profissionais das áreas de saúde, que reproduzem muita violência, com os professores e demais profissionais da educação, com os pais, que às vezes querem que os filhos sejam o que eles não são. Mas no fundo a receita é muito simples: deixar que a criança seja quem ela é sem ser agredida e insultada, e conseguir viver em comunidade e sociedade independente de sua identidade de gênero. Buscar outros coletivos e outros pais que lidam com a transfobia também pode ajudar, porque é um problema estrutural.
A patologização da transexualidade ainda é um problema no Brasil?
Sim. A medicina ainda trabalha muito sobre o viés da doença, e não da saúde. Georges Canguilhem já falava sobre o que é normal e o que é considerado patológico lá no começo do século 20, e nós temos a tendência de focar muito mais nas doenças ou na tendência de considerar tudo o que é diferente do padrão uma doença, do que na prevenção e na promoção da saúde.
As pessoas têm que ser educadas para a valorização da diversidade – e isso independe de escolaridade. Esta geração já está sendo educada nesse sentido, acredito eu, mas falta lidar com os danos já estabelecidos entre os adultos, o que é bem mais difícil.
Quais são as questões mais urgentes para a população trans brasileira hoje?
Acho que avançar na pauta da representatividade trans. Não é só ter pessoas trans visíveis enquanto assunto interessante, mas que elas falem por si mesmas, e que elas falem não só de si, mas de tudo.
Também acho que é preciso ter mais estímulo dos partidos para a presença de pessoas trans na política partidária. Uma coisa é ter uma pessoa trans visível para se dizer inclusivo, outra é apoiar efetivamente essa pessoa para que ela tenha espaço na política partidária, para a população lutar por cargos de forma viável. Os partidos, infelizmente, mesmo os de esquerda, ainda têm uma perspectiva muito tradicionalista de política e de campanha política, focada no homem branco cisgênero e supostamente hétero. O eleitor ainda vê o candidato político dessa forma, então é importante que os partidos tenham a perspectiva de mudar essa imagem.
Por fim, um tema muito importante é a necessidade de se criar espaços de empregabilidade para pessoas trans. Sem condições de trabalho fora da prostituição e do mercado sexual, permanece o estereótipo da travesti e da mulher trans que só pode fazer trabalho sexual, como se ela fosse obrigada a fazer isso porque não tem outras oportunidades de trabalho. E se não vier de políticas públicas, que as empresas contratem pessoas trans, porque isso vai causar uma mudança muito grande na sociedade.