Vigo em movimento

Vigo em movimento

Cléber Eduardo

Nunca um crítico brasileiro teve um trabalho tão difundido e respeitado fora das fronteiras como Paulo Emílio Salles Gomes a partir dos anos 1950. Nunca um cineasta teve uma carreira tão curta, tumultuada e mitificada como o francês Jean Vigo nos anos 1930. E nunca um crítico foi tão importante para um cineasta, e vice-versa, como Paulo Emílio foi para Jean Vigo e Jean Vigo para Paulo Emílio. A razão desse mútuo benefício entre artista e analista-pesquisador é o livro Jean Vigo, de Paulo Emílio, escrito entre 1948 e 1952, que veio à luz durante a temporada francesa do crítico brasileiro, 18 anos após a morte do cineasta.
O volume está sendo relançado em nova tradução e com a fortuna crítica do livro. É acompanhado de outro livro assinado por Paulo Emílio, Vigo, Vulgo Amereyda, sobre o pai de Jean Vigo, Miguel Almereyda, ativista e emblema do anarquismo europeu nos anos 1910, que foi assassinado depois de ser enredado em trama de traição à França. Ambos os textos são frutos de pesquisas minuciosas e revestidos de visões pessoais do crítico em seu papel de historiador especulativo. Pai e filho tiveram vidas cheias de oscilações e foram marcados por sabotagens às suas “obras”.
Quando Almereyda morreu, em 1917, o filho, Jean, tinha 12 anos. Quando Jean morreu, em 1934, Paulo Emílio tinha 29. Almereyda deixou para o filho a herança da rebeldia. Vigo deixou para o mundo dois curtas (À Propos de Nice e Taris), um média (Zero de Conduta) e um longa-metragem (L’Atalante). E Paulo Emílio deixou para nós, ainda em vida, as pulsações de Vigo e Almereyda, que, sem o crítico em seu hercúleo trabalho de caçador e analista de informações, talvez não tivessem a mesma estatura mítica de hoje. Que não se entenda o mito de ambos como farsas e mentiras, mas como construções de sentido e constatação de relevância com base em experiências vividas.
Os dois livros não seriam tão oportunos se, quase simultaneamente, não fossem lançados os filmes de Vigo. Com as imagens à disposição e as páginas dos livros acessíveis, podemos aproximar com viés crítico as vidas e as obra tratadas por Paulo Emílio. O livro sobre Jean Vigo, para além da visão sobre os filmes e seus principais momentos, é uma biografia artística detalhista. Chega a conter passagens microscópicas sobre momentos da vida e sobre os processos de realização cinematográfica, sem com isso nos permitir necessariamente entender melhor a relevância da obra.
Valorizemos essas realizações de cinema, já que estão nelas, em última instância, os sedimentos da importância de Vigo. Se o cineasta é visto pelo crítico pesquisador em relação ao trauma deixado pela morte do pai, cuja imagem sempre tentou limpar, esse viés talvez seja o menos interessante de ser considerado, simplesmente porque tende a localizar em sentimentos e situações a gênese do criador, o que, para além de ser ou não um fato, acaba por atenuar o valor das criações em nome da psicologia. O caso de cinema de Vigo é mais poderoso.

Consciência dos obstáculos

Paulo Emílio não amplia a lenda do cineasta de gênio abortado pelas tesouras dos produtores e da censura, que teve filmes adulterados e remendados à sua revelia, mas deixou transparecer, apesar dessas intervenções, um lustro de talento que, devido à morte precoce, não pôde ser confirmado inteiramente. Sua pesquisa e suas considerações são nuançadas. Ele mostra consciência de que, para além desses problemas externos, Vigo viveu obstáculos criativos. E ter sucumbido, eventualmente, a alguns deles não o diminui.
Seja pela inexperiência nos curtas e no média, seja pela dificuldade de lidar com um roteiro que desprezava (L’Atalante), seja pela incapacidade de resistir a pressões comerciais e políticas, as desigualdades em momentos específicos ou na estrutura geral dos filmes, segundo Paulo Emílio, não podem ser creditadas somente aos vilões (censores e empresários de cinema). O crítico conclui em algumas passagens que faltou melhor planejamento em alguns momentos. E chega à obsessão de fatiar em blocos a narrativa de L’Atalante, analisando cópias com versões diferentes, para demonstrar um certo desequilíbrio de ritmo.
E por que, com tantas desigualdades e tantas adulterações, Vigo é um grande? Porque sua personalidade estilística está impregnada em cada um dos filmes, tornando particulares alguns procedimentos e atmosferas do cinema mais experimental dos anos 1920-1930. Não se pode ignorar os contemporâneos de Vigo, que vão dos soviéticos S.M. Eisenstein e Dziga Vertov, com suas experiências de montagem, ao espanhol Luis Buñuel, com seu surrealismo, sem ignorar ainda a poesia da vanguarda francesa de então, que era encontrada em imagens de Germaine Dulac, Louis Delluc, Jean Epstein e talvez, sobretudo, Rene Clair, cineasta com o qual Vigo era muito comparado.
Uma parte considerável do livro é dedicada a questionar a recepção crítica aos filmes de Vigo, especialmente Zero de Conduta e L’Atalante, por valorizarem a angústia e a dureza das situações, mas também e principalmente a carga poética deles. Uma rara exceção, em um texto de defesa de Vigo, foi o cineasta Alberto Cavalcanti, outro brasileiro, que, na época do cineasta francês e antes de Paulo Emílio, andou espalhando criatividade na França.

Vida em movimento

Esse senso poético já está presente em À Propos de Nice, uma sinfonia visual cheia de rimas de movimentos análogos e uma organização de fragmentos pautada pelo efeito de aleatoriedade, que constrói um espaço desintegrado e ao mesmo tempo construído por associações dissonantes. As pessoas, os carros e o mar de Nice parecem pretexto para um jogo de imagens. O mesmo jogo é evidente em Taris, no qual, em nome de uma aula didática de natação, investe-se em manipulações visuais. Uma forma de driblar a natureza de encomenda do projeto.
Zero de Conduta mantém um cultivo dos enquadramentos incomuns e de alguns efeitos puramente plásticos, mas, pela primeira vez, Vigo lida com um roteiro e com atores. Está disposto a, baseado em experiências de infância, narrar situações. Depende de um mínimo senso de unidade e clareza, que nem sempre é alcançado ou às vezes é ameaçado, embora a essência mobilizadora do filme seja a rebeldia dos garotos, que rompem com a lógica do controle da escola onde estudam e moram. Essa subversão custou-lhe a censura.
Há um senso crítico comum em ver em L’Atalante o filme de maior maturidade de Vigo, talvez por lidar com maior densidade dramática e expandir para outros espaços e situações, se a comparação for com a concentração espacial de Zero de Conduta, mas, paradoxalmente, nenhum dos outros trabalhos foi tão atrapalhado depois de pronto. Para ampliar seu apelo comercial, os produtores inviabilizaram a distribuição de modo que pudessem mexer no material e, material remexido, algumas situações perderam o nexo. O filme não era um projeto pessoal de Vigo, e sim mais uma encomenda de produtor, porém, o estilo do cineasta predomina sobre a ação em si.
Um estilo no qual o olhar atento para certos lugares e para o corpo – características presentes nos filmes anteriores – manifesta-se como uma espécie de DNA de sua pequena obra. Um dos primeiros conceituadores do documentário, o escocês John Grierson via nas imagens de Vigo a presença da vida e de lugares. Queria afirmar com isso que se impressionava pelo lado documental, para além da estilização gerada pela intervenção do artista com a técnica e a tecnologia. Poderíamos dizer que era pulsação da vida. Vigo filmava, em suma, a vida em movimento. E o movimento da vida nas pequenas coisas e nos pequenos gestos.

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L’Atalante
A propos de Nice
Taris
Zero de conduta

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