A vida literária do gay padrãozinho

A vida literária do gay padrãozinho
(Foto: Divulgação)

 

Os últimos anos viram as pautas identitária tomarem com força a produção literária brasileira. A questão racial se tornou um grande tema e, recentemente, o protagonismo feminino também se impôs com consistência. A necessidade de se reafirmar a diversidade do país e a identidade de grupos marginalizados tornou-se urgente num país dividido politicamente, com um governo que tentava apagar suas diferenças. Nesse cenário, a literatura encontrou seu terreno ideal, pois não só não exige grandes investimentos corporativos, como está a serviço de uma verdade individual, um ponto de vista subjetivo, de autoria.

Nessa onda, a questão homossexual permanecia em segundo plano, e há de se examinar os motivos quanto a isso. Se é verdade que a produção literária homoafetiva proliferou no campo juvenil, o “grande romance gay” não esteve ecoando na crítica, nos debates e nos prêmios literários dos últimos anos.

Uma das minhas teorias é porque o tema não é exatamente novidade. Homossexuais masculinos sempre tiveram voz, ainda que impostada. O homoerotismo tem presença forte na literatura clássica, desde a antiguidade grega, pois o homem branco (homossexual ou não) sempre teve espaço para se expressar. As narrativas podiam ser veladas, marginalizadas, mas há muito estavam aí. Por outro lado, a narrativa escrita por negros, por mulheres, é muito mais recente – até porque, historicamente, esses grupos só foram alfabetizados recentemente, e só agora podem escrever suas próprias histórias.

Entretanto, há um novíssimo cenário da homoafetividade, que parece estar só agora encontrando espaço na literatura brasileira: a vida afetiva (e sexual) do “gay padrão”. O termo, dentro da comunidade, tem algo de ofensivo – “padrãozinho” é aquele gay jovem, bonito, masculino, que reproduz estereótipos da heteronormatividade. Mas se isso é um padrão, é um padrão bem novo, gerado por uma sociedade que oficializou o casamento gay, que aceita homossexuais na família e que até elege um governador gay (tudo isso desde que não se “dê pinta”, é claro).

Nesse contexto, Quarto aberto, o romance de estreia de Tobias Carvalho (vencedor do Prêmio Sesc em 2018, na categoria contos), narra com maestria a vida sexual do gay “padrãozinho” gaúcho, que tem amplas possibilidades de escolha – tanto por uma sociedade mais aberta, quanto por se encaixar num padrão estético –, mas que está em crise por não saber direito o que fazer com isso, por ter opções demais, por não se enquadrar no padrão heteronormativo de constituição familiar.

A fugacidade dos encontros, o relacionamento aberto, a poligamia, tudo isso é colocado num contexto que, outrora, poderia ser marginal, mas que hoje pode ser discutido na mesinha de centro, como nos romances (literários e afetivos) heterossexuais. Não é à toa que saiu há poucas semanas, pelo selo principal da Companhia das Letras. Um belo retrato de tempos pós-estigmatizados, uma verdadeira virada de página na história recente.

Esse contexto também é enquadrado no excelente Atire a primeira pedra, do fluminense Mike Sullivan, que publica regularmente pela editora independente paulistana Reformatório. O romance, lançado no começo do ano, narra duas histórias paralelas que sintetizam essa virada: de um jovem que assassinou a mãe abusiva, que não aceitava sua homossexualidade; e do psiquiatra designado para analisar seu caso, um gay bem-sucedido, assumido, num relacionamento estável, mas que se vê em crise em se encaixar nesse padrão e constituir esse novo modelo de família. Sullivan coloca na balança aquilo que foi uma árdua conquista para muitos, mas que pode não ser o modelo para todos.

O tema da árdua conquista também é parte do ótimo Sodomita, de Alexandre Vidal Porto (também recém-lançado pela Companhia das Letras). Aqui, o romance histórico toma ares de sátira, narrando a chegada à Salvador, em 1669, de um violeiro português condenado por sodomia. O casamento de fachada, o desejo como pecado, o pecado como crime, trazidos aos dias de hoje, parecem uma velha piada de português. Vidal Porto leva o tema lá atrás para mostrar como são absurdas e arcaicas algumas concepções que permanecem.

E ainda vale citar o vencedor do Prêmio Sesc de Literatura deste ano, na categoria romance (do qual fui parte do júri). Outro outono de carne estranha, do paraense Airton Souza, que sairá pela Record em novembro, trata de uma relação de amor entre dois homens, no garimpo de Serra Pelada. Se o universo narrativo é o fim da ditadura militar, nos anos 1980, a descrição vívida dos encontros sexuais e a forma como a homoafetividade hiper masculina é exposta no livro são sintomáticas dos tempos atuais.

Lembro do surgimento, no final dos anos 1990, do selo Edições GLS, do grupo Summus, que tinha uma política de só “publicar coisas positivas” sobre a comunidade, que vinha tão castigada pela epidemia da AIDS. A produção literária homossexual masculina mais interessante de hoje (como as obras citadas), parece já ter superado isso, está nos selos principais das maiores editoras e se mostra disposta a problematizar questões que sempre foram vistas só pela ótica heterossexual: casamento, constituição familiar, guarda dos filhos. Aguardo ansioso para ler o que as vozes trans, numa margem cada vez mais próxima, podem acrescentar a essa discussão.

Santiago Nazarian é escritor com mais de dez livros publicados.


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