Vibrações contra imbrocháveis

Vibrações contra imbrocháveis
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

 

Pouco importa se a hipótese de Jeffrey Sachs – para quem a covid-19 seria uma criação humana, realizada em laboratórios dos EUA – é uma teoria da conspiração ou apenas mais uma possibilidade a ser investigada. Fato é que o coronavírus matou 6,3 milhões de pessoas em dois anos e meio. É inegável que a necropolítica surfou na onda do vírus.

Assistimos ao projeto ostensivo de deixar morrer em massa, sobretudo a população mais vulnerável. Reconfiguraram-se todos os modos de vida e laços sociais. As empresas de tecnologia lucraram mais de um trilhão de dólares só em 2020, e a precarização do trabalho alastrou-se visivelmente após o uso massivo das plataformas digitais.

Na exposição Dizer Não (2021), que aconteceu no Galpão Cru, em São Paulo, Kauê Garcia apresentou a série Arrivistas. Nela, estavam impressas declarações otimistas de grandes investidores e CEOs em relação aos negócios tecnológicos na pandemia. “Crescemos em todas as crises”, disse Marcos Stefanini, em 2020, sobre sua empresa de tecnologia.

A frase foi transcrita pelo artista em uma faixa comum de rua, com letras garrafais vermelhas sobre um fundo amarelo. Em um dos cartazes da mesma série, lia-se “Um golpe de sorte”, afirmação feita por Reed Hastings, CEO da Netflix. No outro: “Feliz com a continuidade do momentum”, dita por Daniel Ek, fundador e CEO da Spotify.

A série artística faz pensar sobre segmentos da economia e do poder que se expandem e lucram com outro modelo de vida, estabelecido após as medidas de isolamento social. Mais uma vez, vemos se repetir o lucro de alguns a partir da devastação da vida de outros – a tecnologia atravessa inapelavelmente as vidas, jogando cada vez mais poder e dinheiro nas mãos de CEOs de oligopólios digitais.

Em Survival of the Richest, Douglas Rushkoff narra o enredo de seu encontro com acionistas multimilionários da área de tecnologia. Os cenários descritos em seu livro são cinematográficos. Os ricaços consultam o teórico da mídia como um oráculo.

Querem saber sobre bunkers eficientes, defesas contra a rebelião das massas que estaria porvir, salvação dos meios de vida após o colapso ambiental, possíveis ataques de hackers, novas configurações pandêmicas. Ou seja, queriam o elixir da sobrevivência depois que todos os recursos existentes sobre a Terra estivessem totalmente exauridos.

Aventaram algumas salvações: reservas de alimentos com fechaduras secretas, trabalhadores da área de segurança com coleiras disciplinares, robôs que servissem como guardas, renovação de água, depois que ela estivesse quase esgotada. Nenhum deles pensou em investir dinheiro na preservação de recursos e na distribuição da riqueza para a manutenção da vida e do convívio no globo. Colonizar sempre mais – essa parece ser a proposta até o fim.

Douglas Rushkoff traz para a vida real o enredo de Eles vivem, de John Carpenter (1988). No filme, o trabalhador John Nada (Roddy Piper) chega a Los Angeles e encontra emprego numa fábrica. Uma operação repressiva da polícia destrói o quarteirão do bairro pobre onde ele mora. Em meio ao caos, Nada encontra uns óculos escuros aparentemente comuns. Ao colocá-los, passa a enxergar criaturas alienígenas disfarçadas de seres humanos. Na cidade também vê que há mensagens subliminares transmitidas através da mídia. Ele, então, se dá conta de que os invasores estão controlando a Terra e, junto ao seu colega Frank (Keith David), se envolve no movimento de resistência, perseguido como subversivo pela polícia. Descobre-se que esses invasores moram em outro planeta e vêm para a Terra apenas para explorar seus recursos até a última gota.

Espécie de alienígenas sugadores, as figuras que Rushkoff encontra para palestrar governam grande parte de nossas vidas. O apocalipse não é algo de que esses sujeitos queiram escapar. Segundo Rushkoff, o objetivo desse grupo é superar os “meros mortais e executar a estratégia final de fuga”.

A força sensível dos brocháveis

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Ao contrário desses seres que não renunciam a nada e almejam a condição imbrochável, Marte um (2022), de Gabriel Martins, apresenta personagens que concentram sua força na vulnerabilidade de suas vidas e de seus sonhos. Trata-se de um filme extremamente delicado sobre a perda de grandes ideais.

Sonhar implica avançar em direção ao desejo. Assumir riscos e ter coragem de atravessar as faltas. Nunca acontece sem tropeços. Quedas pelo caminho são inevitáveis. Desde o Banquete de Platão, sabe-se, através de Diotima, que o amor (Eros) exige uma combinação entre a precariedade extrema e os artifícios de que se dispõe para alcançar o que se deseja. Sem reconhecer a falta, porém, nada se move. Os passos giram em círculos repetitivos. A ilusão de completude ou a entrega melancólica ao buraco da inação é incapaz de se conectar ao ethos desejante.

Em Marte um, Deivinho e Eunice, longe de recuarem diante do desejo, agarram-no. Constroem artifícios para seguir adiante em seus sonhos. A moça rompe com o modelo desigual de relação amorosa construído pelos pais e casa-se com uma mulher. O menino, que deveria cumprir o destino traçado pelo pai de ser um grande jogador de futebol, é fisgado por outro enredo: ser cientista e embarcar na missão que levará alguns à Marte. Em um ato que reverte seu destino vazio, traçado pelos ideais narcísicos do pai, Deivinho desce uma rua extremamente íngreme de bicicleta um dia antes de seu teste para ingressar no time de futebol profissional.

Com a perna em frangalhos após a queda arquitetada, recusa o lugar a ele reservado. Resgata as lentes de uma luneta antiga de seu avô – a linhagem de seu desejo se concatena a este antecessor – e constrói um telescópio. O artifício lança seu olhar à galáxia e o aproxima do alvo de seus anseios: Marte. Deivinho aceitou a lacuna existente entre sua posição e o lugar de seus sonhos. Só assim pode enxergar a beleza do planeta. O filme também é bonito ao mostrar como os pais vão, pouco a pouco, se despindo de seus ideais narcísicos, deixando-se surpreender pelos singulares percursos dos filhos.

Entretanto, é curioso como sonhos delicados quase sempre se convertem em seu contrário no interior de nosso sistema capitalista. Aquilo que detém a maravilha onírica em Marte um acaba por se mostrar como um pesadelo em Aniara (2018), de Hugo Lilja e Pella Kagerman. Este filme retrata a história de uma nave espacial perdida por milhões de anos no espaço.

Com a terra devastada, as pessoas migram para Marte, lugar da nova colonização. Ficam confinadas nas novas descobertas tecnológicas, depois de terem destruído tudo o que existia na Terra. Revivem virtualmente seu contato com a natureza, mas até a máquina que propicia essa experiência virtual não aguenta a memória da agonia humana e sucumbe. Os pensamentos sofisticados estão a serviço da sobrevida – criam-se venenos mortais e antídotos contra esses mesmos venenos num círculo infindável.

Somos governados por seres que almejam a condição imbrochável. Fugindo da falta que os apavora, lançam todo o restante da humanidade e da Terra em um abismo incontornável. O buraco que cavam, porém, é a própria imagem de seu pavor.

Na tentativa de escapar da vulnerabilidade, esses indivíduos tornam-se ainda mais frágeis, como meninos pequenos e mimados. Mas a debilidade e a insegurança que os compõem não os tornam seres indefesos. Ao contrário: na defesa contra a precariedade da vida, os seres, que se pretendem imbrocháveis, desconectam nossas vidas da intensidade afetiva e erótica, retiram-nos do contato com o mundo sensível e devastam toda e qualquer fragilidade que compõe as malhas dos desejos. Tudo o que existe deve servir-lhes, mas eles já não estão aqui. São parasitas ou alienígenas.

Se esses sujeitos são sanguessugas, não cabe alimentá-los ainda mais, dando-lhes nosso sangue e nossa carne. Cabe, isso sim, esvaziá-los até que definhem como um pênis desentumecido – o primeiro imbrochável deverá cair em breve, mas desnutrir todos eles será a tarefa a nos ocupar daqui para frente.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).


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