Viagem ao redor do engenho teatral
Décio Pignatari (Foto: Vilma Slomp)
Welington Andrade
São inúmeras as qualidades de Viagem magnética, o segundo texto para teatro saído da pena do poeta, prosador, ensaísta, semioticista e tradutor de poesia Décio Pignatari. Se em Céu de lona, publicada em 2003 pela Travessa dos Editores, ele transformava Machado de Assis e Carolina Xavier de Novaes, mulher do escritor, em personagens de uma comédia fescenina de ritmo ágil e atmosfera delirante, nesta sua segunda incursão pela área da dramaturgia, Décio se dedica a conferir estatuto de personagem teatral a outra figura histórica de destaque do século XIX no Brasil: a escritora, educadora, feminista e tradutora Nísia Floresta Brasileira Augusta. E o resultado dessa experiência não poderia ser mais estimulante aos estudiosos da dramaturgia brasileira, em especial, mas também aos admiradores dos estudos literários, de modo mais amplo: trata-se de uma peça de teatro pautada por uma inventividade desconcertante, plena de possibilidades cênicas.
Nascida no povoado de Papari, Rio Grande do Norte, oriunda de uma família tradicional – a mãe, potiguar, era herdeira de vastas extensões de terra, enquanto o pai, português, era um advogado culto e liberal –, Nísia Floresta (1810-1885) publicou em 1832 no Recife, o livro Direitos das mulheres e a injustiça dos homens – traduzido livremente de Vindication of rights of woman, de autoria da ativista do feminismo inglês Mary Wollstonecraft (mãe da escritora Mary Shelley) –, obra que, segundo o Dicionário de mulheres do Brasil, atribuiu-lhe o “título incontestável de precursora dos ideais de igualdade e independência da mulher em nosso país”.
Não bastasse a militância feminista desbravadora, Nísia – que abriu em 1837, no Rio de Janeiro, o Colégio Augusto, onde colocou em prática suas ideias nada ortodoxas sobre educação feminina – dedicou-se também a outras causas fervorosas, defendendo, ainda na primeira metade do século XIX, o fim da escravidão, a liberdade religiosa e o regime republicano. Detentora de uma atividade literária e intelectual das mais férteis, ela viajou em 1849 para a Europa, onde entrou em contato com o positivismo de Augusto Comte, vindo a se tornar uma amiga bastante próxima do filósofo, cuja casa passou a frequentar e com quem manteve uma expressiva atividade epistolar.
É em torno não somente dessa fascinante personagem, mas também das figuras de Lívia (a filha que Nísia teve de seu segundo casamento) e de Malwida von Meysenbug (a escritora alemã que foi amiga de Friedrich Nietzsche e Richard Wagner, com quem Nísia, a rigor, nunca se encontrou) que Décio Pignatari constrói sua peça de teatro, por meio da qual pôde visitar uma vez mais o efervescente século XIX brasileiro, quando o país parecia estar muito ocupado ora em se espelhar em sua ascendência pretensamente europeia, ora em especular sobre o que fazer com sua progênie realisticamente tropical. Entretanto, tal como era de se esperar, o olhar do autor sobre o século que abrigou as musas romântica e positivista não se dá em chave passadista ou anacrônica. O que mais chama a atenção na feitura da obra é o fato de o dramaturgo ter feito uma série de conteúdos comportamentais, artísticos e intelectuais do Ottocento que estão na base de nossa modernidade precipitarem-se em formas propriamente modernas, em virtude da perspectiva sincrônica que Décio, como autêntico representante do movimento concretista, sempre procurou fazer incidir sobre as mais variadas manifestações culturais e artísticas de todos os tempos. Aproveitando a grande moda oitocentista do magnetismo de Mesmer e do espiritismo de Kardec, Décio então nos propõe essa viagem sobre o tempo e o espaço, fazendo ecoar ainda o nome de uma das obras centrais para a formação do romance moderno, a Viagem à roda do meu quarto, de Xavier de Maistre. (“Trata-se de uma viagem magnética, galvânica, espiritual que fiz ao Brasil, sem sair do quarto…” declara Nísia a seu tradutor italiano).
O texto está dividido em vinte e seis segmentos que, embora pautados por concisão e autonomia, restituem em linhas gerais a trajetória da protagonista – de sua saída do Nordeste (em virtude do violento clima de instabilidade política na região que antecedeu a independência do Brasil, clima este responsável, inclusive, pelo assassinato do pai de Nísia) até o traslado de seus restos mortais, em 1954, da cidade francesa de Bonsecour, onde ela estava enterrada, para o município potiguar de Papari, que alguns anos antes passara a se chamar Nísia Floresta. Entretanto, Décio não explora tais fatos em chave dramática, preferindo antes imprimir a eles – dada a organização dos segmentos sob a forma de colagem – a perspectiva crítica do teatro épico. Ou melhor, de um épico à brasileira.
Nesse sentido, é visível a filiação de Viagem magnética às experiências teatrais de vanguarda conduzidas por Oswald de Andrade, sobretudo em O rei da vela, embora haja diferenças também entre ambos os projetos dramatúrgicos. A atmosfera que se pode depreender das aventuras de Nísia é a de um humor solto, desavergonhado, anti-intelectualista até, mas quase nunca “espinafrador” em essência. Já o caráter lúbrico que paira de ponta a ponta – dos “muxoxos lambidos” que o editor Duvernoy dá em Nísia, passando pela ligação tribádica entre esta e Malwida, até chegar ao êxtase final da protagonista, flechada por um “coro de Eros” – também se assemelha à tessitura erótica que está na base de O rei da vela. Entretanto, a lascívia cênico-poética de Décio Pignatari parece apontar para outras direções. Não é propriamente a Heloisa de Lesbos que Nísia presta tributo e, sim, à própria Safo, cuja obra, luminosa, inconclusa, fragmentada, tal como chegou a nós, Décio tanto admirava. Não à toa, o dramaturgo interessou-se por uma figura histórica nascida Dionísia, remetendo ao deus que, segundo a tradição retomada por Nietzsche, está ligado a Eros “mythóplokos”, isto é, o tecelão de mitos, a divindade grega que faz e desfaz as tramas das palavras e dos discursos. Nada mais erótico, dionisíaco e sáfico, portanto, do que a urdidura temática e formal desta Viagem magnética.
Concebida pelo poder de invenção de um homem das Letras e da Comunicação que sempre primou por revisitar a tradição literária sob a ótica da ousadia e da experimentação, a peça apresenta um sem-número de ressonâncias históricas, literárias, filosóficas, estéticas, musicais e plásticas, conduzidas ao limite do paroxismo – por levar tanto ao deleite como à entropia. Não bastassem as muitas rubricas repletas de informações complexas, que merecem uma decifração cênica à altura de sua engenhosidade, e as inúmeras falas de deliberado caráter enciclopédico (no 10º segmento, por exemplo, Malwida articula os nomes de Darwin, Marx, Nietzsche, Wagner, Cosima, Liszt, Lou Salomé, Gerge Sand e Augusto Comte, com insuspeita naturalidade), Décio ainda lança mão de dois recursos discursivos bastante genuínos: o uso de streakers (apresentados em Céu de lona como “personagens-personalidades que atravessam a cena, qualquer cena, fazendo proclamações, sem serem ouvidos e vistos”) e de solos proferidos ao ritmo do rap. Vale lembrar que Nísia Floresta é citada em Céu de lona como “a musa positivista brasileira, discípula e ex-amante de Augusto Conte” por ninguém menos do que a princesa Isabel na pele de uma streaker.
Estamos diante, assim, de um espécime dramatúrgico que pode simplesmente enganar os mais afoitos, sempre dispostos a anunciar o ostracismo de um grande número de peças brasileiras feitas para serem lidas e não montadas. O fragoroso caso de O rei da vela, incompreendida por cerca de três décadas até ter encontrado um encenador à altura de sua verve, parece não ter servido para muita coisa. A despeito de sua feérica estrutura referencial enciclopédica, orgulhosa por expressar em termos teatrais o mesmo caráter de “vertiginosa montagem/colagem de arqueologia cultural” – na feliz expressão de Paulo Venancio Filho – que Ezra Pound conferiu à poesia de Os cantos (outro autor com quem Décio sempre procurou estabelecer uma vigorosa interlocução), Viagem magnética é um texto para ser encenado, sim. Se Hugh Kenner definiu a ciclópica obra de Pound como “uma épica sem enredo”, estamos aqui diante de uma peça de teatro épica cujo tênue entrecho dramático se converte o tempo todo em puros jogos de linguagem, sem que se abra mão, entretanto, da tridimensionalidade do espaço cênico onde tais jogos precisam acontecer. Trata-se, portanto, de uma peça de linguagem poética muito particular, mas, acima de tudo, de uma peça de teatro. A agilidade dos cortes e da edição das cenas, de acentuado caráter cinematográfico, e o tom feérico de muitos dos ambientes onde as ações transcorrem (as prisões de Piranesi são um verdadeiro achado cenográfico) atestam uma teatralidade inequívoca. Oxalá o texto de Décio Pignatari encontre um diretor ou grupo de teatro disposto ao desafio de estabelecer com ele uma interlocução pra lá de inventiva.
Em plena era de percepções controladoras e de excitações controladas, sem que se dê muito conta disso, porque a histeria é atualmente a prova dos nove, Viagem magnética há de soar mesmo um tanto quanto racionalista e cerebral. Poucos talvez se deem conta de que os domínios do Logos também se prestam a uma materialidade sensível das mais fecundas. A imaginação teatral concretista de um poeta que já se dispôs a traduzir os lances verbais eróticos de Shakespeare e os ruídos semânticos de Sheridan pode constituir uma surpresa para quem quer estar com Baco sem perder a companhia de Apolo.
Ao coquetel grego-europeu-americano-tropical servido por Décio Pignatari e sua musa brasílica, o leitor-espectador somente poderá responder com uma única saudação:
Evoé Dionísia!
Obs.: O presente artigo está publicado como texto de apresentação da peça, editada pela Ateliê.
Viagem magnética, Décio Pignatari.
Ateliê Editorial, 1ª edição, 2014.
R$ 27,00