Viagem a las fontes selvagens de Manoel de Barros

Viagem a las fontes selvagens de Manoel de Barros
O poeta Manoel de Barros (Foto: Divulgação)

 

Acabo de completar 25 años. Estou lendo por primeira vez los versos de Manoel de Barros em fotocópias que ganhei de uma jornalista bela e perfumada que morava em Campo Grande. “Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para a poesia.” Alguns versos de Manoel de Barros son mais chapantes que las drogas egípcias ou las drogas pós-modernas! Quem non se lembra mais del gran Dino Segre, jornalista e escritor italiano de folhetines baratellis mais conhecido pelo pseudônimo de Pitigrilli? Com ele todos ficamos sabendo que “sempre existiram drogas mais potentes, mais calmantes, mais tranquilizantes, mais alucinógenas do que todas as drogas da farmacopéia antiga e da farmacologia contemporânea: essas miracle-drugs, drogas milagrosas, são as palavras”.

Acabo de embarcar nel primeiro ônibus que saiu hoje para Campo Grande y espero que non me decepcione tanto com la City Morena y encontre por lá pelo menos algunos libros del poeta Manoel de Barros. Estamos em 1989. Seus livros estão todos esgotados. Continuo a ler outros versos de Manoel de Barros. “As mulheres tratavam-nos com uma bundura extraordinária.” Chego em Campo Grande no final de uma tarde lindamente contaminada de Manoel de Barros. “Lá no alto da nuvem estava deitada a minha amada completamente nua.” Os versos de Manoel de Barros têm magias selvagens lisérgicas que apaziguam os leitores y les devuelve el paraíso perdido nonsense da língua em estado de sol e garças. “A gente se negava corromper-se aos bons costumes. A gente examinava a racha dura das lagartixas. Só para brincar de ciência.” Ler poesia non eram solamente aquelas declamações chatas que rolavam na escola. Ler poesia podia ser também uma experiência divertida como drogar-se com palavras. “Poesia, s.f. Designa também a armação de objetos lúdicos com emprego de palavras imagens cores sons etc. – geralmente feito por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados.”

Manoel de Barros morava numa hermosa casa na Rua Piratininga 363. Lá ele tinha um escritório no andar de cima, onde se trancava para passar as manhãs enfiando magia selvagem nas palavras. “Já enxergo o cheiro do sol.” Versos sempre alucinógenos. Ele fazia uns caderninhos e colava imagens recortadas na capa. Depois enchia os caderninhos de frases, versos, delírios verbais.  Palavras amanheciam entre aves nos seus caderninhos proto cartoneros. Depois selecionava as frases. Separava as que ficavam em pé, como ovo, das que não ficavam. E montava o poema com sequências de versos y delírios verbais fazendo uma espécie de edición de imagens.  Ele curtia celebrar. Celebrar coisas sem importância, coisas do mato, coisinhas do chão. Celebrar manhãs de pernas abertas. “Escrevo gags, Douglas. Não querem dizer nada. Não informam porra nenhuma. Mas as palavras, a frase, a imagem, o delírio verbal tem que ter canto dentro.”

 

Manoel de Barros era também
naquele tempo el sujeito mais
anti-Romero Britto da literatura
brasileira. Detestava que o
chamassem poeta do Pantanal ou
poeta pantaneiro, achava o rótulo
folclorizante.

 

 

Jamais aceitaria participar de talk shows ou de mesas literárias em eventos como Flip etc. e tal. “Prefiro o Leblon ao Pantanal”, dizia Manoel de Barros quando estava de saco cheio do título de poeta pantaneiro. “Nunca escrevi uma linha sequer no Pantanal.” Suas palavras estavam contaminadas de chamas, orvalho, aves, sol, pedra, rio, árvore, gosma, flor, infância, mas o poeta nunca descambava para o paisagismo verbal. El Pantanal que aparece em sua poesia es la palavra Pantanal. Nada a ver com lo real fotogênico para inglês ver.

Deleuze descobriu lendo Proust que o escritor “inventa uma nova língua, uma língua de algum modo estrangeira”, na língua em que se diz; “arrasta a língua para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar”. Manoel de Barros inventa um idioleto, um manoelês arcaico delirante, dentro da língua em que se diz. “Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na sarjeta. Sou mais a palavra ao ponto de entulho. Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las pro chão, corrompê-las até que padeçam de mim e me sujem de branco. Sonho exercer com elas o ofício de criado: usá-las como quem usa brincos.”

Carlos Drummond de Andrade reverenciou Manoel de Barros dizendo que ele era o maior poeta vivo no Brasil, mas até o momento nenhum crítico importante do eixo Rio-Sampa escreveu uma linha sequer sobre Manoel de Barros. Por outro lado, Manoel de Barros nunca lambeu las bolas de los críticos y de los jornalistas. Um dia mandei um verso para ele: “Moscas phodem volando.” Depois de alguns dias recebi uma carta dele elogiando a grafia de “phodem”. Era o meu primeiro verso em portunhol selvagem. A partir desse verso, Manoel de Barros passou a me respeitar como poeta, chegando a incorporá-lo a um poema que acabou ficando de fora da versão definitiva do Livro das ignorãças.

Durante anos, o melhor programa cultural em Campo Grande era visitar o poeta Manoel de Barros na Rua Piratininga 363. Depois que Manoel de Barros foi-se para siempre do lugar onde estava, Campo Grande ficou, sei lá, mais borocoxô.

“Custa crer que tanta inventividade, tanta força verbal, tanto colorido brasileiro tenham jazido tanto tempo no escuro!”, anotou Ismael Cardim. Fausto Wolf vinha do Rio de Janeiro só para beber escoceses y prosear com Manoel de Barros em la Rua Piratininga 363. “Já posso amar as moscas como a mim mesmo.” Gilberto Gil quando veio a Campo Grande fez questão de passar pela Rua Piratininga 363 para dar um abrazo nel poeta. José Mindlin publicou uma edição belíssima fora do comércio do Livro das ignorãças. Mas os grandes críticos brasileiros que Manoel de Barros respeitava non escreveram uma miserable línea sequer sobre os seus delírios rupestres. “O ser que na sociedade é chutado como uma barata – cresce de importância para o meu olho.”

Durante anos, Manoel de Barros coletou a potência verbal selvagem em almanaques populares, provérbios do mato, em boca de pessoas simples do Pantanal, andarilhos, loucos, bêbados e crianças. Pela sua força verbal delirante contaminada de sol, de infância, de rios e árvores, Manoel de Barros ocupa um lugar histórico próprio entre os principais nomes da moderna literatura brasileira, de Gregório de Mattos a Glauco Mattoso. Todos sabemos que las qualidades de Manoel de Barros derivam de suas ligações profundas com as suas fontes, suas afinidades com a fala das crianças, dos loucos, dos andarilhos, dos índios, dos bêbados. As fontes populares do riso. Os filmes de Chaplin. Os provérbios e refrões antigos. A prosa do Padre Vieira e a prosa do Padre Manuel Bernardes.  Rimbaud y el desregramiento dos sentidos. A fala do povo nas feiras e nos mercados. Os outros que nutrem a imaginação de Manoel de Barros são o melhor dele mesmo em poemas que explodem na página como bombas contra la cobiça, la seriedade y la ditadura da razão. “O cu de uma formiga é mais importante do que uma usina nuclear.”

Manoel de Barros
Manoel de Barros prezava pela natureza e a simplicidade da vida (Foto: Marcelo Buainain)

Todos sabemos também que ninguém comenta melhor a obra de Manoel de Barros do que ele mesmo. E lendo y relendo La hermosa edición da Poesia Completa publicada por Pascoal Soto que Manoel de Barros me deu de presente com um belo autógrafo, todos podemos observar que uma das fontes mais importantes, mas non exaustiva, da arte da poesia de Manoel de Barros, es la infância: a infância própria e a de outras crianças; o pensamento selvagem infantil; a fala torta das crianças; a imaginação infantil sem limites. Brincando brincando, o cachorro comeu la mami. Brincando brincando Manoel de Barros disseminou, ao longo de mais de dezessete livros, uma poética própria em meio a gags selvagens, deixando mescladas forever poesia e arte poética no corpus da obra. Nunca a infância esteve tão presente do primeiro ao último livro num grande poeta da literatura brasileira. Nunca a poesia brasileira havia sido tão infectada pela infância. “O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E, pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio.”

Os bêbados, os loucos de água e estandarte, também son importantes fontes de inspiración. Mas a infância parece estar contida em todas as outras fontes mencionadas. “O meu conhecimento vem da infância. É a percepção do ser quando nasce. O primeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro toque, o cheiro, enfim. Todo esse primeiro conhecimento é o mais importante do ser humano. Pois é o que vem pelos sentidos. Então, esse conhecimento que vem da infância é exatamente aquele que ainda não perdi. “Escrever com o corpo é como escrever com a infância do corpo, as sensações primeiras: os primeiros cheiros, as primeiras cores, os primeiros sabores, as primeiras texturas, os primeiros ruídos, as primeiras alegrias. Lembro de o poeta reconhecer, em entrevista, que solamente teve infância, ou seja, que non degenerou em adulto. Compreendi também que as entrevistas dele podem ser lidas como poemas. Em la primeira parte de Arranjos para assobio, “Sabiá com trevas, XV”, ele usa a entrevista como gênero poético, como brinquedo de palavras, livre da solenidade das entrevistas sérias. “No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver.” A infância está nos desvios e no desver. Desvendo pelos desvios o poeta vai dar nas origens, o futuro das palabras.

Manoel de Barros quer usar a poesia para regresar al futuro, las origens, a la infância da língua e de la linguagem. E o que faz ele para regressar ao futuro? Usa os desvios e o desver para fazer o “Criançamento das palavras”. La poesia como objeto lúdico, brinquedo de palavras, uma droga perigosa que pode te deixar menos burro e menos covarde. “A infância da palavra já vem com o primitivismo das origens.” “A liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.” São muitos os versos de Manoel de Barros com criança dentro, com a energia subversiva da infância, infância como liberdade de linguagem, infância como imaginação que non cabe nos limites de uma forma de adulto. Escrever com o ponto de vista das crianças como recusa a escrever desde o ponto de vista do adulto estaria mais para escrever com a ignorãça própria do corpo, escrever usando o corpo inteiro em vez de escrever apenas usando cérebro, inteligência racional, lógica, seriedade, pose de adulto. É uma recusa radical também a las solenidades oficializcas e aos ensinamentos do programa de ensino estatal onde sobretudo aprende-se a ser mais um bom funcionário, mais um bom profissional, mais uma pessoa bem-sucedida no mercado de trabalho. “Coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco.”

Como os Guaranies, Manoel de Barros não acredita que um mortal possa instruir outro mortal na arte do canto. O canto, a sabedoria, as belas palabras, vêm do alto, vêm de cima, vêm do céu, têm qualidade de criança. Bartomeu Melià nos conta algo sobre a arte de la palavra entre os mbyá guarani que ilumina o tekó eté, o modo de ser autêntico, da palavra de Manoel de Barros: “A palavra não é ensinada, nem é aprendida humanamente. Para muitos Guarani resulta insensato e até mesmo provocativo pretender ensinar as crianças em salas de aula; daí o receio e por vezes a enérgica rejeição ao ensino escolar ocidental. A palavra é um dom que se recebe do alto, e não um conhecimento aprendido de outro mortal”.

 

Pergunto a Manoel de Barros
aonde ele quer chegar. Ele
responde sem pensar muito:
“Eu queria avançar para o
começo. Chegar ao criançamento
das palavras. Lá onde elas ainda
urinam na perna.”

 

 

Os delírios verbais terapeutam os leitores. Manoel de Barros pode ser lido também como literatura infantil para adultos. “Se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas.” Criançar as palavras é entrar em comunhão com as coisas, com a alegria dos palhaços, dos anões, dos bichos, das pedras, das árvores, das águas, do sol. O riso contra a seriedade oficial. A alegria sem forma das crianças contra a solenidade dos adultos presos dentro de suas formas. “A gente gostava mais das vadiações com as palavras do que das prisões gramaticais.” Criançar as palavras pode ser também fugir da prisão gramatical voando fora da asa. “A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias.” A poesia como jogo, play, dibersión, e não a poesia como trabalho, profissão, cansaço, emprego fixo. “Uma rã me pedra.” Em algunos versos, Manoel de Barros mata a piedra e mostra o passarinho.  “Um passarinho me árvore.” Uma das brincadeiras preferidas do poeta com la língua es el himeneo, el casamento de palavras, por exemplo, o casamento de um peixe com uma lata.

Num dos poemas de O Guardador de águas, uma lesma fode uma pedra, e num poema anterior, aparecem idiotas de estrada urinando em formigas para infantilizá-las. Os personagens de Manoel de Barros nunca crescem, nunca se tornam adultos, nunca atingem a maturidade, embora estejam no mundo desde tempos primigenios, quando nada ainda se sabia. Lembram o velho menino sábio que nasceu bebê de cabelos brancos de uma mãe que já contava com mais de 80 años. “Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.” O delírio, a doença, a anomalia, o estranhamento, a imprevisibilidade, são mais importantes do que a beleza nesse criançamento da linguagem.  “Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber.”

Fabricar criançamentos, gags verbais encantatórias, brinquedos de palavras não tem mistério: “o truque era só virar bocó”. Quando seus filhos eram pequenos, Manoel de Barros colocava-os no colo, pedia que eles contassem qualquer coisa, e anotava num bloquinho as frases de Pedro, João e Marta. Brincaba de Ready Made com os filhos. Assim escreveu boa parte de Compêndio para uso dos pássaros (1960). “Veio Maria Preta fazeu três araçás pra mim. Meu bolso teve um sol com passarinhos.” Quanto mais o poeta envelhecia por fora, mais criança ele ficava por dentro. “Não adianta prefácio nem prólogo nem nada. O que apresenta um poeta, Douglas, é a poesia que o poeta apresenta.”

Bernardo, o alter ego de Manoel de Barros, também é valorizado pelo poeta por sua inocência selvagem. “Bernardo transmitiu à minha poesia, às minhas palavras a inocência dele. Até hoje tenho as raízes da minha infância muito fortalecidas por causa dele.” As crianças revelam a Manoel de Barros a inocência primitiva da natureza humana. Mas non apenas isso. “Crianças desescrevem a língua. Arrombam as gramáticas.” O ilogismo que dá vida aos versos também sofre influências do tekó eté, do modo de ser, da imaginação delirante das crianças.  “A inocência da natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinaram mais. Quem não conhece a inocência da natureza não se conhece. Não há filosofia nem metafísica nisso. O que sei, na verdade, vem das percepções infantis. “Entender nunca havia sido tão parede na literatura brasileira. Solamente sei que o néctar de la linguagem própria de Manoel de Barros melhora o mundo y nunca me deixa sozinho em meio a la mielda toda y nos dá la alegria selvagem necessária ao pensamento kontra todos los fluxos que nos querem tristes, débiles, sérios, tolos y cagones.

Douglas Diegues é poeta, autor de El astronauta paraguayo (2012), Tudo lo que você non sabe es mucho más que todo lo que você sabe (2015)


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