Uma fé corrompida
(Arte: Andy Warhol)
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Segundo Frei Betto, o boicote ao cristianismo progressista no Brasil e na América Latina, uma das causas estruturais da atual bolsonarização da fé, foi uma política deliberada não só do Vaticano, desde a ascensão de João Paulo II, como também do governo dos Estados Unidos. Em 1967, o presidente Richard Nixon enviou a nosso continente um assessor, Nelson A. Rockfeller, com a missão de investigar a Igreja católica e a “ameaça comunista”. No seu relatório, Rockefeller propôs que igrejas evangélicas, financiadas por órgãos como a CIA, fossem aqui disseminadas para incutir nos fiéis uma religiosidade conservadora.
O vínculo umbilical entre o cenário religioso brasileiro e norte-americano pode ser comprovado com a leitura de Jesus e John Wayne: como o evangelho foi cooptado por movimentos culturais e políticos, que acaba de ser publicado pela editora Thomas Nelson Brasil. A edição original, de 2021, tem um subtítulo ainda mais contundente, que se traduziria assim: “como os evangélicos brancos corromperam uma fé e fraturaram uma nação”.
A autora, Kristin Kobes du Mez, ex-colunista do jornal Washington Post, é professora de História e de Estudo de Gênero na Calvin University e doutora pela Universidade de Notre Dame. Ela estuda os contornos e as raízes da adesão de expressivos setores neopentecostais norte-americanos à extrema direita que chega ao poder em 2016 com Donald Trump.
O imaginário que Trump soube encarnar, mostra Du Mez, remonta a John Wayne, ícone de filmes de faroeste e militante conservador fora das telas. Como diz o teólogo Ronilson Pacheco no prefácio da edição brasileira, “John Wayne simboliza o homem viril que encanta e subjuga as mulheres. A figura do ‘macho como Deus o criou’, para o qual não resta outro lugar a quem se assumir LGBTQIA+ a não ser a não existência. […] Também não pode haver feministas, apenas mulheres que se derretem diante de um homem viril, com arma na mão para protegê-las e exigir-lhes submissão e sexo”.
No Brasil, podemos ver o paradigma cristão à la John Wayne traduzido na liberação da matança não só dos indígenas (prática usual dos caubóis representados por Wayne) como também dos chamados “vagabundos” em geral que atravessem o caminho dos cidadãos de bem e dos seus guardiões divinamente ungidos, as forças policiais. A farra armamentista promovida por Bolsonaro como pseudopolítica de segurança pública, bem como o apoio maciço a ele por parte de cantores sertanejos, lutadores de MMA e até “coaches de sedução” (cujo discurso costuma ser abertamente hostil ao feminismo) também podem ser lidos nessa chave.
No John Wayne Museum, ao lado da filha do ator, Aissa, e de pé diante de um cenário desértico falso e de uma estátua de cera de John Wayne segurando uma arma, Trump declarou, durante a campanha de 2016: “John Wayne representava força, representava poder, representava [aquele por] quem as pessoas procuram hoje, já que, neste exato momento, nós temos justamente o oposto de John Wayne neste país”.
Racismo, machismo, misoginia, homofobia, demonização de refugiados e imigrantes de países pobres, desprezo aos valores democráticos em geral: essa agenda reacionária foi ganhando espaço entre os “evangélicos brancos” (ao contrário dos negros, em grande parte fiéis ao legado profético de homens como o pastor Martin Luther King) ao longo das últimas décadas. E o fator central nessa conversão de longo prazo foi a força do medo e do ressentimento.
Trata-se de segmentos da sociedade que se sentiram ameaçados por processos como as lutas por emancipação de negros e mulheres, causas encarnadas em políticos como Obama e Hillary Clinton, justamente dois dos espantalhos mais utilizados por Trump para se cacifar como o homem viril e heroico, ungido por Deus para reerguer a nação e “proteger os cristãos” de um mundo decaído pela corrupção dos costumes e pelo esquerdismo.
Pouco importava que ele pessoalmente não fosse um primor de virtudes, um chefe de família exemplar. Assim como no Brasil, passou-se pano para os supostos excessos de seu “jeitão espontâneo”, sua sinceridade, suas provocações ostensivas ao politicamente correto. “Eu poderia me pôr de pé bem no meio da Quinta Avenida e atirar em alguém; mesmo assim, não perderia um eleitor sequer”, vangloriou-se no tablado de um auditório cristão de Iowa, durante a campanha presidencial vitoriosa.
Se não precisou matar diretamente, Trump conduziu o país, em meio à tragédia da Covid-19, com uma lógica genocida que de fato não lhe custou o apoio de grande parte dos evangélicos, na tentativa frustrada de reeleição.
Como um chefe de caubóis, exortou os norte-americanos, em especial os cristãos, a agir como “guerreiros” – ou seja, ignorando as recomendações da saúde pública para que a economia não fosse afetada. Trump relutava em ser visto usando máscara em público e zombou de Joe Biden por usar uma; seus apoiadores comparavam o uso de máscaras ou o uso de desinfetantes à falta de masculinidade.
Muitos líderes evangélicos conservadores seguiram esse exemplo, tratando a pandemia como uma “farsa”, insistindo em seu direito de promover cultos presenciais, declarando “fé acima do medo”.
Com base num profundo rastreamento da posição dos evangélicos brancos dos EUA com relação aos riscos para a masculinidade tradicional na sociedade moderna, a autora pode sustentar o argumento de que Trump não é causa, mas sintoma de um processo histórico-cultural de longa duração, com riscos para a democracia que certamente não terão cessado com a vitória de Biden em 2020.
“Em 2016, diversos observadores ficaram perplexos com a aparente traição evangélica de seus próprios valores. Contudo, na realidade, os evangélicos não votaram [em Trump] a despeito de sua fé, mas justamente por causa dela.” Eles já tinham substituído o Jesus dos evangelhos por um Cristo guerreiro vingador, para o qual virtudes como gentileza e humildade são coisas de covardes, e encontravam agora o que a autora chama de seu “sumo sacerdote” na Terra.
Caio Liudvik é tradutor, pós-doutorando em Filosofia pela USP e autor de Sartre e o pensamento mítico (Loyola, 2007).
(1) Comentário
O presidente dos EUA em 1967 não era Richard Nixon… Era Lyndon B Johnson